Friday, April 10, 2009

natureza humana ou natureza de classe

A natureza humana serve de justificação para as maiores atrocidades que se cometem, serve de justificação para o conformismo, para o comodismo, para os comportamentos violentos e, curiosamente, serve para justificar os actos desumanos. Numa perspectiva política a natureza humana e as suas formas, ocupam um lugar de destaque no folclore ideológico que nos rodeia. É, pois curioso, que a interpretação política e filosófica do mundo e dos seus problemas possa basear-se num tão vago conceito como natureza humana por parte de alguém que pretenda ter uma visão revolucionária do mundo.


A primeira de todas as batalhas políticas trava-se no plano ideológico e, como consequência, no plano filosófico. E as duas grandes forças que se degladiam nessa batalha são o idealismo e o materialismo.


Ora dizia-se na caixa de comentários do anterior post aqui no império que o que se mantém imutável desde os dias de Marx não são os conflitos de classe e o sistema classista mas sim a natureza humana e que é, portanto sobre ela que importa agir. Também se disse a determinada altura dessa interessante discussão que os “ismos” ideológicos têm desempenhado um papel de obstáculo ao desenvolvimento da luta revolucionária.


Partamos então para uma análise mais aprofundada do conjunto de coneitos e paradigmas filosóficos que emergem da própria ideia de “natureza humana” nos termos em que ela é utilizada. A burguesia sempre difundiu como base da sua hegemonia cultural a ideia de que a natureza humana é uma matriz em si mesma que é quase ou mesmo inalterável e que assenta no egoísmo e egocentrismo. Com essa doutrina conservadora, a burguesia impõe como “natureza humana” a sua “natureza de classe”, utilizando os meios de comunicação e educação de massas ao seu dispor, a classe dominante sedimenta a sua própria natureza exploradora, competitiva, egocêntrica, predatória, assassina e violenta junto das massas. Álvaro Cunhal aborda bem a forma como o proletariado resiste a esta ofensiva através da partilha de um código moral distinto, na brochura sobre “a superioridade moral dos comunistas”. Ou seja, a “natureza”, numa perspectiva do estudo da ética e do comportamento humano é aproximadamente a síntese e a súmula dos comportamentos e códigos morais de cada ser humano. Numa abordagem simplista e horizontal poderíamos dizer que existe então uma natureza humana, sendo então essa natureza humana um modelo imutável que determina o comportamento humano.


Todavia, numa perspectiva materialista, importa relacionar o comportamento material e ético do homem com o ambiente e as relações materiais que o rodeiam. Assim rapidamente chegaremos a um ponto de vista mais amplo que começa a fazer a distinção entre as várias “naturezas humanas” - passando a contemplar então as “naturezas de classe”, ou seja, os comportamentos e códigos morais de cada classe social. Dizer que a natureza humana é o que define as relações sociais e é o que se mantém ao longo da história da Humanidade é subalternizar a luta de classes e ignorar as diferenças genéticas que existem entre a “natureza moral” do proletariado, dos trabalhadores e popular e a “natureza amoral” da burguesia. Mas mais grave do que isso, é esquecer que o que determina a natureza subjectiva do Homem é a sua relação materialista com o meio, a sua posição nas relações sociais e produtivas.


As abordagens idealistas, tão próprias da burguesia e da pequena burguesia (seja ela de esquerda ou de direita), são aquelas que centram na “natureza humana” as variáveis que determinam as relações materiais e sociais. Isso é subverter por completo o processo e aceitar a linguagem conservadora actual que contrapõe a tal “natureza humana” à construção do socialismo, atribuindo a todos os homens e mulheres a sede de poder, a tendência para a corrupção e o individualismo. Com esta abordagem, ignora-se a história da Humanidade e nega-se a possibilidade da construção do Homem Novo. E dirão a esta altura os mais encaixados e acomodados ao sistema que o Homem Novo é um adorno romântico da ideologia comunista. Mas na construção do Homem Novo e na aceitação de que é possível fazer essa construção, está a pedra de toque do dilema “natureza humana vs natureza de classe”.


