Tuesday, October 30, 2012

A riqueza da participação popular e a construção da alternativa

O sistema político montado para dar forma à ditadura da burguesa tem pilares formais, informais, institucionais, culturais, materiais, a que ninguém é alheio ou imune. A hegemonia cultural de classe, a formatação das abordagens e a manipulação do pensamento individual e colectivo influenciam, de forma por vezes determinante, as análises e as formas de acção política de muitos dos afectados pela conjuntura.

Muitas vezes somos forçados pela "opinião dominante" a concentrar as soluções de acordo com as leis vigentes, de acordo com a hegemonia cultural, política e material em que vivemos, cristalizando em torno de soluções que ficam aquém da necessidade e da urgência. O Programa do PCP e toda a nossa reflexão histórica e actual - da que se destaca o contributo prático e teórico do Camarada Álvaro Cunhal - tem respostas muito além das limitações e espartilhos que a doutrina política dominante nos impõe. É preciso levar mais longe essa mensagem do PCP, alargar a influência do Partido para consolidar essa linha de intervenção.

Muitas vezes, quando falamos da exigência inadiável da ruptura política e da necessidade e urgência da construção de uma alternativa, ainda que involuntariamente, somos levados a interpretar e a avaliar as hipóteses, no quadro do tabuleiro de jogo político actual. No entanto, a realidade e a dinâmica da sociedade não se compadece com limitações ficcionais, a luta de classes não se contém no espartilho das regras da classe dominante, no campo das eleições ou das intervenções parlamentares.

Apesar da validade de alguns desses instrumentos quando colocados ao serviço do progresso e das populações, não há Pergunta ao Governo, debate parlamentar ou projecto de lei que contenha a riqueza e a capacidade criativa e criadora da intervenção popular, das concretizações das massas em movimento. Nem há resultado eleitoral que possa, plenamente, expressar a totalidade da riqueza dessa força absolutamente imparável que é a força material das massas.

Por isso, julgo que todos, na resposta à exigência do momento, devemos alargar as nossas fronteiras quando pensamos na construção da alternativa e ir além das primeiras soluções que surgem. Se largarmos as amarras que nos prendem à situação e rompermos com o vício do raciocínio em que muitas vezes nos envolvemos como num novelo, surgem soluções muito mais vastas e todo um novo campo de alternativas e de hipóteses de intervenção.

A afirmação de uma alternativa, a criação das condições políticas para a alteração da situação actual, para a recuperação do caminho de Abril, não pode ficar-se pela concepção meramente partidária ou eleitoral. As forças democráticas vão muito além dos partidos e a democracia vai muito além da Assembleia da República, do Governo e mesmo do Poder Local. A concretização no terreno social e económico, de uma vasta frente de luta, mas também de construção, pode afirmar os valores de Abril no futuro de Portugal, pela força, pela intervenção concreta, pela acção directa, com a lei em punho, ou fazendo pelos punhos novas leis.

A alternativa não tem de ser uma proposta de coligação partidária, não tem de ser um passe de marketing eleitoral, não tem de ser uma solução mágica na comunicação social, não será certamente uma declaração de princípios com mais ou menos "notáveis" da nossa vida social. A alternativa real surgirá, isso sim, da materialização da unidade entre as camadas anti-monopolistas, juntando os jovens, os homens e as mulheres do mundo do trabalho, mas também aqueles que são cilindrados pela política de acumulação, ainda que sejam pequenos empresários ou agricultores. É nesse mar de convergência que está a alternativa, é nessas mãos que podem recusar-se a aceitar o desemprego, a doença, que podem construir fábricas e lavrar campos, que está a alternativa e a riqueza do nosso país. A questão eleitoral não é a base do problema nem é a sua solução, mas pode, se der corpo a essa real convergência transformadora das massas, ser dela instrumento.

Se virmos a questão ao contrário, como o fazem BE e outros sectores perdidos de uma dita "esquerda", limitamo-nos a gerir as contradições de um sistema que nos sufoca e acabará por nos matar a todos, se antes disso, não o liquidarmos. Alinhar na ideia de que um partido, um governo, será a condição suficiente para alterar seja o que for, é alimentar uma falsa esperança e desde já não cumprir o papel esclarecedor que julgo que nos cabe.

