Thursday, October 28, 2010

Das liberdades individuais às colectivas, ou das Liberdades colectivas às individuais?

Existe hierarquia moral/ética/política entre a consagração da individualidade e da colectividade?

Em determinados momentos, tende a surgir com mais ênfase a problemática da "liberdade individual" como centro sagrado do direito e da política. À esquerda como à direita, as novas tendências de um certo tipo de "liberalismo" colocam aquilo a que chamam "liberdade individual" acima de toda e qualquer outra consideração, assim criando desde logo um elemento dogmático, intocável, irrevogável, na base de um raciocínio que, por isso mesmo, é indiscutível e imutável. Alguns momentos críticos da decisão política sobre aspectos concretos do direito, mesmo que diferentes entre si, partilham o facto de serem muitas vezes construídos em torno dessa discussão.

Por exemplo: a despenalização do aborto, a liberalização/regulamentação do consumo de drogas, a regulamentação da prostituição como profissão, entre outros.

A perspectiva burguesa, em Portugal quase linearmente traduzida nas posições do BE e nas tomadas de posição de alguns elementos dos partidos de direita que assim visam promover a sua imagem de modernidade contra o "conservadorismo moral" dos seus partidos, é elementar e põe em risco uma abordagem séria aos diversos problemas sociais que decorrem da sacralização das tais "liberdades individuais". Tomemos como exemplo a discussão em torno da liberalização da interrupção voluntária da gravidez.

Enquanto os grupos esquerdistas assentavam toda a sua campanha na valorização da liberdade individual da mulher, recorrendo até a uma linguagem radicalista que toma a árvore pela floresta, os comunistas sempre encararam a sua acção com base numa perspectiva social (que parte do colectivo para o individual), com vista à minimização dos impactos sociais e pessoais do aborto clandestino e da estigmatização da mulher das camadas trabalhadoras, assim possibilitando um mecanismo de controlo da mulher explorada sobre o seu próprio ritmo reprodutivo. Ao contrário, o discurso esquerdista assentou sempre numa hiper-valorização da posse individual do corpo e da livre utilização que a mulher deve fazer dele, consoante entenda. Ora, não podemos eliminar, obviamente, a componente individual da decisão, da escolha e da planificação reprodutiva. Mas o que não podemos mesmo é eliminar a abordagem de classe, necessariamente social e colectiva da equação, como o fazem sistematicamente os "modernistas", os esquerdistas e os que, sendo conservadores em tudo, aparentam ser "progressistas" no que a direitos individuais diz respeito.

Ora o Direito acaba por ser precisamente o instrumento de limitação das liberdades para garantir a concretização plena de direitos, no quadro das possibilidades de gestão dos direitos conflituosos, mas sem deixar, em momento algum, de traduzir as relações sociais e materiais dominantes. A colocação dos direitos individuais acima de qualquer direito colectivo, ou do equilíbrio entre direitos e liberdades, distorce a noção de direito, agravando o seu pendor burguês.

Ora, a introdução, no Direito, de normas que despenalizem, ou penalizem, pelo conrário, determinada concretização de um comportamento individual, não pode ser dissociada da análise de classe sobre os efeitos e a forma diferenciada como se repercutem esses comportamentos, ao longo de cada camada social, de cada classe. É perfeitamente compreensível que a burguesia defenda, numa perspectiva indivualista e classista, a liberalização e regulamentação do comércio, venda e consumo de drogas, tal como é compreensível que defenda o mesmo em relação à prostituição. Afinal de contas, todos temos a tendência de analisar a realidade à luz da nossa experiência. E é verdade o que dizem os partidos burgueses, da esquerda à direita, sobre consumo de drogas, ou sobre prostituição, quando afirmam que só consome quem quer e que só se prostitui quem quer. É verdade, no quadro da realidade a que eles próprios pertencem. O que não significa, como é óbvio, que seja verdade, em todos os universos sociais. Aceitemos que a burguesia, só recorre à prostituição dos seus membros em casos especiais, por deboche, por gosto, ou pura e simplesmente, porque assim quis. Aceitemos que a burguesia consome drogas recreacionais, ou outras, usando o direito que tem sobre o seu próprio corpo e que não aceita que lhe imponham regras proibicionistas que prejudiquem a concretização desse "direito".