Para aqueles que no Homem Novo vêem apenas um romantismo socialista, basta perguntar-lhes se é ou não verdade que o Homem de hoje não é diferente do Cro-Magnon, ou do Homem da Idade Média. Isso rapidamente os obrigará a reconhecer que existem diferenças substanciais entre os comportamentos humanos de cada época e que, por consequência, Homem Novo é uma figura que marca as etapas históricas do passado e continuará a marcar as do futuro. Quando se diz que é a natureza humana que se mantém e que, como tal, podemos aceitá-la como um dado objectivo no nosso pensamento político revolucionário, ignora-se ou confunde-se que o que se mantém é a relação entre o Homem e os estímulos que recebe. No geral, poder-se-á quanto muito afirmar que os comportamentos materiais e éticos dos homens se têm mantido relativamente estáveis enquanto os estímulos materiais e sociais à sua volta se mantém igualmente. Ou seja, a tal de natureza humana é definida, não por um padrão de comportamentos pré-definido, mas pelo facto de ser racional e, sendo racional, redunda em respostas iguais para estímulos iguais. Já se o comportamento humano fosse errático ou caótico, tal natureza de consistência comportamental perante um estímulo igual não existiria.


A natureza humana é então um produto da relação do homem com o meio e é, portanto, tão variável quanto o são as relações sociais e os sistemas de organização da sociedade. O Homem sujeito a determinados estímulos reproduzirá proporcionais comportamentos. Ou seja, a classe dominante tem também como preocupação dominar os estímulos que fornece às restantes classes, como forma de moldar o seu comportamento. No entanto, a natureza humana não é má nem boa, é fruto racional das situações a que está sujeita.


Identificar na natureza humana uma espécie de “instinto primordial” que nos leva a roubar, matar, explorar, escravizar, etc.. é tão ridículo como identificar na natureza humana um “instinto primordial” que nos leva a ser solidários e empáticos com os outros. Os estímulos e a relação material que cada ser humano tem com o meio determinam o seu comportamento. No entanto, a racionalidade impõe comportamentos que se tornam padrões, por indução. Os homens das classes trabalhadoras rapidamente se aperceberam que a cooperação e a solidariedade são formas mais eficazes de combater a adversidade e construir o progresso, daí também se enraizarem com mais significado esses valores nas classes exploradas. No entanto, no meu entender, essa é uma questão relacionada com a interpretação racional do meio e não com um instinto solidário que nasce com o Homem. Da mesma forma, os homens das classes exploradoras sempre identificaram nos restantes membros da sua classe um adversário por competição, sempre viram nas restantes classes, os seus inimigos e, como tal, o seu comportamento e código moral é mais competitivo, predatório e muitas vezes violento e assassino. Esta dualidade de comportamentos mostra bem que, no quadro da sua racionalidade e interpretação do mundo, as naturezas humanas ramificam-se em naturezas de classe.


Significa isto que os trabalhadores não sentem a competição e o individualismo? Ou que a burguesia é insensível à miséria e não pode ter compaixão? No meu entendimento, esta antítese não nega a tese essencial. Os trabalhadores não são impermeáveis às pressões ideológicas das classes dominantes e a pulverização e desarticulação das formas de organização da produção e, consequenetemente, das formas de organização do operariado, contribuem para uma cada vez maior permeabilidade do operário à doutrina ideológica idealista. Dir-se-á que o trabalhador que adopta uma postura individualista o faz racionalmente porque os estímulos à sua volta lhe indicam que essa é a melhor forma de melhorar a sua vida, individualmente considerada.

Da mesma forma, o membro da burguesia, mesmo da grande burguesia pode manifestar comportamentos de compaixão e empatia com os outros. É exactamente desta incapacidade de ignorar o sofrimento e de simultaneamente pretender manter as relações que posicionam o burguês como classe dominante, que nascem as práticas caritativas. A abordagem kantiana a esta questão apoia inclusivamente esta análise. Para Kant, a moral é uma forma de integração e aceitação social do indivíduo. Ou seja, o indivíduo “pratica o bem” porque isso o beneficiará perante o meio. Ao que Kant nunca chegou foi ao reconhecimento de que o meio é variável e que, como tal, também o conceito de “bem” é variável. Ao que Kant também nunca chegou foi ao reconhecimento de que existem assimetrias de classe que moldam os comportamentos morais do indivíduo.