Nenhum Governo, por mais patriótico e de esquerda, resolverá coisa alguma em Portugal. Será o povo português a realizar essa tarefa, se assim quiser. O povo pode fazê-lo sem o Governo a seu lado, mas jamais um Governo o poderá fazer sem o povo.

Certo que, nessa gloriosa marcha de progresso, ter no poder institucional um aliado de classe, pode representar tremenda vantagem, mas não altera de modo algum o facto de que será o povo o protagonista dessas transformações. Os comunistas portugueses estarão, é certo, ao lado e na linha da frente do povo, seja no Governo, seja fora dele. "Para não ir em protestos vãos, para sair deste antro estreito, façamos nós por nossas mãos tudo o que nós nos diz respeito."

Thursday, October 04, 2012

O regresso da Escola Dual

Com particular intensidade desde a reforma curricular de Manuela Ferreira Leite, Ministra da Educação de Cavaco Silva, realizada em 1993 e aplicada a partir de 1994, a Escola Pública tem vindo a ser alvo de um ataque permanente, orientado para a sua desfiguração.

Depois de Abril de 1974, com a estruturação formal e informal da democracia, o país corrigiu um erro estrutural que o fascismo vinha aprofundando e consolidando: ultrapassou a Escola Dual, o apartheid social que o fascismo impunha na Escola, encaminhando os filhos das camadas operárias para a chamada Escola Técnica, Comercial ou Industrial e os filhos das camadas privilegiadas para o Liceu. As necessidades impostas para a elevação do nível cultural do povo português, a urgência de qualificação científica e humanística para a concretização da democracia assumida além da sua dimensão meramente política/partidária.

A escola dual do fascismo era um instrumento fundamental para a manutenção e reprodução das assimetrias sociais e para o aprofundamento do domínio de classe da burguesia sobre o proletariado, não só porque mantinha o conhecimento arredado das classes laboriosas, mas também porque encaminhava as classes exploradas para um regime de formação profissional estrita e construída para alimentar o capital nas suas necessidades de exploração. A escola dual, também por ser um instrumento fascista, era um obstáculo à democracia e teve de ser, por isso mesmo, destruída. A retaliação fascista não se fez, todavia, esperar e a recuperação do poder político pelos detentores do poder económico que não foi destruído como seria condição para o sucesso da revolução veio a impor a recuperação do caminho da instrumentalizaçao política e de classe da Educação.

Claro que inicialmente de forma velada, depois gradualmente mais aberta, o ataque foi sendo desferido para garantir a reconfiguração da missão da escola. De Manuela Ferreira Leite em 1993 a Maria de Lurdes Rodrigues em 2005 e Nuno Crato em 2011, o discurso passou a assumir frontalmente a reconstituição da Escola Dual e essa recuperação afirma-se até, por vezes, tão descaradamente que se anuncia como uma correcção a um dos piores erros da Revolução - o fim da escola dual. Foi o próprio Governo Socialista de Sócrates que o afirmou nestes termos.

As sucessivas reformas no sistema educativo vieram, desde então, a reerguer a escola fascista, na sua essência política e social, pesem as diferenças de forma impostas pela alteração de regime formal.

Hoje, depois de amputações e mutilações, de desfigurações profundas, a Escola Pública, ainda que à margem da lei e da constituição da república, coloca-se novamente ao serviço dos grupos económicos com o aval e controlo do Estado, igualmente servil a esses mesmos interesses. A intervenção do Estado é hoje cada vez mais próxima da tipologia de intervenção do Estado fascista: age para garantir o privilégio e para o defender, ao invés de agir para o dissolver e para redistribuir a riqueza e limitar até à anulação a exploração. Ou seja, embora em democracia formal, cada vez mais aspectos do Estado e da política estão a regredir, sendo essa regressão tanto maior quanto maior é o tempo que nos separa de 1974. As forças revolucionárias foram, até aqui, por diversas vezes derrotadas e cada uma dessas derrotas constituíram vitórias da contra-revolução. Na Escola e na política educativa, essa reconstituição do privilégio burguês e do domínio monopolista não é diferente e implica um regresso a fórmulas do passado, por vezes mostradas como novas e como modernas.

