Confesso que tenho muita dificuldade em discernir qualquer linha de pensamento dos arrazoados simplistas com que José Rodrigues dos Santos insiste em fundamentar uma atoarda que lhe terá saído mal. Das duas uma, ou JRS é ignorante ao ponto de insistir porque julga que tem razão, ou JRS está profundamente comprometido com a linhagem teórica do revisionismo histórico em curso que tenta a todo custo aproximar o marxismo do fascismo. Ou ambas, que é uma coisa que JRS ainda não alcançou: a dialéctica.
Tendo em conta o caudal de argumentos desconexos, que traz consigo, como uma torrente, a lama de uma arrogância típica dos ignorantes, é muito difícil estruturar uma resposta que possa abarcar todos os aspectos daquilo a que JRS – não sei se como jornalista que cultiva a imparcialidade, se como escritor de ficção, se como investigador e historiador – se tenta referir sem apresentar uma única fonte que sustente as suas “provas”. Não deixa de ser curioso que um jornalista e escritor aponte como fonte para uma tese tão estapafúrdia como “o fascismo tem origem no marxismo” as suas próprias reflexões num livro de ficção. Sobre isso, para quem faz jornalismo e investigação, julgo que é tão básico como perceber que não se pode usar como fonte o veículo, por ser uma informação cuja confirmação se torna circular. Faz-me lembrar Paulo de Morais quando, durante os trabalhos da comissão de inquérito do BES, afirmava que a Comissão de Inquérito não sabia quem eram os beneficiários dos créditos do BES Angola porque não queria, sendo que ele já sabia. Instado pela Comissão a fazer chegar os documentos e provas que pudessem comprová-lo, Paulo de Morais envia os seus próprios artigos de opinião publicados na imprensa portuguesa. Ora, interagir com alguém que não compreende o ridículo dessa operação, torna-se demasiado penoso.
Mas, no caso, o marxismo merece o exercício de paciência e o esforço para que não restem dúvidas sobre a falsidade da tese de JRS.
Vejamos o que diz JRS, portanto:
1. Que alguns políticos se terão sentido incomodados com a sua afirmação de que “o fascismo tem origem no marxismo”e que recorreram, sem argumentos, ao insulto baixo.
Sobre isto, não sei a que políticos se refere e, à parte as reflexões sobre o termo “político” usado por JRS, eu sinto inserir-me nos “políticos” que se sentiram incomodados, porque me provoca incómodo, não que alguém possa dizer tamanhos disparates, mas que esse alguém seja um jornalista com carteira e um escritor muito lido, cuja credibilidade foi construída como um produto e é, por isso, uma ilusão de massas. Mas não deixa de ser uma “fonte credível” para um vasto conjunto de pessoas, pelo menos para todas quantas reputam como boa a literatura produzida pelo autor com uma chancela – por mais falsa que seja – de idoneidade e seriedade, até sob uma capa de uma certa cientificidade. Tendo em conta que não vi mais “políticos” a reagir ao jornalista, suponho que pelo menos eu seja visado neste seu desabafo, para o que, importa dizer, dispõe de espaço num jornal nacional. Em primeiro lugar, eu dei-me ao trabalho de traduzir “A doutrina do Fascismo” de Mussolini, para poder usar como fonte e base para o que dizia. E sim, é verdade que deduzi que JRS fosse um ignorante e escrevi-o. Daí a dizer que não utilizei argumentos quando publiquei as próprias frases de Mussolini que compõem um capítulo da obra “A doutrina do Fascismo” que se chama “A rejeição do marxismo”, julgo que tem de fazer um caminho só mais curto do que aquele que JRS tem de percorrer até poder discutir marxismo e fascismo, não como escritor de ficção, mas como político, filósofo ou mesmo historiador. Sim, porque JRS faz chacota e amesquinha a ciência política, arvorando-se em investigador, em pensador político e filósofo.