O idealismo é pois o instrumento mais poderoso da burguesia, porque centra o comportamento humano em torno das questões subjectivas e porque ilude a natureza materialista da ética e da moral. A sacralização de comportamentos nobres, desligados de uma abordagem materialista e a centralização ideológica no indivíduo são os meios filosóficos do capitalismo e não só. São, sempre que necessário, os instrumentos que fundam os fascismos e nazismos.


Curiosamente, anarquistas, esquerdistas, fascistas e nazis, partilham como base teórica das suas análises políticas e filosóficas o idealismo.

20 comments:

Maria said...

Fantástico post!
Parabéns :)

Paulo Mouta said...

Esta é uma questão bastante pertinente, até porque se encontra intimamente ligada com a questão do post anterior. Eu concordo quase na totalidade com o texto mas fico algo decepcionado por não ter visto em paralelo com a análise da “natureza humana” tal como a coloquei no comentário, uma reflexão, mesmo que simbólica, de quanto mal foi produzido pela inúmera quantidade de “ismos” que nasceram das ideias de Marx e Engels. É que essa diversidade - que poderia e deveria ter sido um sinal positivo de que para cada nação ou estado existe uma solução própria a aprender nesse processo de construção pela superação do sistema capitalista – estão revelados historicamente casos de construção de meras aberrações políticas e sociais. Já lá chegaremos.

A natureza humana como conjunto dos factores inatos acrescido de todos os inputs que recebemos ao longo da nossa existência (nós e o meio, nós e cada circunstância a cada momento) pode fundir-se numa natureza de classe? Penso que sim, mesmo tratando-se de indivíduos radicalmente diferentes poderão percepcionar e potenciar os interesses da classe a que pertencem. Mas também poderão não o fazer. E a questão central a ter em conta é partirmos da análise social dos nossos dias. São as classes hoje o que eram à altura da crítica marxista ao capitalismo ou sofreram alterações profundas? Como distinguir hoje essa natureza que distingue a classe? O que é hoje a burguesia e em que se traduz hoje o proletariado?

Não foi por acaso que nos dois comentários referi o exemplo dos processos revolucionários sul-americanos. Imagino que das favelas de Caracas poucos saibam ou queiram saber quem foi Mao ou Trotsky ou Bakunine ou Proudhon ou que haja muitos daqueles homens e daquelas mulheres que tenham um conhecimento profundo ou mesmo superficial da obra de Marx e Engels e de todas as interpretações que fizeram derivar em ideologias tão díspares desde a social-democracia ao nacional-bolchivismo. Ou seja, essas tretas interpretativas estão e têm de estar arredadas do processo revolucionário pois este não se faz pela intelectualização individual (diria mesmo individualista) das obras fundamentais do socialismo. Isso é colocar a pseudo-intelectualidade a desenvolver um papel que não lhe pertence na construção socialista. As coisas constroem-se e planificam-se de baixo para cima. As pessoas organizam-se da forma como entendem que o devem fazer. A intelectualidade vê-se ultrapassada pela situação porque assim tem de ser um processo revolucionário. Embora se tente por todos os meios possíveis e quase impossíveis, o envenenamento de um processo deste género torna-se tarefa muito complicada porque as pessoas estão hoje munidas das suas próprias participações activas, nas suas ruas, bairros, comunidades, na comunicação social independente que teve de ser criada para combater a arma mais forte dos inimigos da revolução. Essa participação é o antídoto para o enxovalhamento do ideal socialista e comunista que, infelizmente, não conseguimos produzir na Europa.

