Li algures uma frase que indicava a seguinte ideia: "na arte, a utilização da inteligência, ou da técnica, para fingir emoção e sensibilidade é violação". Ideia que está traduzida também, numa outra óptica mas partindo do mesmo princípio, nas palavras de Bento de Jesus Caraça, "pensamento que não actua, ou é aborto ou traição".
A arte, uma das expressões supremas da nossa humanidade, implica uma expressão. Regra geral, uma expressão de sentimento ou emoção através de uma qualquer forma passível de transmitir. A música organiza sons em melodias, compassadas; a pintura, cores em telas; a escultura molda o espaço e os materiais; a dança é um movimento e um momento; a literatura, a poética, são o próprio substrato e meio artísticos; etc..
Claro que a arte, como tudo, requer uma técnica. Eu posso expressar os meus sentimentos e emoções através de uma forma sem técnica e método, mas dificilmente isso se traduzirá em arte. Mas não é impossível. Impossível é fazer arte apenas com a técnica e sem a emoção que a preenche. Se eu souber pintar como Van Gogh mas não for capaz de criar, não sou um pintor de arte, sou apenas um técnico da arte. Posso copiar o quadro na perfeição, mas não posso criar um.
Com as palavras porém, a inteligência pode sobrepôr-se quer à técnica, quer à emoção. A utilização de ideias, a manipulação requintada e minuciosa da palavra, do verso, da poética, podem de facto criar belos poemas, sem expressão de uma emoção real. Por outro lado, se eu expresso por escrito, independentemente da beleza dos versos, emoções que não sinto, estou de facto a violar. A violar a arte, a violar o leitor daqueles versos.
Se eu expresso através de belos poemas, dominando as técnicas e as palavras, os conceitos e a beleza, emoções que apenas idealizo mas não pratico, então estou precisamente a gerar um aborto, ou uma traição. Aborto se eu for cobarde, traição se eu for egoísta ao ponto de usar a arte como meio de projecção e manipulação, ao invés de a utilizar como meio de expressão.
Jamais poderemos julgar da veracidade de uma arte. É impossível destrinçar a poesia da traição, do aborto, da violação. Mas podemos ter as nossas opiniões.
E sobre um determinado poeta alegre que por aí passeia o seu ego gigantesco em versos trabalhados ao pormenor, eu tenho a minha ideia. Se me anuncio, quase epicamente como um lírico, como um poeta e assim me assumo sem a mínima modéstia, se cavalgo o elogio como quem o espera constantemente, eu não sou um poeta, sou um traidor. Se digo nos versos o que nunca tive a coragem de fazer na vida e ainda assim não hesito em usar "coragem" em auto-descrições, não sou um poeta, sou um sorvedouro de sobranceria, de ingenuidade dos outros, um sorvedouro que tudo faz chegar a um ego cada vez mais insuflado de um vazio que não passa disso mesmo: aborto ou traição.
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1 comment:
Tudo bem. Reflexões interessantes e, como de costume, consistentes. Hoje sobre arte. Mas menos directo ao assunto do que em outras vezes. É do Manuel Alegre que falamos? Se sim, pois, se houver 2ª volta, lá teremos de o engolir... Até lá vai-se cantar muito de galo. Quem causa repulsa total é o Cavaco, esse é mesmo nojentíssimo. Quanto ao resto, enfim, sabemos quem é o nosso verdadeiro candidato. O povo é que não tem imaginação, vota sempre nos mesmos. Até já chateia!
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