2. Que o marxismo se via como uma ciência “tão científico, na sua opinião, como a física de Newton”. JRS não compreende que o materialismo se opõe ao idealismo. Aqui começa o deslize de compreensão de JRS que acaba por se transformar na grandiosa conclusão própria de que “muito pouca gente sabe, mas é verdade”, “o facto de que o fascismo é um movimento que tem origem marxista”. Na verdade, Marx e Engels usavam a abordagem científica, materialista da História da Humanidade. O que JRS desconhece – mas bastava ter lido uma brochurazita sobre marxismo – é que o marxismo usa o método científico para estudar a realidade, mas em caso algum espera da realidade um comportamento linear. Aliás, o marxismo, com a utilização do método científico na construção dos seus fundamentos compreende muito bem quais são as forças que devem actuar para motivar as transformações sociais. O que JRS afirma “A ideia era simples: ao feudalismo sucede-se o capitalismo, cujas contradições levarão inevitavelmente os proletários à revolução que conduzirá ao comunismo. Nesta visão a história é teleológica e determinista. Não é preciso ninguém fazer nada, pois a revolução do proletariado é inevitável.” manifesta uma tremenda falta de compreensão sobre o marxismo para quem acha que pode sequer debatê-lo. Pelo contrário, quem resume o marxismo desta forma, não apenas demonstra ignorância, mas também que não cumpre os mínimos para um debate sério sobre o tema em que, por mais cacetada que leve, insiste.
Em nenhum momento, em forma alguma, Marx ou Engels terão dito ou escrito qualquer coisa semelhante à que JRS usa para definir o marxismo. Isso, por si só, é revelador.
3. JRS tenta dar alguma cientificidade aos seus delírios, chamando ao debate um monte de gente que ninguém conhece e assim tentando construir uma legitimidade e credibilidade pelo impacto. “Epá, o tipo deve saber muito disto.” Vamos lá então: em primeiro lugar, JRS confunde movimento com ideologia, acção política com doutrina. E fá-lo desajeitadamente e provavelmente sem se aperceber do erro que comete. É que, se por um lado é verdade e correcto dizer-se que o movimento fascista tem origem na instrumentalização dos movimentos operários, já é absurdo dizer que o fascismo tem origem marxista. E porquê? É verdade que perante a ascensão do proletariado enquanto classe revolucionária, as burguesias dominantes tentam condicionar o crescimento da luta e dar-lhe um carácter conservador e reaccionário. É, portanto, verdade, que o movimento operário e reivindicativo esteve na origem do crescimento do fascismo, porque o fascismo cresce precisamente pela manipulação desse movimento. Quanto mais divisões, mais alheamento, mais religiosidade, o fascismo pôde introduzir no movimento operário, mais o conseguiu tornar reaccionário. Ora, começa a perceber-se um primeiro patamar do problema de JRS: começa por confundir movimento operário com marxismo. Adiante, no seu artigo, vai mesmo confundir o conceito de socialismo dos anos 20 com marxismo.
4. Depois da gloriosa tirada que resume “Das Kapital” em três frases, JRS tenta dizer-nos que há duas grandes correntes no pensamento marxista que importam para a ligação entre o fascismo e o marxismo: a visão de Sorel e a visão de Bauer. Aproveita para dizer que o bolchevismo nasce com a perspectiva soreliana, assim desvalorizando Lenine. JRS diz que é Sorel que traça o destino do partido bolchevique ao definir, no seu livro “Reflexões sobre a violência” a vanguarda e a violência como fórmulas revolucionárias. Infelizmente para JRS, já Marx, uns bons 60 anos antes falava da eventual necessidade de violência e Lenine, 6 anos antes de Sorel escrever o livro que JRS diz ter sido a base da acção bolchevique, escreve o conhecido “Que fazer?”, obra na qual Lenine define com relativa precisão a necessidade de organizar política e socialmente o proletariado. Curiosamente, o anarquista Sorel é citado como fonte inspiradora, não por Lenin, mas por Mussolini. Começa bem, JRS.