As pessoas vêem-se representadas nas coisas mais distintas independentemente da proveniência de classe. O nosso mundo está construído na base do “ter” e não do “ser” e muito menos do “ser humano”. Os tais códigos morais de classe estão há muito minados pois a competetividade funciona como uma espécie de jogo da cadeira onde vamos sucessivamente eliminando os nossos iguais até sermos nós eliminados. Não são eles (os que têm o poder) que contrapõem a natureza humana à construção do socialismo. A natureza humana é em si a negação da possibilidade da construção do socialismo. Ou aparentemente assim é. Contudo, esse pedaço de conteúdo que está, efectivamente, contido nas teorias conservadoras de que as ideologias acabaram e que todas eram totalitárias, é contrariado por muitos milhares de pessoas que todos os dias dedicam muito do seu esforço pessoal (individual, há que dizer sem complexos) para a participação em colectivos que têm como finalidade última precisamente a construção do socialismo. E não se trata como na religião de um messias que há-de vir. Pelo contrário, trata-se de uma realidade que está por construir, por todos nós, com todos os nossos defeitos como indivíduos, mas que fazemos um esforço para intervir no sentido da construção de um ideal que muitos dão como morto e que outros tantos comparam (infelizmente com algumas razões para o fazer) a ideais que são precisamente o culto do anti-humanismo e do individualismo.

A questão do “Homem Novo” é assim, o centro da possibilidade ou mesmo da necessidade da construção do socialismo. Mas como chegar lá? Está mais do que visto que a via da democracia parlamentar apenas tem agudizado a alienação das pessoas perante a política e a participação social pelo que gera um ciclo vicioso de fraude totalitária do pensamento e prática anti-ideológicos do liberalismo. Já está comprovado que todas as forças se unem contra governos eleitos de forças progressistas para os derrubar (ver o caso da Moldávia na Europa actual) desestabilizando politica e economicamente, lançando acções subversivas contra as instituições legitimamente eleitas dentro do sistema. Isolando e bloqueando tudo quanto for possível de modo a destruir qualquer possibilidade de uma fórmula alternativa. No continente americano as movimentações políticas contra o império resultaram já em muitas reacções e uma delas foi precisamente a reactivação da frota marítima dos EUA que tem como objectivo patrulhar as águas quentes da zona. O “Homem Novo” nasce onde? O velho morre? O velho é morto? O velho converte-se em socialista? Sabemos que o poder não muda de classe sem que haja uma cruel resistência. Tão cruel que planta parte dessa crueldade nos processos revolucionários conhecidos até agora. As lutas ou defesas contra um monstro geraram outros monstros e, por pouco, sobreviveu o ideal que lhes serviu de álibi.

Acredito que, tendo havido uma evolução positiva no homem e na sociedade, esta foi alvo de um retrocesso perigoso com aquilo que consideraram ser o triunfo do ultra-liberalismo de Milton Friedman aplicado na América, na Europa. Nós recuámos civilizacionalmente para uma situação crítica de alienação de massas projectada pelo entretenimento e pelo culto dos objectos e das tecnologias. Não tenho nada contra as tecnologias e o desenvolvimento, contudo este foi feito de forma a acentuar o ter sobre o ser, o individual sobre o colectivo e o consumidor sobre o ser humano. Este retrocesso pariu esta crise que nos atinge, mas pior que isso, debitou gerações dos tais idealistas que hoje batem nos pais, que os mandam para a reforma ou para o desemprego aos 40 anos e que aos 60 os atiram para o lixo. O ser humano andou para trás com a concepção liberal.

Daí insistir tanto na questão dogmática. Os vários “ismos” que nasceram do ideal marxista não podem ser inconciliáveis. Falhar nessa conciliação é falhar no processo de projectar o Homem Novo e representa dar de mão beijada a vitória à desumanidade.

