A primeira de todas as batalhas políticas trava-se no plano ideológico e, como consequência, no plano filosófico. E as duas grandes forças que se degladiam nessa batalha são o idealismo e o materialismo.
Ora dizia-se na caixa de comentários do anterior post aqui no império que o que se mantém imutável desde os dias de Marx não são os conflitos de classe e o sistema classista mas sim a natureza humana e que é, portanto sobre ela que importa agir. Também se disse a determinada altura dessa interessante discussão que os “ismos” ideológicos têm desempenhado um papel de obstáculo ao desenvolvimento da luta revolucionária.
Partamos então para uma análise mais aprofundada do conjunto de coneitos e paradigmas filosóficos que emergem da própria ideia de “natureza humana” nos termos em que ela é utilizada. A burguesia sempre difundiu como base da sua hegemonia cultural a ideia de que a natureza humana é uma matriz em si mesma que é quase ou mesmo inalterável e que assenta no egoísmo e egocentrismo. Com essa doutrina conservadora, a burguesia impõe como “natureza humana” a sua “natureza de classe”, utilizando os meios de comunicação e educação de massas ao seu dispor, a classe dominante sedimenta a sua própria natureza exploradora, competitiva, egocêntrica, predatória, assassina e violenta junto das massas. Álvaro Cunhal aborda bem a forma como o proletariado resiste a esta ofensiva através da partilha de um código moral distinto, na brochura sobre “a superioridade moral dos comunistas”. Ou seja, a “natureza”, numa perspectiva do estudo da ética e do comportamento humano é aproximadamente a síntese e a súmula dos comportamentos e códigos morais de cada ser humano. Numa abordagem simplista e horizontal poderíamos dizer que existe então uma natureza humana, sendo então essa natureza humana um modelo imutável que determina o comportamento humano.
Todavia, numa perspectiva materialista, importa relacionar o comportamento material e ético do homem com o ambiente e as relações materiais que o rodeiam. Assim rapidamente chegaremos a um ponto de vista mais amplo que começa a fazer a distinção entre as várias “naturezas humanas” - passando a contemplar então as “naturezas de classe”, ou seja, os comportamentos e códigos morais de cada classe social. Dizer que a natureza humana é o que define as relações sociais e é o que se mantém ao longo da história da Humanidade é subalternizar a luta de classes e ignorar as diferenças genéticas que existem entre a “natureza moral” do proletariado, dos trabalhadores e popular e a “natureza amoral” da burguesia. Mas mais grave do que isso, é esquecer que o que determina a natureza subjectiva do Homem é a sua relação materialista com o meio, a sua posição nas relações sociais e produtivas.
As abordagens idealistas, tão próprias da burguesia e da pequena burguesia (seja ela de esquerda ou de direita), são aquelas que centram na “natureza humana” as variáveis que determinam as relações materiais e sociais. Isso é subverter por completo o processo e aceitar a linguagem conservadora actual que contrapõe a tal “natureza humana” à construção do socialismo, atribuindo a todos os homens e mulheres a sede de poder, a tendência para a corrupção e o individualismo. Com esta abordagem, ignora-se a história da Humanidade e nega-se a possibilidade da construção do Homem Novo. E dirão a esta altura os mais encaixados e acomodados ao sistema que o Homem Novo é um adorno romântico da ideologia comunista. Mas na construção do Homem Novo e na aceitação de que é possível fazer essa construção, está a pedra de toque do dilema “natureza humana vs natureza de classe”.
Para aqueles que no Homem Novo vêem apenas um romantismo socialista, basta perguntar-lhes se é ou não verdade que o Homem de hoje não é diferente do Cro-Magnon, ou do Homem da Idade Média. Isso rapidamente os obrigará a reconhecer que existem diferenças substanciais entre os comportamentos humanos de cada época e que, por consequência, Homem Novo é uma figura que marca as etapas históricas do passado e continuará a marcar as do futuro. Quando se diz que é a natureza humana que se mantém e que, como tal, podemos aceitá-la como um dado objectivo no nosso pensamento político revolucionário, ignora-se ou confunde-se que o que se mantém é a relação entre o Homem e os estímulos que recebe. No geral, poder-se-á quanto muito afirmar que os comportamentos materiais e éticos dos homens se têm mantido relativamente estáveis enquanto os estímulos materiais e sociais à sua volta se mantém igualmente. Ou seja, a tal de natureza humana é definida, não por um padrão de comportamentos pré-definido, mas pelo facto de ser racional e, sendo racional, redunda em respostas iguais para estímulos iguais. Já se o comportamento humano fosse errático ou caótico, tal natureza de consistência comportamental perante um estímulo igual não existiria.
