Friday, December 16, 2011

Quantidade e Qualidade

Em a "Dialética da Natureza", notável e histórica obra de Engels, há directa alusão a uma importante correlação entre qualidade e quantidade que se verifica na Natureza e que é, porventura, uma curiosa fonte de analogias para a aplicação do materialismo histórico, particularmente nos dias que correm.

Talvez aqui sobrevalorize a minha formação em Geologia, pelo que peço compreensão. Engels fala-nos das leis da dialéctica ao longo dessa obra e da sua veracidade e verificação no mundo natural, condição fundamental para quem considera a natureza a base primordial da filosofia, como os materialistas.

A primeira lei da dialética estabelece que existe uma relação bívoca entre a "qualidade" e a "quantidade", ou seja, uma relação interdependente entre os aspectos quantitativos e os aspectos qualitativos. De forma até bastante avançada para a altura e para o grau de desenvolvimento científico de então (1883), Engels faz um conjunto de avaliações e análises sobre a Natureza e suas leis, à luz de uma perspectiva dialética que está actual, na generalidade, até aos dias de hoje; e nessa incursão pelo mundo das ciências naturais ilustra com grande acuidade a relação entre a quantidade e a qualidade na natureza.

Há todavia, segundo me recordo, uma esfera da ciência que passa à margem do conteúdo da brilhante obra de Engels, mas que estou certo de que, houvesse então o conhecimento que se tem hoje da mecânica geotectónica, não teria passado sem referência. Essa esfera é a Geologia e particularmente a Geofísica.

Sobre a relação entre "qualidade" e "quantidade" e primeira lei da dialética é, na minha opinião, importante que nos debrucemos com empenho igual ao que dedicamos às restantes leis da dialética e do materialismo histórico. Não para que possamos fazer uma abordagem meramente teórica das relações sociais e da História, mas para que possamos buscar na base científica e na filosofia as pistas para a intervenção concreta do dia-a-dia, enquanto revolucionários e comunistas. A interpretação do contexto natural, social e histórico em que nos encontramos é hoje, como foi sempre para os comunistas e para o proletariado, uma condição para a boa determinação do rumo e orientação a dar à acção. Compreender a fase de desenvolvimento histórico, as transformações qualitativas e quantitativas no processo produtivo e nas relações sociais é, como sempre terá sido, um requisito para a avaliação colectiva certeira e para a definição das linhas de intervenção que posicionem os comunistas na luta pelo futuro, pela revolução e não, erradamente, no lado da conservação das relações actuais que entendemos passíveis de superar.

A geofísica e a geologia no geral vieram a demonstrar-nos que também no que toca à movimentação tectónica, existe uma íntima relação entre quantidade e qualidade. Uma quantidade de força (tensão) aplicada a uma determinada porção de substrato rochoso provoca alterações na configuração geométrica do substrato e das camadas que o compõem. Simplificando, existe uma diferença qualitativa entre o comportamento dúctil e o comportamento frágil, sendo que quando se aplica o primeiro, os materiais se adaptam gradualmente às condições e que, em manifestações de comportamento frágil, os materiais se adaptam bruscamente. Não é uma mera diferença quantitativa, é uma diferença qualitativa. Ou seja, não há mais nem menos movimento, há é um comportamento diferente dos materiais submetidos a forças diferentes, porventura em períodos de tempo diferentes. Igualmente, e mais profundamente, se as forças (pressões) forem em quantidade suficiente, podem dar-se alterações qualitativas ainda mais evidentes, alterando inclusivamente a composição química do substrato, destruíndo minerais e gerando novos minerais, química e estruturalmente distintos.

A movimentação de porções da crusta terrestre à superfície está, como sabemos, relacionada com a libertação de tensões que se acumulam no substrato, em camadas mais ou menos profundas. A movimentação ao longo de falhas, ou a geração de falhas, os terramotos, estão por isso mesmo relacionados com as tensões que se acumulam e libertam na crusta. A libertação lenta dessas tensões dará muito provavelmente origem a movimentações pouco perceptíveis à superfície, como por exemplo, os movimentos identificados na tectónica de placas ou a adaptação da superfície às tensões de forma gradual, como se identifica em pequenos movimentos tectónicos não catastróficos, ou seja, não episódicos, antes contínuos.

Todavia, a libertação de energias de forma rápida (por conversão da tensão em movimento), origina geralmente fenómenos catastróficos, evidenciando o comportamento frágil das estruturas geológicas e até mesmo das estruturas construídas. Isto significa que um material sujeito a uma determinada força num determinado período de tempo reage de forma diversa em função da intensidade da força e do intervalo de tempo em que essa força se manifesta. Uma camada geológica pode dobrar-se se sobre ela for libertada energia de forma gradual. A mesma camada pode falhar (quebrar-se) se sobre ela for libertada energia de forma brusca ou uma quantidade de energia muito maior, ainda que num intervalo prolongado de tempo. A quantidade de tempo e de energia alteram radicalmente a qualidade da reacção do material sujeito ao tempo e à energia.