Tal como já disse, concordo com a grande maioria do conteúdo do post representando uma análise excelentemente estruturada do tema. Aliás, aproveito para dar os parabéns pelo interessante espaço de debate neste blogue. Permite-me que discorde da conclusão. Se estudarmos a história do movimento sindical português e como dele nasceu o PCP veremos que a sua raiz está precisamente no anarco-sindicalismo (um outro “ismo”) e que nem por isso o Partido deixou de evoluir no pragmatismo da sua acção política por daí derivar. Aliás, isso representa a prova da possibilidade de conciliação de várias leituras do ideal marxista. Tanto que, uma leitura atenta e aprofundada dos documentos programáticos do PCP, sem quaisquer preconceitos, pode ser facilmente aceite por qualquer progressista, conhecendo ou não os fundamentos teóricos do marxismo-leninismo (outro “ismo”).

Sérgio Ribeiro said...

Excelentes reflexões, pelo qque são epelo debate que provocam.
A exigirem paragem sem tempo a pressionar - aquele terrível "é grande o texto... fica para logo", aquele logo que raro aparece tantas as solicitações e tarefas.
Feita a leitura, estimulado por ela - quer dos textos, quer dos comentários (também textos) -... fica para logo.
Até logo!
Entretanto, um grande abraço

Nelson Ricardo said...

Genial!

Há muito tempo que queria descobrir o que era o materialismo dialéctico e este texto foi sem dúvida o que melhor me elucidou até agora.

miguel said...

comrevde, escusas de vir aqui gozar. o texto nem sequer é sobre o que é o materialismo dialéctico.

Nelson Ricardo said...

Nesse caso, erro meu e peço desculpa. Deu-me a parecer que era sobre o materialismo dialéctico. Não era de todo a minha intenção gozar ou denegrir o post, até porque o considero muito bom e pertinente.

miguel said...

er... agora fiquei eu confuso. nesse caso.. ok. obrigado pela tua visita!

miguel said...

Paulo Mouta, as definições de classe definidas na altura por marx e por engels mantêm-se absolutamente intocadas. O que pode ter-se alterado, e assim foi, foi o peso relativo de cada classe e as características das classes. No entanto, o proletariado aí está à vista claramente, tal como a burguesia. e nesse aspecto, as únicas coisas que mudaram foram os seus hábitos, o uso da tecnologia e a cultura envolvente. O papel de cada uma das classes na produção e a sua relação com os meios de produção, não só mantém as características apontadas por marx como a sua evolução confirma a perspectiva marxista de capital sempre em crescimento e a análise leninista sobre o imperialismo.
Não vejo, em que é que isso se alterou.

Dizer que as classes hoje já não são o que eram é fugir exactamente para a abordagem idealista e subjectiva. E isso, meu amigo, é tentar descodificar o mundo com a lupa dos que escondem a verdade. É uma tarefa impossível.

miguel said...

maria. obrigado por gostares do post. parabéns é que é coisa que não espero.
beijinhos

Paulo Mouta said...

As classes não sofreram alterações? Não houve um definhamento claro dos sectores primário e secundário? Não está hoje a grande maioria da população activa no sector terciário, logo, a desenvolver trabalho não produtivo? Se nos limitarmos a falar do proletariado como no tempo de Marx falamos não da maioria do povo mas de uma minoria. Ao que teoricamente o PCP responde, e muito bem (certamente estaremos de acordo) que o facto das pessoas terem deixado de ter papeis produtivos não retira o facto de, nestes novos papeis, terem relações de trabalho que podem ser caracterizadas como proletarizadas. Hoje o grosso do mercado de trabalho está precisamente na distribuição dos bens que uma minoria seleccionada produz. E é na gestão da escassez e da procura desses bens que a economia capitalista encontra terreno para se manter.

A sociedade e o conceito de classes mudou e muito mas o pressuposto continua o mesmo e mais agravado. Cada vez menos pessoas possuem cada vez mais bens e capital.

miguel said...

Caro amigo Paulo,
às vezes pergunto-me se estaremos a falar a mesma linguagem.
Na minha linguagem, classes não são profissões. Na minha linguagem, classes sociais não são comportamentos ou culturas. Na minha linguagem, classes sociais são os conjuntos de homens e mulheres que têm com os meios de produção a mesma relação. E é assim que os defino.