5. Adiante, JRS diz: “Recorde-se que Marx e Engels consideravam que o capitalismo era uma fase necessária e imprescindível da história humana e que sem capitalismo nunca haveria comunismo. Os bolcheviques renegaram esta parte do marxismo quando preconizaram que na Rússia era possível passar diretamente de uma sociedade feudal para o comunismo, mas neste ponto os fascistas mantiveram-se marxistas ortodoxos ao aceitar que o capitalismo teria mesmo de ser temporariamente cultivado em Itália.” e consegue introduzir dois enganos. O primeiro é o de que os bolcheviques renegaram esta parte do marxismo. Com isto, JRS demonstra ignorar o escopo da NEP (nova política económica) e a persistência de várias práticas inerentes ao capitalismo na economia russa e soviética, assim decidida precisamente por terem os bolcheviques compreendido que a organização capitalista da economia potenciava, transitoriamente e para aquele contexto, melhores condições para o desenvolvimento das forças produtivas e para a superação do feudalismo e do atraso tecnológico da Russia. O segundo é o de dizer que defender o capitalismo é ser “marxista ortodoxo”. Pelo simples facto de que a consideração marxista sobre o papel do capitalismo era uma constatação de factos e não uma defesa do capitalismo. O marxismo não defende que o capitalismo deve preceder o socialismo por motivos morais, o marxismo identifica esse nexo como factual no fluxo da história. Mas numa perspectiva “marxista ortodoxa”, o que seria de esperar seria a defesa do capitalismo como fase transitória para o socialismo. Ora, é precisamente isso que o fascismo nega. O fascismo não afirma como objectivo, em fase alguma da sua história, a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Pelo contrário, o fascismo advoga a iniciativa privada e abomina o colectivismo. Ao longo de todos os discursos de Mussolini está presente essa visão, bem como na obra fundadora do fascismo enquanto doutrina “A doutrina do Fascismo”.
6. Sobre o nome do NSDAP, Partido Nacional-Socialista da Alemanha que JRS usa como prova máxima da sua tese abjecta, importa dizer duas coisas: em primeiro lugar, o socialismo não é o marxismo, o conceito de socialismo e a sua utilização naquela altura estava longe de ser meramente marxista. O socialismo é um modelo de organização da economia que não é fundado por Marx, nem por Engels. Aliás, Marx e Engels começam os estudo do capitalismo precisamente para compreender como se pode construir o socialismo, já conceptualizado muitos anos antes pelos socialistas utópicos. Em segundo lugar, a utilização do termo “socialista” no nome do NSDAP é o aproveitamento oportunista do momento histórico, económico e social que a Alemanha vivia naquela altura. É preciso relembrar JRS de que as eleições quase tinham sido vencidas pelo Partido Comunista Alemão e que o contexto era de ascensão do proletariado e que, por isso mesmo, Hitler não teria as mesmas hipóteses caso não tivesse optado por parasitar esse sentimento?
Infelizmente para os povos de todo o mundo, nem Hitler nem Mussolini tinham qualquer simpatia pelo socialismo sequer, muito menos pelo marxismo.
Mas JRS comete um erro fundamental que, no seu desenvolvimento, o faz confundir “movimento” com “doutrina”; “socialismo” com “marxismo”; “Ciência” com “método científico”; “dialéctica” com “determinismo”. É que JRS está no campo filosófico do idealismo: dos que preferem ter como facto tudo o que não é possível negar, a crença, a ideia. E os marxistas estão do lado oposto: no campo filosófico do materialismo: dos que preferem ter como facto aquilo que podem confirmar.
Curiosamente, JRS está no mesmo campo filosófico que Mussolini, o do idealismo.
O que é grave, não é que JRS tenha ideias próprias. Ainda bem que as tem. O que é grave é que amesquinhe quem dedica a vida aos estudos sérios, com cientificidade, com método. O que é grave é que não se aperceba do respeito que deve a quem o lê e o que é grave é que não perceba que a ligação entre marxismo e fascismo que ele estabelece não é matéria de facto, é matéria de opinião. E o que é grave é que uma pessoa que entra em nossa casa como imparcial jornalista seja, na verdade, um cruzado político que, como bom cruzado, porta o estandarte da religião. No caso, a anti-comunista.
Monday, May 30, 2016
Tuesday, May 17, 2016
Paralaxe
O erro de paralaxe é o erro que corresponde à aparente variação de posição de um determinado objecto em função da posição do observador. Na política, todos somos afectados por esse erro. Cada um de nós, combatendo ou não esse efeito, interpreta o mundo e os fenómenos políticos em função da perspectiva, do posicionamento político, da posição de classe social que integra ou com que se identifica. Mesmo podendo separar os campos de interpretação em duas grandes áreas de perspectiva: a idealista e a materialista, dentro de cada uma dessas áreas, cabem interpretações várias de um mesmo fenómeno.