Hoje, 36 anos passados sobre os governos provisórios e 36 anos de poder de direita e dos grupos que, enganando o povo, lhes retira uma a uma as conquistas de Abril, a Escola Pública assume com fulgor a dualidade. Escolas cada vez mais dedicadas ao Ensino Técnico - agora chamado "profissional" - e outras cada vez mais dedicadas ao ensino liceal - agora chamado "prosseguimento de estudos" fazem com que a dualidade cave cada vez mais funda a clivagem de classe que se iniciou com a simples criação dessas vias "alternativas" e "profissionais" para os estudantes das camadas empobrecidas e exploradas, ainda que por vezes coexistam fisicamente no mesmo edifício essas vias com a via de "prosseguimento de estudos".

Esta recuperação da escola dual labora sobre dois erros fundamentais para ganhar a tolerância das massas e a hesitação temporária até de forças revolucionárias:

1. Que a formação profissional é papel da Escola Pública. No entanto, a formação profissional, ainda que possa constituir uma faceta do processo educativo, não pode nunca ser o seu eixo fundamental, pois a formação profissional não pode sequer ser totalmente assegurada num período de tempo estático e desligado do mundo do trabalho, mas mais do que isso, porque a Escola Pública deve preparar os jovens enquanto seres humanos e cidadãos inteiros e não apenas como executantes de tarefas em contexto de trabalho, a escola deve preparar o estudante para todas as profissões, para que desempenhe criativamente as tarefas que venha a escolher e não para lhes estreitar as capacidades desde jovens, encaminhando-os desde cada vez mais tenra idade para um funil profissional sem capacidade de adpatação dos conhecimentos a outros contextos.

2. Que as vias chamadas "profissionalizantes" são um caminho para os que não se enquadram nas vias tradicionais, que a "diversificação da oferta formativa no ensino secundário" (como está na moda dizer-se) é a resposta ao abandono escolar e ao insucesso. Esta tese, esta ilusão, deve ser desmontada imediatamente. Em primeiro lugar porque ela esconde uma triagem social e visa dar-lhe cobertura. Na verdade, quando se fala de responder ao insucesso e abandono, indirectamente fala-se de camadas exploradas e excluídas da sociedade. Ou seja, se o insucesso e o abandono estão intimamente ligados à classe social e estatuto material do aluno, e afectam particularmente os pobres, então a resposta ao insucesso e abandono é, na verdade, uma resposta para essas camadas da população. Com que intenção constrói a burguesia no poder uma "resposta educativa" para essas camadas? Porque está preocupada com a exclusão social? Porque está comprometida com a elevação da cultura do proletariado? Não. Porque para essas camadas preconiza um caminho social específico: o da exploração e submissão. A imposição da hegemonia cultural da burguesia, a alimentação da máquina industrial e financeira do capital, exigem a formação estreita, robótica, maquinal dessas camadas. Igualmente, esses mesmos objectivos exigem que jamais essas camadas adquiram o conhecimento, o domínio da técnica e da ciência. A pretexto de uma preocupação social, da resposta social, a burguesia assegura a reprodução da assimetria social existente, até o seu agravamento, garantindo uma escola para os pobres e outra para os ricos.

Que defender neste contexto para a Escola Pública? Norteados pela concepção da Escola Pública, laica e democrática, os comunistas devem defender uma escola para a emancipação dos jovens enquanto homens e mulheres, enquanto seres humanos realizados em todas as dimensões da vivência, do desporto, às artes, passando pela literatura e pela ciência, enriquecidos pelo contacto com instrumentos sociais e de trabalho. Uma Escola orientada para a formação da cultura integral do indivíduo é uma escola que integra a via profissionalizante e a via de prosseguimento de estudos num só caminho, sem empurrar os ricos para um e os pobres para outro. É uma escola que mantém a capacidade de ministrar conhecimentos profissionais sem abdicar de maneira nenhuma da Educação, e fá-lo para todos. Ou seja, nem a formação profissional deve ser exclusiva para as camadas empobrecidas e exploradas, nem a educação dita regular deve estar exclusivamente acessível às camadas privilegiadas.

Uma escola que integra o conhecimento e a técnica, independentemente da classe social do estudante, que prepara todos para a verdadeira igualdade e para serem agentes activos do progresso e da libertação da Humanidade das suas próprias contradições e limitações.