Nesse sentido, o proletariado mantém-se e provavelmente cresceu muito desde marx, tendo em conta a industrialização galopante e o desenvolvimento dos meios de produção. Mesmo o operariado - parte integrante do proletariado - é hoje uma enorme proporção da população humana.

O que me parece que o Paulo está a fezer é tentar jogar no tabuleiro do materialismo com as peças da subjectividade idealista. O que importa,na minha perspectiva e opinião, é sempre a relação entre o ser humano e os meios de produção. Se, entre o proletariado, hoje existem mais trabalhadores dos serviços isso em nada muda a classe a que pertencem - que permanece o proletariado. Pode, mas isso levar-nos-ia para uma outra questão, influenciar a sua percepção de classe e a sua consciência de classe. Porque o que se verifica com a consolidação do capitalismo é o aburguesamento cultural de muitas camadas proletárias, obstruindo a progressão da consciência de classe. Mas isso ultrapassa muito a definição de classes e entra na discussão da "hegemonia", da "propaganda" e da consciência de classe.

um abraço

Anonymous said...

O texto está bom relativamente à questão da natureza humana é certo. Mas provavelmente também por isso é que continuamos a ter quem temos a participar nos cargos políticos. Não basta desenvolver bem a teoria sobre esta questão, se no dia a dia esquecemos ou pelo menos deixamos passar ao lado ou sem minimamente explicar por exemplo por que é que a lista ao PE da CDU só tem um operário de facto, já que outros podemos também dizer que são ou foram proletarizados, mas de facto os operários não estão ali representados e é mau muito mau. É que pelo que podemos ver tentou-se aproveitar uma causa - luta dos professores - para construir a lista e é mau muito mau. É que é exactamente esse um dos grupos proletarizados que tem dado as vitórias tanto ao PS como ao PPD. Tenho dúvidas que tal resposta responda às exigências dos operários que tem levado com esta política desastrosa de miséria e de escravidão. Outra das respostas que transparece dos colunáveis é pretender ser uma lista jovem - salvo o Saramago e... - ou ainda as questões ecológicas e não é por estar na lista um homem dos Verdes, mas outros que se lhe seguem. Sempre foi dito que o que deve prevalecer é a luta de classes e não a defesa de causas individualmente consideradas sejam elas quais forem. Ou mudou alguma coisa?
ANÓNIMO SEM GOSTO?
RUMO À VITÓRIA

Paulo Mouta said...

Não estou a confundir. Citando: "Na minha linguagem, classes sociais são os conjuntos de homens e mulheres que têm com os meios de produção a mesma relação."

Ora, quais meios de produção? O que produzem de facto as cadeias de distribuição? O que produzem os bancos? E as consultoras? A indústria e agricultura representam uma minoria ridícula do nosso povo. E isto responde à questão levantada pelo comentador anónimo. As listas do PCP reflectem duas coisas importantes: a estrutura social actual e dentro desta os elementos que se destacam por conseguirem representar o melhor possível os interesses da maioria da população.Mas voltando à questão base, o que produz um vendedor? É certo que tem uma relação com os meios de produção mas indirecta e independente do seu próprio objecto de trabalho.

Penso que a proletarização nos dias de hoje não é pelo factor produção mas antes correlação entre o factor vínculo laboral desfavorável ao assalariado em contraponto com a mais-valia gerada. Quanto maior é a mais-valia menor tende de ser o custo do factor trabalho. Todas as reduções ou congelamento de vencimentos ao abrigo do álibi da actual crise mostram que os assalariados se sujeitam a vínculos contratuais falsos, a relações precárias de trabalho fora inclusivamente do abrigo da já muito mutilada legislação do trabalho actual. Esses vínculos gerados nessa dependência e do medo produzem essa dificuldade de adquirir consciência de classe. É que dentro dos assalariados, mesmo com vínculos precários, há os que estão impreterivelmente sempre do lado de quem explora a mais-valia do seu trabalho. Diga-se de passagem, pelos resultados das eleições, a maioria… É possível dar a volta a esta situação? Claro que sim. Não é fácil mas é possível e por isso aqui estamos. Mas mais uma vez refiro o comentário do anónimo que refere, e muito bem que, as camadas da população que mais mobilizadas foram nos últimos tempos, serão precisamente as que irão depositar os seus votar para dar a vitória aos dois grandes partidos do sistema. Desengane-se quem pensa que são votos contados à esquerda do PS…