Uma vez, ouvi uma rapariga dizer que era contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez porque só engravida quem quer, que hoje há muita informação e muito acesso aos métodos contraceptivos mais variados, que há consultas de planeamento familiar gratuitas e que na escola se aprende tudo quanto é necessário para fazer um planeamento ponderado da gravidez. Não concordei. Contudo, se olhasse à minha volta apenas, para o grupo de pessoas nos quais me insiro, praticamente todas aquelas considerações seriam válidas. Entre a juventude urbana e informada, descendente de professores e professoras, com acesso a educação e acompanhamento familiar em casa, com acesso a escola de qualidade e com centros de saúde com trabalho de proximidade na comunidade e consultas de planeamento familiar bem próximas de casa, todas as premissas da rapariga eram válidas: só engravida quem quer e, como tal, só aborta quem se desleixa.
Uma vez, num determinado contexto, defendi a legalização do consumo de drogas leves. O meu argumento fundamental assentava na liberdade do indivíduo e na capacidade de gerir o consumo de forma inteligente e sem prejudicar a sua vida social, laboral e familiar. Para o universo de jovens que eu conhecia, isso era uma realidade aparentemente material - que só mais tarde vim a compreender tratar-se de uma ilusão. Que há muita informação, que se um jovem adulto quer fumar um pof em casa descansado, deve ter acesso a droga de qualidade e a adquiri-la numa loja com regras e com garantias e certificado de origem. Na verdade, à minha volta, todo o consumo de drogas parecia informado, livre e divertido.
Uma outra vez ainda, disseram-me que a prostituição deveria ser regulamentada. Que quem quer prostituir-se deve ter direito a fazê-lo e que só se prostitui quem quer. Que assim, regulamentada a profissão, seria mais digno para quem decide prostituir-se e que seria mais higiénico para quem quer usar o serviço. É uma questão de liberdade individual, diziam-me! Que se eu quero vender o meu corpo, sou livre de o fazer e o Estado tem de respeitar a minha opção. Que eu sou informado e que até posso gostar de me prostituir e que quero é ter direitos como os restantes trabalhadores. E mais, quero pagar impostos e regularizar o mercado e o negócio das carnes e do acto sexual livre e consentido, pois só assim se combate o mercado ilícito e degradante da prostituição de rua. Tendo em conta o universo de pessoas em que me insiro, praticamente todas estas premissas se verificam.
Não faz muito tempo, ouvi argumentar que devíamos regulamentar o "negócio jurídico" da gestação de substituição. Por motivos óbvios, se uma pessoa quer ter um filho para ajudar um casal amigo que não pode, por motivos médicos, ter filhos, então essa pessoa deve ser livre de o fazer. Que é um avanço para as mulheres, uma exaltação da sua autonomia e liberdade. Tendo em conta o grupo de pessoas com quem me relaciono, praticamente todas estas considerações são válidas.
Portanto, numa visão centrada no "eu" e na minha experiência, na minha vida, nos meus conhecimentos e na minha capacidade cultural, social e económica de dar resposta às questões com que me deparo ao longo da vida é adequado afirmar que: não devemos despenalizar o aborto porque só aborta quem quer; não devemos proibir o mercado da droga porque somos todos suficientemente conscientes para fazer um consumo regrado de drogas leves; devemos regulamentar a prostituição porque só se prostitui quem quer; devemos criar um "negócio jurídico" para que uma mulher possa ser gestante de um filho do qual abdica antes de o conceber.
Quando se fazem leis, contudo, há uma questão que tem de prevalecer: a de que elas não se aplicarão apenas ao meu grupo de amigos, nem apenas a uma elite cultural ou social ou económica. As leis que se produzem não são exclusivas para os jovens, nem para os idosos, nem para os cultos, nem para os incultos, nem para os pobres, nem para os ricos. E, como tal, assumir uma posição sobre uma lei comportará um risco de erro tanto maior quanto mais presente for a componente individual da análise. O pior que posso fazer para interpretar uma questão política é pensar apenas em que medida se aplica a mim a referida questão. Em todos os referidos casos, a lei servir-me-ia: eu tenho informação suficiente para fazer uma vida sexual sem risco de gravidez e, acaso a gravidez sucedesse seria por erro meu; tenho informação suficiente e uma vida profissional e familiar que me permitem consumir drogas recreativas sem que isso represente a minha alienação social e cultural, sem que isso implique a degradação da minha saúde e sem representar um risco para a saúde pública; tenho condições económicas para recorrer à prostituição apenas e só se essa for a minha livre e consciente vontade.