Ora, posto isto ainda que de forma simples, podemos questionar um conjunto de teses sobre a acção do proletariado e da sua vanguarda de classe. Questionar para negar ou questionar para reforçar.

Serve toda a introdução do presente texto apenas para dar enquadramento a uma abordagem dialética da acção dos comunistas e da sua interpretação sobre o actual momento, particularmente numa altura em que o capitalismo labora por si mesmo um conjunto de movimentações para garantir a sua subsistência e a sua continuidade e que essas movimentações afectam hoje, como afectaram no passado, as camadas populares e os trabalhadores, iludindo, contendo ou até fascizando.

Num contexto em que estão amplamente consolidadas inúmeras democracias burguesas e que, na sua esmagadora maioria, elas representaram à data da sua fundação um avanço histórico sem precedentes e uma evolução nas relações sociais à escala global, podemos aspirar à sua superação, atingidos os seus limites materiais, sociais, históricos e humanos. Como dizia Lénine, desengane-se quem pensa que a História é feita apenas de progresso, sem fluxos ou refluxos. Podemos igualmente dizer que se deve desenganar que a História atingiu um limite de desenvolvimento e que o actual estado de coisas, o capitalismo, representa o mais evoluído grau de organização humana. Tão enganado estará esse quanto o que julga que a derrota e a traição que levaram ao retrocesso civilizacional do fim da União Soviética, do Estado Proletário, são uma manifestação de progresso incontornável e impossível de ultrapassar.

Da mesma forma que a escravatura representa uma evolução associada à evolução civilizacional quando comparada com a sociedade primitiva e o feudalismo um avanço quando comparado com a escravatura e a democracia burguesa um avanço perante o feudalismo, a democracia popular será um avanço em relação ao estado burguês. O que não significa, de modo algum, que as transformações e processos revolucionários entre cada fase do desenvolvimento histórico sejam momentos ou episódios pontuais. Pelo contrário, a escravatura durou milénios em diversas regiões do globo, tal como estados e nações que experimentaram formas incipientes de democracia e república nem sempre cristalizaram nessa fase e muitas vezes regrediram.

A evolução histórica não é um processo linear, mas é um processo.
Prossigamos: a própria revolução (as revoluções) são fruto de um processo e não manifestações desligadas ou isoladas da realidade material e social. As condições para o triunfo de uma revolução proletária, socialista, não deixaram de se verificar e, pelo contrário, do ponto de vista objectivo, acumulam-se. Sendo a primeira dessas condições o carácter ascendente do proletariado enquanto classe.

Nunca como hoje, o proletariado foi tão numeroso. É verdade que o advento da classe se realiza principalmente com a revolução industrial, mas não é menos verdade que esse advento originou um movimento de ampliação do proletariado que hoje perdura. O futuro, tal como nos é possível avaliar neste momento, é caracterizado pelo aumento quantitativo do proletariado, na medida em que a população humana cresce, que a burguesia se contrai e o capital se acumula. Nesse sentido, perante o crescimento em número do proletariado e a intensificação das condições de exploração a que está sujeito, continua a afirmar-se essa classe como a única capaz de protagonizar os processos revolucionários capazes de superar o actual estado de organização social e económica.

Mas por que motivo referir a primeira lei da dialética num texto sobre a acumulação de forças revolucionárias? A forma como intervimos, comunistas, no contexto político a cada momento, não pode desligar-se desta concepção histórica e materialista das relações humanas e como tal, deve estar subjacente à direcção política do proletariado e às decisões e comportamentos que colectivamente assumimos. A revolução, a superação do capitalismo pelo socialismo, não é um episódio, é uma soma de episódios que pode ou não culminar num episódio momentâneo. Todavia, qualquer que seja a forma que essa alteração qualitativa vier a assumir, ela terá necessariamente de ser assente numa ruptura revolucionária, numa subversão total dos princípios basilares do sistema capitalista e das democracias burguesas, na medida em que, mais ou menos gradual, só a revolução assegura a superação das condições actuais de exploração, por oposição ao reformismo.

A posição dos comunistas, a sua intervenção institucional e de massas, na luta pela conquista e defesa de direitos para as massas trabalhadoras não podem ser, sob pena de se tornar num contraponto para o equilíbrio do próprio capitalismo, uma posição e uma intervenção reformista e de negociação. Pelo contrário, sem negar avanços e até protagonizando as suas conquistas, as posições e acções dos comunistas devem ter como preocupação de primeira linha e como objectivo primordial a exposição e denúncia das limitações do sistema capitalista, afirmando o socialismo e o comunismo como únicas formas de ultrapassar essas limitações.