Tudo isso pode ser verdade no universo das camadas burguesas da população, ou mesmo das que hoje elevam aos patamares da burguesia o seu estilo de vida, a sua cultura, ainda que lhe não pertençam efectivamente. Aceitemos isso.

Ainda assim, uma questão se levanta e não pode, ser escondida: a esmagadora maioria dos toxicodependentes, dos homens e mulheres prostituídos, não são certamente membros dessas classes sociais privilegiadas. Antes pelo contrário, pertencem uns ao operariado e outros ao lumpen, essencialmente. Ou seja, a generalidade dos que, de facto, acabam por recorrer a esse tal "uso de um direito individual" fazem-no à luz de uma realidade completamente distinta, senão oposta, da que a burguesia vive e usa como base do seu raciocínio. A predominância da cultura burguesa, estimulada pelo poder político e económico, afirma no entanto o objectivo de impor a abordagem individualista sobre o "uso dos direitos" sobre uma abordagem colectiva desse "uso".

Enquanto que o burguês afirma que o "corpo é meu e faço com ele o que quero", milhares de trabalhadores sem emprego, ou milhares de homens e mulheres sem relação com o sistema social, excluídos ou apartados, recorrem a isso que o burguês diz que faria se quisesse (mas não faz) para garantir a sua sobrevivência.

O burguês pode, pelas suas condições culturais, sociais e económicas, pelo acesso aos cuidados de saúde, pelos conhecimentos que detém, fazer um uso esporádico e racional de drogas recreativas, ou até mesmo gerir uma eventual dependência. Daí ele próprio não encontrar quaisquer motivos para a proibição dessa sua "liberdade individual". No entanto, ignora, ou quer fingir que ignora, que os milhares de pessoas que caem nas redes e malhas da droga não dispõem dos meios, nem do conhecimento, nem das alternativas de que a burguesia dispõe. A política de regulamentação do uso e consumo de drogas deve pois ter sempre como objectivo, não a regularização e normalização dos consumos, mas o combate à alienação e ao alastramento do consumo.

Da mesma forma, para que o burguês tenha direito a dizer que se prostitui se lhe apetecer, milhares de mulheres e homens se prostituem sem nunca lhes terem perguntado se querem ou não fazê-lo mas porque as circunstâncias da sua vida ditaram que a prostituição era a solução para a sobrevivência. E mesmo que o burguês alguma vez concretizasse essa sua vontade (de supostamente se prostituir), estaríamos, ao regularizar a profissão, a aceitar que a vontade de uns poucos se prostituírem por vontade se sobreporia à necessidade de combater o que sucede a outros tantos que não optam nem podem optar. Por isso mesmo, enquanto houver uma só mulher que o faz por não ter outra escolha, a regulamentação dã prostituição é apenas a sua aceitação legal, no direito, assim sobrepondo o direito a usar uma prostituta ou um prostituto ao direito que todos devemos ter de nunca ser confrontados com a necessidade de nos prostituirmos.

Por outro lado, tanto no caso das drogas como no da prostituição, a regulamentação legal com vista à criação de âmbitos comuns de comércio e negócio acarreta a aceitação do tráfico (ainda que legal) da alienação como negócio e mercado; e a conversão do corpo e do amor, do sexo e do sentimento, em ferramenta de trabalho, posse de um patrão, ou alugado à hora a um usufrutuário temporário.

Continuo a colocar como objectivo a libertação do ser humano, não dos problemas que se colocam a quem quer ser prostituto mas não encontra regulamentação, mas da humilhação da prostituição. Continuo a colocar como objectivo a libertação do ser humano, não das chatices que se colocam a quem quer fumar um charro e não pode, mas da praga da droga, da alienação e da doença.