Contudo, vejamos agora como se aplica a lei no concreto, em cada realidade e situação concreta e facilmente todos aceitamos que afinal nem tudo é tão simples quanto parece e que analisar a realidade colectiva à luz da minha experiência pessoal, não é mais do que, afinal, egoísmo involuntário.
Se é válido dizer para o meu grupo de amigos que só engravida quem quer, já para uma adolescente da periferia, de uma família pobre, sem acompanhamento familiar, sem escola ou em situação de insucesso ou abandono escolar, sem acesso a serviços de saúde, a coisa muda ligeiramente de figura.
Se é válido dizer que tenho condições para fumar uma ganza sem pôr em causa a minha vida toda e sem que isso signifique qualquer alienação do mundo cultural, social e político em que vivo, já diferente é dizer que o acesso livre a drogas para os jovens das pequenas localidades desertificadas, onde não há nada com que ocupar os tempos, onde não há oferta cultural, nem trabalho, nem nada, lhes permite conscientemente definir os seus limites no consumo de drogas, independentemente de serem leves ou pesadas - aliás, o que são drogas leves e pesadas?
Da mesma maneira, parece-me perfeitamente adequado dizer que eu só me prostituo se quiser. Aliás, em boa verdade, nada na lei em vigor me proíbe de o fazer e de pagar impostos por esse trabalho. O que a lei proíbe é o proxenetismo e o tráfico de seres humanos. Mas adiante, poder-se-á dizer o mesmo de uma mulher toxicodependente, caída no desemprego e no desamparo social? Poder-se-á dizer que uma pessoa enredada numa teia de extorsão e agressão, de chantagem e violência, de droga e de fome, só se prostitui porque quer?
Igualmente se pode dizer com relativa certeza que uma mulher do meu grupo de amigos tem condições para ser gestante de um filho para ajudar um casal de amigos que não pode ter filhos. A questão é que a lei aprovada não diz lá que é para os meus amigos. É para toda a gente e abre, melhor escancara, a porta para o aluguer do corpo humano. E se, por um lado, é certo que as minhas amigas não precisam de dinheiro ao ponto de alugarem a barriga, já o mesmo não se poderá certamente dizer de quem passa fome. É verdade que a lei proíbe o pagamento de qualquer valor pelo aluguer da barriga, mas coloca-se a questão mais simples de todas: como se prova o não pagamento de algo? A lei aprovada por proposta do BE, apresentada como um grande avançao, pode bem ser um alívio para um grupo de pessoas, mas pode vir a ser um perigoso e degradante mecanismo para muitas outras mulheres que serão obrigadas a abdicar de todos os direitos sobre um filho antes mesmo de o conceberem.
Este erro de perspectiva coloca-se também ao contrário. E também nos prejudica, a nós comunistas, e fecha-nos. Se entendermos a visão e a perspectiva do outro como uma forma deliberada de egoísmo ou de idealismo, se entendermos que só a nossa visão das coisas está correcta, como que por magia, ou por iluminação reservada a uma seita. Se não compreendermos que entre as massas, o idealismo é dominante e que a abordagem individualista dos problemas sociais não resulta da vontade de cada, mas da própria cultura dominante, se não percepcionarmos que a indisponibilidade para compreender a nossa forma de abordar e interpretar os problemas não resulta de uma má-vontade, mas de uma concepção distinta do mundo, então estamos a desistir de alargar, estamos a capitular por nos recusarmos a compreender que as barreiras existem e que nos cabe a nós ultrapassá-las. Ou contamos que seja a doutrina dominante a fazê-lo?
Se somos nós, comunistas, revolucionários, que estamos em período de resistência e de acumulação de forças, está nas nossas mãos, apenas nas nossas mãos, romper o cerco com que a cultura dominante nos isola. E de cada vez que hostilizamos quem pensa que pensa pela sua própria cabeça só porque não pensa como nós, de cada vez que interpretamos a dificuldade de compreender a nossa mensagem como "ignorância", como "adormecimento" ou "alienação", estamos a fechar uma porta.
E nós, comunistas, revolucionários, queremos essas portas escancaradas de par em par.
