Wednesday, July 22, 2009

Liberdade

“Estou condenado a ser livre” escrevia Sartre como a síntese de um paradigma existencialista transversal. Esta concentração da racionalidade sobre o homem, vem recentrar o debate filosófico sobre a Humanidade. Aliás, Jean-Paul Sartre afirmou mesmo que “o humanismo é o existencialismo”.

Independentemente do impacto inegável que o contributo desse pensador nos trouxe, particularmente tendo em conta o momento histórico em que o fez, é importante relativizar a absolutização da liberdade que acaba por, de alguma forma, estar latente no pensamento sartriano.

Se o pensamento lógico, o raciocínio do ser humano, é baseado em premissas que partem de conceitos e, de acordo com o existencialismo ateu de Sartre, é essa propriedade humana que lhe confere a liberdade, então não poderemos absolutizar os graus de liberdade a que Sartre alude na sua obra e legado filosófico. Também é certo que Sartre bem distingue entre o acto e o não-acto, assim eliminando confusão entre a liberdade e a não-liberdade, relacionando essa distinção com a presença ou ausência de consciência da acção, ou com a presença ou ausência de vontade da acção.
E também não existe na obra de Sartre uma eliminação das assimetrias de classe e sua repercussão nas estruturas racionais do Ser Humano. Porém, também não lhe é dada a dimensão que julgo ser justo atribuir a essas anisotropias sociais. Pois que o conceito de liberdade, se absolutizado, esbarra na evidência de uma realidade que diariamente o nega.

Pois que se a liberdade é o resultado da soma das operações racionais e se traduz na possibilidade inalienável de escolha do Ser Humano, então a quantidade de variáveis disponíveis condiciona o grau de liberdade. Essa análise não é hoje suficientemente consolidada pelos acólitos burgueses do existencialismo pós-Sartre. A absolutização do conceito de liberdade, a sua dramatização como forma de constatação de eloquência intelectual, reflecte-se afinal na supressão das diferenças inerentes ao facto de existirem diferentes graus de cultura, de consciência e de acesso à informação. Em sentido figurado, se o raciocínio humano fosse um puzzle, ele só pode ser construído se o sujeito tiver à sua disposição todas as peças. Nessa analogia, as peças serão precisamente a informação, a cultura, o conhecimento, a experiência. A partir do momento em que existe uma condicionante à disponibilidade de cada uma das peças, então também o resultado final do puzzle está condicionado.

Obviamente que o pensamento humano não pode ser simplificado ao ponto de uma equação ou de um algoritmo simples. No entanto, com a necessária consideração das óbvias diferenças no grau de complexidade, podemos comparar o condicionamento do pensamento humano como a condição dos resultado s de uma equação. Claro que a caracterização de uma função matemática está condicionada pelo universo a que pertencem as variáveis. Da mesma forma, o resultado de um equação pode ser determinado em função do universo de trabalho. Por exemplo, se x^2=2, x E R é uma equação de resultado simples, com x=(raíz de 2) ou (simétrico da raíz de 2), já a mesma equação mas com x E N não tem solução possível.

Ora, sem querer obviamente comparar a estrutura racional humana a uma mera equação linear, certo é que mesmo a criatividade e inteligência (capacidades que determinam soluções onde aparentemente são impossíveis) estão condicionadas ao estímulo ou ausência dele. Caso contrário, a evolução tecnológica, artística, científica e cultural da Humanidade não seria um processo gradual, mas sim absoluto e momentâneo.

Ou seja, o conjunto das peças, dos elementos, das variáveis culturais, sociais e económicas, à disposição da capacidade intelectual de cada Ser Humano determina em grande parte a amplitude da sua liberdade. Independentemente da sua inteligência, das suas capacidades intelectuais, o grau de acesso à informação e ao conhecimento, condiciona o grau de liberdade para a acção e para a escolha.

Daí a forma tentacular e fortemente controladora como o sistema capitalista, as corporações e os estados subservientes, condicionam a disponibilidade de informação e impedem a difusão da consciência dialéctica e bloqueiam o raciocínio materialista através dos meios de comunicação e educação de massas. A limitação do conjunto de variáveis disponíveis para o pensamento, determina assim uma gradação de liberdades em função do posicionamento de cada indivíduo no tabuleiro da luta de classes. Não nos referimos aqui à liberdade legalmente considerada, nem tampouco à liberdade económica que está manifestamente afectada de brutais constrangimentos e garrotes em função da posição económica de cada um. Não é necessário grande estudo para rapidamente verificar que essa liberdade material está inteiramente dependente do papel de cada um na sociedade capitalista.
O Explorador detém um grau de liberdade material infinitamente superior à do Explorado. O patrão detém um conjunto de liberdades materiais que o seu empregado não detém, nem poderá alguma vez deter enquanto for trabalhador e não se tornar ele próprio em patrão. Mas no que à liberdade intelectual diz respeito, o processo não é tão diferente quanto isso.