Friday, October 22, 2010

Hegemonia - o retorno das distorções?

A intervenção dos comunistas, assente numa perspectiva materialista e simultâneamente pragmática e dialéctica, tem como objectivo principal a alteração, ou melhor, a superação, da actual forma de relações sociais para e por uma outra, mais avançada, fruto da primeira.

Em debate promovido pela Freguesia dos Anjos, realizado dia 21 de Outubro à noite no Mercado do Forno de Tijolo, tive oportunidade de ouvir em directo a interpretação que o BE faz da cena política actual na sua dimensão actual, pela voz de um dos participantes no debate: José Gusmão, actualmente deputado à Assembleia da República pelo BE. Estou certo de que não estaremos perante um quadro qualquer, mas um dirigente e um representante das correntes dominantes da doutrina desse grupo político.

Ora, a determinada altura, a pretexto do domínio cultural da burguesia através dos meios de comunicação social (expressão da minha responsabilidade), José Gusmão traz-nos para a conversa a noção de "hegemonia". Esse conceito, que em si mesmo não comporta absolutamente nenhum aspecto que me mereça crítica, foi, no entanto, utilizado pelo BE da forma mais retrógrada. Segundo o BE, a alteração da actual correlação de forças passaria pela criação e consolidação de um novo "sujeito político", que não se verifica nem no PCP, nem no BE, segundo o próprio José Gusmão. Por isso mesmo, importa criar uma plataforma de entendimento "à esquerda" que seja capaz de agregar os diversos quadrantes dessa esquerda (presumo eu) e que possa contribuir para a alteração da "hegemonia", cultural no caso.

Esta visão, que na minha perspectiva, resulta de uma má-interpretação das pouquíssimas teses Gramscianas, acaba por se revelar profundamente reaccionária e cede às pressões idealistas sobre o materialismo e o marxismo. É, porém, uma visão política que caracteriza bem a natureza burguesa do BE e da sua interpretação da realidade e acção sobre ela. Para o BE, as condições materiais da Humanidade e as relações sociais não são o substrato do desenvolvimento histórico, mas sim resultado da hegemonia. Isso é bem ilustrativo através de aspectos muito concretos da intervenção do BE no meio operário e proletário, nomeadamente na introdução - pelo BE - de uma clivagem no movimento operário entre aquilo a que chamam "o precariado" e os "trabalhadores com contrato", como se existisse qualquer tipo de diferença material entre uns e outros e não fosse "o precariado" apenas o conjunto dos trabalhadores que sofrem o refluxo na legislação laboral. A definição do "precariado" como classe é anti-materialista e favorece clivagens no movimento operário, enquanto simultaneamente fragiliza o movimento sindical. O trabalhador com vínculo precário é um trabalhador, precisamente na mesma medida em que qualquer outro, independentemente da duração do vínculo, dado que ambos estão dependentes da procura da sua força de trabalho para que possam vendê-la e assim sobreviver. Aliás, o contrato de trabalho, a estabilidade laboral e profissional são conquistas que não nasceram com o proletariado, mas com a luta do proletariado.

Mas José Gusmão, ao colocar o factor decisivo na hegemonia e no surgimento de um novo "sujeito político", centra a transformação social na super-estrutura, nas movimentações partidárias e na alteração da cultura dominante. Não é a primeira vez que ouço o BE, à semelhança de muitos outros esquerdistas dos mais variados sectores, colocarem as questões políticas decisivas no campo das ideias. Se a batalha ideológica é, sem sombra de dúvidas, importante, a questão da hegemonia coloca-se, entretanto, num outro patamar. A revolução não nasce da alteração da hegemonia. Aliás, a revolução não resulta necessariamente de uma subversão ou alteração da cultura dominante, pelo simples facto de que o estado revolucionário suplanta o estado conservador que determina a cultura dominante.

