Com particular intensidade desde a reforma curricular de Manuela Ferreira Leite, Ministra da Educação de Cavaco Silva, realizada em 1993 e aplicada a partir de 1994, a Escola Pública tem vindo a ser alvo de um ataque permanente, orientado para a sua desfiguração.
Depois de Abril de 1974, com a estruturação formal e informal da democracia, o país corrigiu um erro estrutural que o fascismo vinha aprofundando e consolidando: ultrapassou a Escola Dual, o apartheid social que o fascismo impunha na Escola, encaminhando os filhos das camadas operárias para a chamada Escola Técnica, Comercial ou Industrial e os filhos das camadas privilegiadas para o Liceu. As necessidades impostas para a elevação do nível cultural do povo português, a urgência de qualificação científica e humanística para a concretização da democracia assumida além da sua dimensão meramente política/partidária.
A escola dual do fascismo era um instrumento fundamental para a manutenção e reprodução das assimetrias sociais e para o aprofundamento do domínio de classe da burguesia sobre o proletariado, não só porque mantinha o conhecimento arredado das classes laboriosas, mas também porque encaminhava as classes exploradas para um regime de formação profissional estrita e construída para alimentar o capital nas suas necessidades de exploração. A escola dual, também por ser um instrumento fascista, era um obstáculo à democracia e teve de ser, por isso mesmo, destruída. A retaliação fascista não se fez, todavia, esperar e a recuperação do poder político pelos detentores do poder económico que não foi destruído como seria condição para o sucesso da revolução veio a impor a recuperação do caminho da instrumentalizaçao política e de classe da Educação.
Claro que inicialmente de forma velada, depois gradualmente mais aberta, o ataque foi sendo desferido para garantir a reconfiguração da missão da escola. De Manuela Ferreira Leite em 1993 a Maria de Lurdes Rodrigues em 2005 e Nuno Crato em 2011, o discurso passou a assumir frontalmente a reconstituição da Escola Dual e essa recuperação afirma-se até, por vezes, tão descaradamente que se anuncia como uma correcção a um dos piores erros da Revolução - o fim da escola dual. Foi o próprio Governo Socialista de Sócrates que o afirmou nestes termos.
As sucessivas reformas no sistema educativo vieram, desde então, a reerguer a escola fascista, na sua essência política e social, pesem as diferenças de forma impostas pela alteração de regime formal.
Hoje, depois de amputações e mutilações, de desfigurações profundas, a Escola Pública, ainda que à margem da lei e da constituição da república, coloca-se novamente ao serviço dos grupos económicos com o aval e controlo do Estado, igualmente servil a esses mesmos interesses. A intervenção do Estado é hoje cada vez mais próxima da tipologia de intervenção do Estado fascista: age para garantir o privilégio e para o defender, ao invés de agir para o dissolver e para redistribuir a riqueza e limitar até à anulação a exploração. Ou seja, embora em democracia formal, cada vez mais aspectos do Estado e da política estão a regredir, sendo essa regressão tanto maior quanto maior é o tempo que nos separa de 1974. As forças revolucionárias foram, até aqui, por diversas vezes derrotadas e cada uma dessas derrotas constituíram vitórias da contra-revolução. Na Escola e na política educativa, essa reconstituição do privilégio burguês e do domínio monopolista não é diferente e implica um regresso a fórmulas do passado, por vezes mostradas como novas e como modernas.
Hoje, 36 anos passados sobre os governos provisórios e 36 anos de poder de direita e dos grupos que, enganando o povo, lhes retira uma a uma as conquistas de Abril, a Escola Pública assume com fulgor a dualidade. Escolas cada vez mais dedicadas ao Ensino Técnico - agora chamado "profissional" - e outras cada vez mais dedicadas ao ensino liceal - agora chamado "prosseguimento de estudos" fazem com que a dualidade cave cada vez mais funda a clivagem de classe que se iniciou com a simples criação dessas vias "alternativas" e "profissionais" para os estudantes das camadas empobrecidas e exploradas, ainda que por vezes coexistam fisicamente no mesmo edifício essas vias com a via de "prosseguimento de estudos".
Esta recuperação da escola dual labora sobre dois erros fundamentais para ganhar a tolerância das massas e a hesitação temporária até de forças revolucionárias:
1. Que a formação profissional é papel da Escola Pública. No entanto, a formação profissional, ainda que possa constituir uma faceta do processo educativo, não pode nunca ser o seu eixo fundamental, pois a formação profissional não pode sequer ser totalmente assegurada num período de tempo estático e desligado do mundo do trabalho, mas mais do que isso, porque a Escola Pública deve preparar os jovens enquanto seres humanos e cidadãos inteiros e não apenas como executantes de tarefas em contexto de trabalho, a escola deve preparar o estudante para todas as profissões, para que desempenhe criativamente as tarefas que venha a escolher e não para lhes estreitar as capacidades desde jovens, encaminhando-os desde cada vez mais tenra idade para um funil profissional sem capacidade de adpatação dos conhecimentos a outros contextos.
2. Que as vias chamadas "profissionalizantes" são um caminho para os que não se enquadram nas vias tradicionais, que a "diversificação da oferta formativa no ensino secundário" (como está na moda dizer-se) é a resposta ao abandono escolar e ao insucesso. Esta tese, esta ilusão, deve ser desmontada imediatamente. Em primeiro lugar porque ela esconde uma triagem social e visa dar-lhe cobertura. Na verdade, quando se fala de responder ao insucesso e abandono, indirectamente fala-se de camadas exploradas e excluídas da sociedade. Ou seja, se o insucesso e o abandono estão intimamente ligados à classe social e estatuto material do aluno, e afectam particularmente os pobres, então a resposta ao insucesso e abandono é, na verdade, uma resposta para essas camadas da população. Com que intenção constrói a burguesia no poder uma "resposta educativa" para essas camadas? Porque está preocupada com a exclusão social? Porque está comprometida com a elevação da cultura do proletariado? Não. Porque para essas camadas preconiza um caminho social específico: o da exploração e submissão. A imposição da hegemonia cultural da burguesia, a alimentação da máquina industrial e financeira do capital, exigem a formação estreita, robótica, maquinal dessas camadas. Igualmente, esses mesmos objectivos exigem que jamais essas camadas adquiram o conhecimento, o domínio da técnica e da ciência. A pretexto de uma preocupação social, da resposta social, a burguesia assegura a reprodução da assimetria social existente, até o seu agravamento, garantindo uma escola para os pobres e outra para os ricos.
Que defender neste contexto para a Escola Pública? Norteados pela concepção da Escola Pública, laica e democrática, os comunistas devem defender uma escola para a emancipação dos jovens enquanto homens e mulheres, enquanto seres humanos realizados em todas as dimensões da vivência, do desporto, às artes, passando pela literatura e pela ciência, enriquecidos pelo contacto com instrumentos sociais e de trabalho. Uma Escola orientada para a formação da cultura integral do indivíduo é uma escola que integra a via profissionalizante e a via de prosseguimento de estudos num só caminho, sem empurrar os ricos para um e os pobres para outro. É uma escola que mantém a capacidade de ministrar conhecimentos profissionais sem abdicar de maneira nenhuma da Educação, e fá-lo para todos. Ou seja, nem a formação profissional deve ser exclusiva para as camadas empobrecidas e exploradas, nem a educação dita regular deve estar exclusivamente acessível às camadas privilegiadas.
Uma escola que integra o conhecimento e a técnica, independentemente da classe social do estudante, que prepara todos para a verdadeira igualdade e para serem agentes activos do progresso e da libertação da Humanidade das suas próprias contradições e limitações.
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