Uma vez, ouvi uma rapariga dizer que era contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez porque só engravida quem quer, que hoje há muita informação e muito acesso aos métodos contraceptivos mais variados, que há consultas de planeamento familiar gratuitas e que na escola se aprende tudo quanto é necessário para fazer um planeamento ponderado da gravidez. Não concordei. Contudo, se olhasse à minha volta apenas, para o grupo de pessoas nos quais me insiro, praticamente todas aquelas considerações seriam válidas. Entre a juventude urbana e informada, descendente de professores e professoras, com acesso a educação e acompanhamento familiar em casa, com acesso a escola de qualidade e com centros de saúde com trabalho de proximidade na comunidade e consultas de planeamento familiar bem próximas de casa, todas as premissas da rapariga eram válidas: só engravida quem quer e, como tal, só aborta quem se desleixa.
Uma vez, num determinado contexto, defendi a legalização do consumo de drogas leves. O meu argumento fundamental assentava na liberdade do indivíduo e na capacidade de gerir o consumo de forma inteligente e sem prejudicar a sua vida social, laboral e familiar. Para o universo de jovens que eu conhecia, isso era uma realidade aparentemente material - que só mais tarde vim a compreender tratar-se de uma ilusão. Que há muita informação, que se um jovem adulto quer fumar um pof em casa descansado, deve ter acesso a droga de qualidade e a adquiri-la numa loja com regras e com garantias e certificado de origem. Na verdade, à minha volta, todo o consumo de drogas parecia informado, livre e divertido.
Uma outra vez ainda, disseram-me que a prostituição deveria ser regulamentada. Que quem quer prostituir-se deve ter direito a fazê-lo e que só se prostitui quem quer. Que assim, regulamentada a profissão, seria mais digno para quem decide prostituir-se e que seria mais higiénico para quem quer usar o serviço. É uma questão de liberdade individual, diziam-me! Que se eu quero vender o meu corpo, sou livre de o fazer e o Estado tem de respeitar a minha opção. Que eu sou informado e que até posso gostar de me prostituir e que quero é ter direitos como os restantes trabalhadores. E mais, quero pagar impostos e regularizar o mercado e o negócio das carnes e do acto sexual livre e consentido, pois só assim se combate o mercado ilícito e degradante da prostituição de rua. Tendo em conta o universo de pessoas em que me insiro, praticamente todas estas premissas se verificam.
Não faz muito tempo, ouvi argumentar que devíamos regulamentar o "negócio jurídico" da gestação de substituição. Por motivos óbvios, se uma pessoa quer ter um filho para ajudar um casal amigo que não pode, por motivos médicos, ter filhos, então essa pessoa deve ser livre de o fazer. Que é um avanço para as mulheres, uma exaltação da sua autonomia e liberdade. Tendo em conta o grupo de pessoas com quem me relaciono, praticamente todas estas considerações são válidas.
Portanto, numa visão centrada no "eu" e na minha experiência, na minha vida, nos meus conhecimentos e na minha capacidade cultural, social e económica de dar resposta às questões com que me deparo ao longo da vida é adequado afirmar que: não devemos despenalizar o aborto porque só aborta quem quer; não devemos proibir o mercado da droga porque somos todos suficientemente conscientes para fazer um consumo regrado de drogas leves; devemos regulamentar a prostituição porque só se prostitui quem quer; devemos criar um "negócio jurídico" para que uma mulher possa ser gestante de um filho do qual abdica antes de o conceber.
Quando se fazem leis, contudo, há uma questão que tem de prevalecer: a de que elas não se aplicarão apenas ao meu grupo de amigos, nem apenas a uma elite cultural ou social ou económica. As leis que se produzem não são exclusivas para os jovens, nem para os idosos, nem para os cultos, nem para os incultos, nem para os pobres, nem para os ricos. E, como tal, assumir uma posição sobre uma lei comportará um risco de erro tanto maior quanto mais presente for a componente individual da análise. O pior que posso fazer para interpretar uma questão política é pensar apenas em que medida se aplica a mim a referida questão. Em todos os referidos casos, a lei servir-me-ia: eu tenho informação suficiente para fazer uma vida sexual sem risco de gravidez e, acaso a gravidez sucedesse seria por erro meu; tenho informação suficiente e uma vida profissional e familiar que me permitem consumir drogas recreativas sem que isso represente a minha alienação social e cultural, sem que isso implique a degradação da minha saúde e sem representar um risco para a saúde pública; tenho condições económicas para recorrer à prostituição apenas e só se essa for a minha livre e consciente vontade.