É correcto dizer-se que a hegemonia determina as relações sociais?
É correcto dizer-se que as relações sociais determinam a hegemonia?
Como podem os opostos ser simultaneamente verdadeiros?
Todavia, são-no.

Mas numa persepctiva materialista, a segunda afirmação sobrepõe-se à primeira, porque, embora aparentemente se neguem, a primeira não pode ser verdadeira sem que se verifique a segunda.


Por isso mesmo, o BE esquece uma questão absolutamente determinante quando faz a sua análise super-estrutural e idealista da realidade: o "sujeito político" já existe. O sujeito político é o povo trabalhador, o proletariado, independentemente da natureza do seu vínculo laboral. O "sujeito político" não será um partido, nem qualquer outra forma de organização política, muito menos um Manuel Alegre ou qualquer outro cavalo de corrida em que o BE aposte. A questão que se coloca à esquerda revolucionária é, não a da constituição de um novo sujeito, mas a da consciencialização do único verdadeiramente capaz de conduzir os destinos da Humanidade ao futuro.

Tuesday, October 05, 2010

Alegre aborto ou traição

Li algures uma frase que indicava a seguinte ideia: "na arte, a utilização da inteligência, ou da técnica, para fingir emoção e sensibilidade é violação". Ideia que está traduzida também, numa outra óptica mas partindo do mesmo princípio, nas palavras de Bento de Jesus Caraça, "pensamento que não actua, ou é aborto ou traição".

A arte, uma das expressões supremas da nossa humanidade, implica uma expressão. Regra geral, uma expressão de sentimento ou emoção através de uma qualquer forma passível de transmitir. A música organiza sons em melodias, compassadas; a pintura, cores em telas; a escultura molda o espaço e os materiais; a dança é um movimento e um momento; a literatura, a poética, são o próprio substrato e meio artísticos; etc..

Claro que a arte, como tudo, requer uma técnica. Eu posso expressar os meus sentimentos e emoções através de uma forma sem técnica e método, mas dificilmente isso se traduzirá em arte. Mas não é impossível. Impossível é fazer arte apenas com a técnica e sem a emoção que a preenche. Se eu souber pintar como Van Gogh mas não for capaz de criar, não sou um pintor de arte, sou apenas um técnico da arte. Posso copiar o quadro na perfeição, mas não posso criar um.

Com as palavras porém, a inteligência pode sobrepôr-se quer à técnica, quer à emoção. A utilização de ideias, a manipulação requintada e minuciosa da palavra, do verso, da poética, podem de facto criar belos poemas, sem expressão de uma emoção real. Por outro lado, se eu expresso por escrito, independentemente da beleza dos versos, emoções que não sinto, estou de facto a violar. A violar a arte, a violar o leitor daqueles versos.

Se eu expresso através de belos poemas, dominando as técnicas e as palavras, os conceitos e a beleza, emoções que apenas idealizo mas não pratico, então estou precisamente a gerar um aborto, ou uma traição. Aborto se eu for cobarde, traição se eu for egoísta ao ponto de usar a arte como meio de projecção e manipulação, ao invés de a utilizar como meio de expressão.

Jamais poderemos julgar da veracidade de uma arte. É impossível destrinçar a poesia da traição, do aborto, da violação. Mas podemos ter as nossas opiniões.

E sobre um determinado poeta alegre que por aí passeia o seu ego gigantesco em versos trabalhados ao pormenor, eu tenho a minha ideia. Se me anuncio, quase epicamente como um lírico, como um poeta e assim me assumo sem a mínima modéstia, se cavalgo o elogio como quem o espera constantemente, eu não sou um poeta, sou um traidor. Se digo nos versos o que nunca tive a coragem de fazer na vida e ainda assim não hesito em usar "coragem" em auto-descrições, não sou um poeta, sou um sorvedouro de sobranceria, de ingenuidade dos outros, um sorvedouro que tudo faz chegar a um ego cada vez mais insuflado de um vazio que não passa disso mesmo: aborto ou traição.