A intervenção da vanguarda organizada do proletariado age no sentio de proporcionar as condições necessárias para a libertação de energia, tal como o terramoto que não sucede sem acumulação e libertação de energia. Nesse sentido, a libertação das tensões pontuais do capitalismo, pela via da negociação ou do trade-unionismo ou reformismo, resultam antes no alívio gradual das tensões, atrasando - mas não impedindo certamente - a concretização da revolução.

Significa isto que os comunistas devem contribuir para agudizar as condições de exploração do proletariado, que devem colocar-se do lado do "quanto pior, melhor"?

Não. Significa que na evolução das organizações sociais se aplicam as leis da dialética marxista e que a acumulação de forças se faz pela denúncia e exposição das contradições internas do capitalismo e pela organização e elevação da consciência política das massas. Como resultado da elevação da consciência política das massas é plausível que se criem melhores condições de imposição das condições de trabalho pelo proletariado, mas só através da materialização da consciência política em acção revolucionária é possível quebrar a mariz fundamental do capitalismo: a exploração em si mesma.

Isto significa que a luta revolucionária é influenciada pelas características próprias do proletariado, pela sua relação qualitativa e quantitativa com as outras classes, e que essa luta, por isso mesmo, sofre fluxos e refluxos. Porém, olhar para o desenvolvimento histórico como um fatalismo ou um fluxo recto, é igualmente prejudicial para a evolução social e para a concretização revolucionária. Estar, nas instituições e no trabalho de massas, presente sempre, organizado sempre, combativo sempre e sem claudicar é condição fundamental para que entre as massas se criem as condições subjectivas necessárias para a libertação da "energia" revolucionária capaz de vencer a "energia" conservadora do sistema capitalista. Portanto, deixar acumular o descontentamento e a deterioração da condição económica e social do proletariado é permitirmo-nos o atraso do processo revolucionário, tal como o é, deixar que as reformas se substituam à perspectiva revolucionária, claudicando perante a burguesia e o capital.

Resta-nos a opção (obrigação política e ética?) de empenhar todas as forças individuais e colectivas na exposição das incapacidades e contradições do capitalismo, temperando e elevando simultaneamente a consciência política das massas trabalhadoras através da intervenção persistente da vanguarda, na luta concreta pela alteração da correlação de forças em cada disputa (através do confronto de classe e não da negociação reformista), vergando o capitalismo até ao seu colapso pela ascensão do proletariado a classe dominante. A revolução, essa ascenção do proletariado ao poder, é assim resultado de um processo dialético que é base natural da evolução, assim saibamos interpretar em cada momento o contexto e determinar o paso que nos coloca mais próximo da revolução e rejeitar o que nos posiciona mais longe, se não for seguido de dois que nos coloquem novamente mais perto.

Em que é que a quantidade influencia aqui a qualidade das transformações e porque é que ilustro a acção revolucionária com a primeira lei da dialética? A quantidade do proletariado organizado e a quantidade das acções de acumulação de forças ("energias") é determinante para a realização de um momento histórico de "qualidade" revolucionária, por oposição a um momento reformista ou de retrocesso. A quantidade das acções, a sua frequência influenciam a sua própria qualidade e natureza, mas influenciam igualmente a natureza e qualidade do rumo histórico que lhes segue e que dessa acção venha a resultar. Não isolando esta abordagem da integração das restantes duas leis da dialética (negação da negação e interpenetração dos opostos), a acção comunista pela superação do capitalismo e da exploração ganha todo um significado teórico que, não valendo por si só, não deixará de ser em momento algum a base da nossa acção colectiva.

Wednesday, November 09, 2011

Inevitabilidades históricas

A mentira e a dissimulação, através da propaganda e educação de massas, sempre foi uma arma dos sistemas capitalistas, quer na sua expressão fascista, quer na sua face mais bonitinha das "democracias ocidentais".

A forma como sempre ridicularizaram o conceito marxista de "leis da história" e como o converteram numa espécie de determinismo histórico é agora desmontada pela própria ofensiva ideológica do capitalismo.

Se, quando deliberada e erradamente consideravam o "determinismo" e "inevitabilismo" históricos dos marxistas para atacar os comunistas, já nunca hesitaram em defender precisamente o mais determinista das perspectivas históricas: a de que a história cristalizou e terminou com o advento do capitalismo.

Hoje, essa propaganda ganha uma nova dimensão perante a derrota das experiências socialistas, porque o capitalismo deixa de ser o fim da história porque é bom e passa a ser inevitável porque não há outra saída, embora esta seja cruel, desumana e barbárica.