Contudo, vejamos agora como se aplica a lei no concreto, em cada realidade e situação concreta e facilmente todos aceitamos que afinal nem tudo é tão simples quanto parece e que analisar a realidade colectiva à luz da minha experiência pessoal, não é mais do que, afinal, egoísmo involuntário.
Se é válido dizer para o meu grupo de amigos que só engravida quem quer, já para uma adolescente da periferia, de uma família pobre, sem acompanhamento familiar, sem escola ou em situação de insucesso ou abandono escolar, sem acesso a serviços de saúde, a coisa muda ligeiramente de figura.
Se é válido dizer que tenho condições para fumar uma ganza sem pôr em causa a minha vida toda e sem que isso signifique qualquer alienação do mundo cultural, social e político em que vivo, já diferente é dizer que o acesso livre a drogas para os jovens das pequenas localidades desertificadas, onde não há nada com que ocupar os tempos, onde não há oferta cultural, nem trabalho, nem nada, lhes permite conscientemente definir os seus limites no consumo de drogas, independentemente de serem leves ou pesadas - aliás, o que são drogas leves e pesadas?
Da mesma maneira, parece-me perfeitamente adequado dizer que eu só me prostituo se quiser. Aliás, em boa verdade, nada na lei em vigor me proíbe de o fazer e de pagar impostos por esse trabalho. O que a lei proíbe é o proxenetismo e o tráfico de seres humanos. Mas adiante, poder-se-á dizer o mesmo de uma mulher toxicodependente, caída no desemprego e no desamparo social? Poder-se-á dizer que uma pessoa enredada numa teia de extorsão e agressão, de chantagem e violência, de droga e de fome, só se prostitui porque quer?
Igualmente se pode dizer com relativa certeza que uma mulher do meu grupo de amigos tem condições para ser gestante de um filho para ajudar um casal de amigos que não pode ter filhos. A questão é que a lei aprovada não diz lá que é para os meus amigos. É para toda a gente e abre, melhor escancara, a porta para o aluguer do corpo humano. E se, por um lado, é certo que as minhas amigas não precisam de dinheiro ao ponto de alugarem a barriga, já o mesmo não se poderá certamente dizer de quem passa fome. É verdade que a lei proíbe o pagamento de qualquer valor pelo aluguer da barriga, mas coloca-se a questão mais simples de todas: como se prova o não pagamento de algo? A lei aprovada por proposta do BE, apresentada como um grande avançao, pode bem ser um alívio para um grupo de pessoas, mas pode vir a ser um perigoso e degradante mecanismo para muitas outras mulheres que serão obrigadas a abdicar de todos os direitos sobre um filho antes mesmo de o conceberem.
Este erro de perspectiva coloca-se também ao contrário. E também nos prejudica, a nós comunistas, e fecha-nos. Se entendermos a visão e a perspectiva do outro como uma forma deliberada de egoísmo ou de idealismo, se entendermos que só a nossa visão das coisas está correcta, como que por magia, ou por iluminação reservada a uma seita. Se não compreendermos que entre as massas, o idealismo é dominante e que a abordagem individualista dos problemas sociais não resulta da vontade de cada, mas da própria cultura dominante, se não percepcionarmos que a indisponibilidade para compreender a nossa forma de abordar e interpretar os problemas não resulta de uma má-vontade, mas de uma concepção distinta do mundo, então estamos a desistir de alargar, estamos a capitular por nos recusarmos a compreender que as barreiras existem e que nos cabe a nós ultrapassá-las. Ou contamos que seja a doutrina dominante a fazê-lo?
Se somos nós, comunistas, revolucionários, que estamos em período de resistência e de acumulação de forças, está nas nossas mãos, apenas nas nossas mãos, romper o cerco com que a cultura dominante nos isola. E de cada vez que hostilizamos quem pensa que pensa pela sua própria cabeça só porque não pensa como nós, de cada vez que interpretamos a dificuldade de compreender a nossa mensagem como "ignorância", como "adormecimento" ou "alienação", estamos a fechar uma porta.
E nós, comunistas, revolucionários, queremos essas portas escancaradas de par em par.
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