Wednesday, January 06, 2016
Apontamentos políticos de 2016 - I
Podemos questionar-nos sobre qual a forma de construção dos orçamentos que financiam os mecanismos de concretização de direitos. Cada despesa do Estado corresponde, no essencial, ao conjunto de operações necessárias para a materialização de um serviço. Num Estado que tome a forma de estrutura política e repressiva ao serviço da burguesia, é natural que a maior parte dos serviços prestados pelo Estado o sejam a essa classe, tendencialmente concentrados na grande burguesia.
Ou seja, um Estado capitalista, ao serviço da classe dominante desse regime político, utiliza os meios legislativos, policiais, militares, culturais, educativos, jurídicos, para defender os privilégios, entretanto tornados direitos, da elite económica que corresponde igualmente – e no geral - à elite política. O Estado burguês capta, portanto, os impostos a todos os cidadãos, através dos meios de cobrança de que dispõe, com especial incidência sobre os rendimentos do trabalho e aliviando os rendimentos de capital. Isso significa que o Estado capitalista está ao serviço da grande burguesia com o dinheiro do proletariado. A burguesia usa os sistemas judicial, policial, educativo, fiscal, cultural, financeiro fornecidos pelo Estado e cujo financiamento é assegurado pelo remanescente valor do Trabalho após a apropriação da mais-valia. Ora, vejamos, a grande burguesia fica com a mais importante fatia do resultado do trabalho, a mais-valia e paga ao trabalhador apenas uma parte do valor da produção. Dessa parte com que o trabalhador fica, cerca de metade é pago em impostos a um Estado que colocará esse dinheiro ao serviço quase exclusivo da grande burguesia. Em Portugal, fruto da evolução política que resultou da crevolução e contra-revolução, tal como em muitos outros países, o Estado, apesar de estar tendencialmente orientado para satisfazer apenas os caprichos da burguesia, tem ainda um pendor social formal e material que não se pode ignorar.
Ou seja, se é correcto dizer-se que o Estado português está cada vez mais ao serviço da burguesia – com o financiamento a entidades privadas no ensino por exemplo – não é factualmente nem politicamente correcto dizer-se que é indiferente ou inútil o financiamento ao ensino público. A dialéctica, também em matéria de papel do Estado, exige-nos que nada seja analisado do ponto de vista estático, mas como uma dinâmica, como um processo que é feito de tensões constantes, de uma luta de classes que está longe de cessar. Aliás, entender o Estado como um aparelho cristalizado integralmente ao serviço de uma só classe é entender que ele é imune à realidade concreta em que existe. Tal como a luta de classes reflecte o impacto que o Estado tem sobre as classes em luta, também o Estado reflecte as tensões de classe que existem nas relações sociais, porque também o Estado, mesmo o ditatorial, é resultado de relações sociais e delas não se pode dissociar integralmente.
O facto de, a cada momento histórico, o Estado ser simultaneamente um instrumento de repressão sobre as classes dominadas e um prestador de serviços às dominantes, não significa que as dinâmicas da hegemonia não se repercutam no Estado. Pelo contrário, a hegemonia reflecte-se na orgânica e no papel do Estado. Mesmo um Estado que persista além da hegemonia – e portanto uma ditadura imposta à maioria – é permeável às tensões de classe e é forçado a permitir, aqui e ali, concessões para manter a ordem da classe dominante antes da ruptura. A ditadura da burguesia não é, para já, em Portugal, imposta pela força à maioria dos portugueses precisamente porque lhe tem favoráveis os ventos da hegemonia. Contudo, apesar de ser um país capitalista e onde a grande burguesia exerce cada vez mais o seu domínio, Portugal dispõe de um Estado que carreia para os dias de hoje, toda a história da luta de um povo, todo o lastro de Abril – não inteiramente neutralizado por Novembro.
Esta é uma organização de Estado, todavia, que se afasta a passos largos e acelerados de poder dar resposta aos problemas das pessoas e dos trabalhadores, pelo simples facto de que se coloca cada vez mais ao serviço dos grandes grupos económicos.
A democratização do Estado burguês parece uma contradição nos termos. E no longo prazo é, porque a sua democratização plena implica a sua transformação num Estado proletário, ou seja, a revolução socialista.
E tudo isto senti necessário para abordar o financiamento que o Estado deve assegurar aos serviços que presta. Ou seja, devemos assumir que o orçamento para assegurar os direitos das populações é definido em função da contingência ou que, pelo contrário, os impostos exigidos às actividades económicas e às pessoas devem ser definidos em função das necessidades do Estado. Uma perspectiva estática diria que qualquer gasto assumido pelo Estado estaria a favorecer única e exclusivamente a grande burguesia, mas uma avaliação da realidade concreta será obrigada a concluir que, apesar do definhamento, importantes parcelas do orçamento do Estado são destinadas a garantir serviços a camadas da população que integram as classes trabalhadoras. Pode mesmo dizer-se que a maior parte dos gastos públicos é destinada a suprir necessidades das camadas exploradas e que, por isso mesmo, a despesa pública tem sido alvo de uma infame campanha destinada a reorientá-la quase estritamente para o serviço da dívida e para o funcionamento de uma máquina estatal ao serviço estrito da classe dominante.
Portanto, pode a luta pelo socialismo ignorar a luta pela democratização do Estado burguês?
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