A natureza humana é então um produto da relação do homem com o meio e é, portanto, tão variável quanto o são as relações sociais e os sistemas de organização da sociedade. O Homem sujeito a determinados estímulos reproduzirá proporcionais comportamentos. Ou seja, a classe dominante tem também como preocupação dominar os estímulos que fornece às restantes classes, como forma de moldar o seu comportamento. No entanto, a natureza humana não é má nem boa, é fruto racional das situações a que está sujeita.
Identificar na natureza humana uma espécie de “instinto primordial” que nos leva a roubar, matar, explorar, escravizar, etc.. é tão ridículo como identificar na natureza humana um “instinto primordial” que nos leva a ser solidários e empáticos com os outros. Os estímulos e a relação material que cada ser humano tem com o meio determinam o seu comportamento. No entanto, a racionalidade impõe comportamentos que se tornam padrões, por indução. Os homens das classes trabalhadoras rapidamente se aperceberam que a cooperação e a solidariedade são formas mais eficazes de combater a adversidade e construir o progresso, daí também se enraizarem com mais significado esses valores nas classes exploradas. No entanto, no meu entender, essa é uma questão relacionada com a interpretação racional do meio e não com um instinto solidário que nasce com o Homem. Da mesma forma, os homens das classes exploradoras sempre identificaram nos restantes membros da sua classe um adversário por competição, sempre viram nas restantes classes, os seus inimigos e, como tal, o seu comportamento e código moral é mais competitivo, predatório e muitas vezes violento e assassino. Esta dualidade de comportamentos mostra bem que, no quadro da sua racionalidade e interpretação do mundo, as naturezas humanas ramificam-se em naturezas de classe.
Significa isto que os trabalhadores não sentem a competição e o individualismo? Ou que a burguesia é insensível à miséria e não pode ter compaixão? No meu entendimento, esta antítese não nega a tese essencial. Os trabalhadores não são impermeáveis às pressões ideológicas das classes dominantes e a pulverização e desarticulação das formas de organização da produção e, consequenetemente, das formas de organização do operariado, contribuem para uma cada vez maior permeabilidade do operário à doutrina ideológica idealista. Dir-se-á que o trabalhador que adopta uma postura individualista o faz racionalmente porque os estímulos à sua volta lhe indicam que essa é a melhor forma de melhorar a sua vida, individualmente considerada.
Da mesma forma, o membro da burguesia, mesmo da grande burguesia pode manifestar comportamentos de compaixão e empatia com os outros. É exactamente desta incapacidade de ignorar o sofrimento e de simultaneamente pretender manter as relações que posicionam o burguês como classe dominante, que nascem as práticas caritativas. A abordagem kantiana a esta questão apoia inclusivamente esta análise. Para Kant, a moral é uma forma de integração e aceitação social do indivíduo. Ou seja, o indivíduo “pratica o bem” porque isso o beneficiará perante o meio. Ao que Kant nunca chegou foi ao reconhecimento de que o meio é variável e que, como tal, também o conceito de “bem” é variável. Ao que Kant também nunca chegou foi ao reconhecimento de que existem assimetrias de classe que moldam os comportamentos morais do indivíduo.
O idealismo é pois o instrumento mais poderoso da burguesia, porque centra o comportamento humano em torno das questões subjectivas e porque ilude a natureza materialista da ética e da moral. A sacralização de comportamentos nobres, desligados de uma abordagem materialista e a centralização ideológica no indivíduo são os meios filosóficos do capitalismo e não só. São, sempre que necessário, os instrumentos que fundam os fascismos e nazismos.
Curiosamente, anarquistas, esquerdistas, fascistas e nazis, partilham como base teórica das suas análises políticas e filosóficas o idealismo.