Estas situações de crise geram dois fenómenos curiosos. O aniquilamento das pequenas e médias iniciativas empresariais parasitárias tendo como contraponto o enorme alargamento dos monopólios e oligopólios já de si mesmos, pela sua natureza, parasitários. A absorção de pequenas e médias iniciativas empresariais pelas concorrentes de maior escala através das fusões e aquisições gerando um menor número de companhias e uma redução daqueles que nos impingem como sendo o factor primordial do capitalismo: a concorrência. Mas as duas têm um fim comum, a redução drástica do custo do factor trabalho através da precarização, da redução de efectivos ou da redução ou congelamento salarial.

Eu, com esta análise, não jogo senão no tabuleiro da necessidade de uma convergência das forças progressistas impedida por conceitos intelectuais que não fazem qualquer sentido nos nossos dias. Todos somos poucos. Quem pensa que não é preciso conciliar e convergir à esquerda para que surja uma alternativa socialista, infelizmente, vai morrer a pensar desta forma sem vislumbrar sequer a luz da construção prática do socialismo.

miguel said...

Anónimo sem gosto, Rumo à vitória:

obrigado pela visita. como deves compreender, não comentarei nem entrarei na discussão sobre composição de listas da CDU num blog. também aproveito para te dizer que este blog não dará espaço a mais comentários dessa natureza, pelo simples facto de que não é para isso que serve.

Paulo Mouta, independentemente de outras concepções, continuo a afirmar tudo o que até aqui afirmei e continuo a achar que enviesas a disussão por confusão de conceitos. Sempre que há trabalho, há produção, mesmo numa economia mais desmaterializada. O que acontece porém é que o capital tenta reproduzir-se sem recurso ao trabalho e aí é que a economia capitalista encontra uma das suas contradições insanáveis.

Ainda assim, e repetindo, julgo que podes dar uma olhada ao meu conceito de unidade nuns posts que fiz há alguns meses atrás. No essencial, acho que não devemos construir a unidade (entre partidos) de forma desligada dos movimentos de massas e das lutas populares. A convergência ficcionada não é um benefício para o progresso e a real convergência não se faz numa sala de reuniões e muito menos numa sala de espectáculos.

Também aproveito para te dizer que nada do que escrevi aponta para eu querer ou não querer convergência com este ou aquele. Só acho que as discussões devem ser feitas cada uma a seu tempo e ligadas a uma relidade concreta em torno de questões políticas concretas. Uma unidade de cúpulas ou palaciana, sem nenhuma ligação ao que realmente se passa nas fábricas, nas escolas, nas ruas, nas empresas, nas faculdades, sería apenas mais um golpe para a esquerda portuguesa.

a questão permanece. a abordagem burguesa ou pequeno-burguesa, mesmo que de esquerda não será capaz de criar condições para a ruptura política. Os comunistas não andam aí à espera de se aliar com tudo o que diz que é de esquerda. Aliás, o BE é até um exemplo claro de uma força de esquerda conservadora, no sentido em que não propõe nem defende a superação do actual sistema de exploração capitalista. Ou, dizendo que dele não gosta, não é capaz de aceitar em tempo algum o poder proletário e o poder popular. Ou seja, que se mantenham os privilégios da burguesia, mas num mundo mais humano. Essa é a linha da esquerda conservadora e já falida, ainda que muito colorida e bastante promovida pelos amigalhaços da comunicação social dominante.

A convergência entre forças de esquerda (partidos ou outros movimentos) não é uma declaração. É antes um comportamento que não resulta de palavras ou pactos, mas sim de práticas e políticas. Nos momentos em que a convergência fizer sentido discutir no plano institucional, não me encontrarão como obstáculo a essa discussão. O que não significa que a convergência seja um objectivo em si mesma. Partir para uma discussão com a convergência partidária como objectivo, é começar a casa pelo tecto. Eu prefiro fazer antes uns buracos no chão para implantar umas sólidas fundações.