É certo que Sartre tem razão quando afirma que o Ser Humano não pode escolher não escolher, pois essa a única liberdade que não lhe assiste. Está, pois, condenado a ser livre. Mas há toda uma hierarquização dos graus de liberdade que, incontornavelmente, se verifica entre os homens e impede a absolutização do conceito. Por exemplo, um trabalhador ofendido nos seus direitos laborais pode optar, no plano intelectual e racional, pela luta ou pela capitulação. É um facto, ele pode. Não podemos é, no entanto, negar que existem diversas formas de limitar essa capacidade de escolha. Se o trabalhador em causa não tiver acesso a dados sobre lutas de trabalhadores noutros casos, se o trabalhador não tiver acesso a informação sobre organização sindical dos trabalhadores, sobre os mecanismos de exploração capitalista, sobre os resultados de outras situações semelhantes, e se o mesmo trabalhador apenas dispuser de informação sobre trabalhadores que capitularam e que não se organizaram, negociando posições menos favoráveis mas mais favoráveis que o desemprego, então esse trabalhador terá certamente uma tendência para optar pela capitulação. Isso significa objectivamente que o grau de liberdade desse trabalhador está limitado.
Como tal, existindo limitação, e sendo essa limitação diferente de indivíduo para indivíduo, e em função da hegemonia cultural de classe em vigor em cada momento histórico, então a liberdade de escolha, sendo real, não é absoluta.

Tuesday, July 21, 2009

A Corrupção

Corrupto é o que está, de alguma forma, poluído, quebrado na sua estrutura. Legalmente, do ponto de vista técnico, corrupção constitui um crime punível.

No entanto, quando se fala de corrupção, limita-se sempre o conceito a essa categorização e tipificação legística e administrativa, deixando ficar de fora a corrupção legal, não menos imoral.

Nos cargos públicos de eleição e de nomeação, o juramento é feito para com o povo e o interesse nacional, sob a vigência da Constituição da República Portuguesa que, acima de tudo, lhes cabe cumprir e respeitar. Se um titular de órgão público exerce o poder para benefício próprio, cometendo um acto ilegal ou legal, ou usa poderes que lhe assistem como moeda de troca para se beneficiar a si próprio, incorre num crime previsto na lei. Porém, se um titular desse mesmo órgão se apresentar a eleições com o propósito anunciado de defender o interesse público e, no uso do poder, defender a concentração do lucro, a acumulação de capital em grupos privados, a estratégia empresarial deste ou daquele, então isso já não cabe sob a definição estrita de corrupção, de acordo com a lei.

No entanto, para todos os efeitos, as consequências dessa tipologia de corrupção legal são, na maior parte das vezes, bem mais perniciosos e de impactos significativamente mais amplos que os da pequena e média corrupção ilegal. A imoralidade no uso do poder traduz-se de facto, na verdadeira dimensão da corrupção sistémica - o apodrecimento das estruturas, o desvirtuamento dos compromissos e o desvio do funcionamento do Estado do Povo.

Corrupto - de sinónimo, em latim, "apodrecido" - é o sistema capitalista e os que lhe dão corpo.
Infelizmente, em Portugal, é corrupção autorizar a edificação de um empreendimento turístico em área protegida a troco de um qualquer prémio. No entanto, já não se considera corrupto o legislador que altera o quadro legal para permitir a construção do mesmo empreendimento turístico, mesmo que esteja provado o seu impacto negativo e efeitos nefastos para a economia e para a população envolvente.

Da mesma forma, seria ilegal e censurável que alguém vendesse o domínio público a uma empresa privada para exclusividade de usos. Mas é absolutamente aceitável que um Governo altere a lei para permitir a alienação total do domínio público, material e imaterial, entregando assim esse domínio a um ou outro interesse privado, depauperando do Estado do Povo, mesmo à margem do espírito e da forma da Constituição da República.

É ilegal receber benefícios próprios a troco de actos administrativos, políticos ou executivos, legais ou ilegais. E bem. E no entanto, é perfeitamente aceitável no quadro da lei que os indivíduos que desempenham cargos públicos e, muitas vezes até como legisladores, sejam cooptados para o mundo das empresas privadas que foram beneficiadas pelos seus actos enquanto titulares dos cargos públicos. Não é corrupto que um dos mais altos representantes do Estado Português se apresente como promotor de marcas de automóveis, de peixe congelado e de computadores e software quando foi eleito pelo povo que é diariamente prejudicado precisamente por essas mesmas corporações?

Por isso quando ainda há poucos dias via na tv um programa sobre corrupção, me revoltava. Por um lado porque centram a corrupção nos pequenos actos, indo ao ridículo de acusar o funcionário público pela corrupção de Estado que grassa em Portugal. Por outro lado, porque sempre recusam colocar a discussão sobre os aspectos essenciais. E esses aspectos são a natureza corrupta do Estado no sistema capitalista, natureza suportada pelos partidos que disputam o poder burguês.

Curioso é também verificar que sempre se aligeira o papel do corruptor. Ou seja, se existe um corrupto, existe um corruptor. Porquê demonizar apenas o corrupto - que certamente desempenha o papel mais censurável - e esquecer o corruptor. É que se existe quem se venda, é porque existe quem compre e estimule a imoralidade. Essas mesmas empresas que são diariamente promovidas como o céu na terra e como a salvação para todos os males do país, são precisamente aquelas que acenam com dinheiro e regalias por baixo das mesas e secretárias do poder político apodrecido e corrupto. São as mesmas que trocam impressões sobre quem contratar nos gabinetes dos ministros, nos governos, ou nos aparelhos de influência dos partidos burgueses. Essas, afinal de contas, saem sempre ilesas dos processos. Tudo a bem da manutenção da natureza corrupta do sistema burguês a que, ultimamente, se vai chamando "democracia ocidental" ou "democracia consolidada".