Abraço

Anonymous said...

Excelente texto, Pedras Contra Canhões. É um texto que nos faz pensar. Continuação de bom trabalho. (Anónimo: miguelbotelho77@gmail.com)

Anonymous said...

Então o blog serve exactamente para quê? Para discertar sobre a morte da bezerra?
Pois bem, é que eu considero que tudo o que se escreve deve ter a fvinalidade contribuir e ajudar a perceber e interpretar o mundo e fornecer as armas com que cada um no seu local de trabalho possa dar substracto à frase que quando foi escrita tinha por base isso mesmo ajudar a formar - proletários de todos os países uni-vos.
ANÓNIMO SEM GOSTO?
RUMO À VITÓRIA

Paulo Mouta said...

|Pedras contra canhões|
Estou de acordo. Aliás eu disse que neste momento seria até um erro grave partirmos para uma unidade falsa pré-eleitoral das esquerdas e que isso poderia ter graves consequências para todos os partidos envolvidos. Tal como concordo que existe uma base programática com uma finalidade diferente nos dois partidos. Mas isso não invalida os entendimentos de que falas em relação a matérias concretas. Este terá de ser assim, o primeiro passo.

Uma vez que este tema aparece agora nos meios de comunicação social em relação à CM de Lisboa, e para que não se confunda com nada do que eu disse até agora, de forma alguma concordo com uma coligação artificial e forçada em Lisboa. Tenho a certeza que os partidos agirão da forma que entenderem mais adequada tendo em conta o seu eleitorado. Acredito que seja até desejável a convergência para acordos pós-eleitorais.

Anonymous said...

Ouçam a nova música da Banda Zé Ninguém:

Corrupção

Corrupção em Portugal
Não vai nada nada mal
Este país é a loucura
Está pior que uma ditadura

O governo é uma piada
Nem o circo tem tanta palhaçada
Este país à beira mar
Vamos todos afundar

Por isso eu digo não
Por isso eu digo não
À corrupção
À corrupção

E depois, quem vai pagar!
Andamos todos a brincar!
Nem o gato nem o cão!
Eu aposto um milhão

Autarquia fraudulentas
Presidentas pestilentas
Sabem de quem estou a falar
Ou é preciso explicar?

Senhoras e senhores:
Bem vindos a Portugal!
O País mais corrupto da Europa!
Mais corrupto da Europa!
Não tenha medo, aqui ninguém vai preso!
Ninguém vai preso!
Mais corrupto da Europa!
Mais corrupto da Europa!

Este país é uma demência
É uma grande decadência
Autarquia fraudulentas
Presidentas pestilentas

E depois, quem vai pagar!
Andamos todos a brincar!
Nem o gato nem o cão!
Eu aposto um milhão

Por isso eu digo não
Por isso eu digo não
À corrupção
À corrupção

Banda Zé Ninguém
www.myspace.com/bandazeninguem

Anonymous said...

Pedras Contra Canhões, e que tal agora um texto sobre aquilo que se está a passar no Iraque; sobre alguma matéria internacional; ou então sobre o branqueamento histórico em relação à luta dos comunistas em todo o Mundo (porque não um artigo acerca da matança dos comunistas na Indonésia em 1963; os fascistas da direita, nem os bloquistas anti-comunistas evitam falar sobre isto...) Temos que divulgar estas matérias e abrir os olhos aos ignorantes.

Anonymous said...

Aí está um excelente texto, que sugiro que publiques proximamente na imprensa do Partido.

Em todo o caso, não posso deixar de dizer que o último parágrafo enferma de uma evitável generalização. Tão perigoso como o efeito do "idealismo" de origem burguesa junto dos trabalhadores, é pôr todos os seus praticantes no mesmo saco, incluindo os "ismos" afins.

Isto para dizer que há correntes anarquistas materialistas, que combatem precisamente o mesmo que nós.