Sabem bem, porém, os propagandistas, os governantes e a grande burguesia dominante, que a única inevitabilidade histórica é a luta dos povos pelo progresso e a superação dinâmica das situações constituídas para outras mais avançadas, sejam quais forem.

O "inevitabilismo" que acusavam na perspectiva marxista tornou-se uma das armas preferenciais da ideologia burguesa para sugar tudo o que pode ainda no ocaso da sua era.

Friday, November 04, 2011

Sobre os "apartidários"

Sobre as tendências anarquizantes, inorgânicas e “apartidárias” nos movimentos de massas

Ao longo da História, as lutas de massas, sob as diversas formas, foi conhecendo as consequências nefastas de um conjunto de forças que, transportando ideologias próprias, sempre intervieram para fragilizar a dinâmica e o alcance das lutas. As classes dominantes não entregam o poder às classes dominantes sem resistência, bem pelo contrário. E as intrusões de radicalismos esquerdistas, muitas vezes próximos das ideologias mais fascizantes, desempenham um papel objectivo que urge desmascarar, independentemente da consciência política de cada indivíduo que as compõe e das suas reais intenções.
A forma de intervenção e acção anarquista é, em si mesma, a negação da conquista do poder pelas classes exploradas, na medida em que nega o poder e os antagonismos de classe. Os anarquistas, na generalidade, centram a sua avaliação social e política do meio em função das relações de poder e nunca em função daquilo que é verdadeiramente determinante: as relações de produção. Mas sobre isso, julgo que outras reflexões se farão e também sobre essas questões já escrevi umas linhas no ano de 2006 – que merecerão nos dias que correm, certamente, aprofundamento e discussão.
Mas hoje, no início desta segunda década do século XXI, todo um novo panorama de lutas se estende pelo globo, na sequência da crise estrutural do capitalismo e, principalmente, perante a evidência das limitações históricas do capitalismo que confluem a passos largos para se manifestarem em simultâneo com as limitações materiais do capitalismo, dando toda uma nova dimensão à frase de Rosa Luxemburgo sobre a barbárie como única alternativa ao socialismo.
E nessas lutas que se desenvolvem um pouco por todos os cantos do mundo, as forças de classe movem-se como num tabuleiro de xadrez, numa permanente e dinâmica disputa pelo poder político e pelo domínio económico. E, quer no plano institucional ou no plano económico, quer no plano da luta de massas, as diversas forças sociais intervêm no sentido de assegurar o cumprimento dos seus objectivos. Tal como nem todos os trabalhadores estão conscientes do papel que desempenham no cenário mundial e nacional da luta de classes, nem todos os que participam nas lutas de massas estão conscientes da sua condição real perante o mundo e todas as considerações vertidas neste texto são manifestações da minha perspectiva. Quero assim dizer que não considero, nem o posso fazer, que todo e qualquer indivíduo ou colectivo que intervenha através de movimentações inorgânicas, “apartidárias” ou “anti-partidárias” na luta de massas o faz com a intenção definida de se opor ao progresso social e à superação do capitalismo pelo socialismo. Tal extrapolação seria abusiva e incorrecta. Todavia, não será certamente abusivo afirmar que existem elementos, dentro e fora desses movimentos, que compreendem a luta de classes e intervêm no sentido do retardamento do avanço histórico, combatendo a organização revolucionária, a ideologia comunista, e a intervenção coerente e consequente das classes exploradas para o triunfo político dos trabalhadores.
Dentro e fora desses movimentos, de cujo “apartidarismo” poderemos sempre duvidar, movem-se as forças de classe, tal como no interior dos partidos operários e comunistas. A diferença é que a natureza e matriz orgânica do partido tem disso consciência e limita o campo das forças reaccionárias, potenciando a organização revolucionária e nos movimentos inorgânicos ditos “apartidários” sucede precisamente o oposto, nem que seja pela sua natureza “aclassista” ou “transclassista”.
No entanto, pela dimensão que é neste momento atribuída a estes grupos e movimentos, particularmente pela própria classe dominante através da comunicação social dominante, mas também pela importância que estes movimentos vão ganhando na definição do desfecho histórico de muitos acontecimentos contemporâneos, é importante que sobre o seu papel, composição, objectivos e efectivo contributo ou prejuízo que produzem no curso da luta.
1. O “apartidarismo” no contexto da luta de massas
Todo o raciocínio, levado às suas últimas consequências, deve revelar a sua congruência. Isso decorre de um princípio da dialéctica que, pela aplicação conjugada das suas três leis fundamentais, estabelece que um raciocínio errado se contradiz a si próprio se desenvolvido até às suas últimas iterações.
Também neste caso, sobre o “apartidarismo” militante, poderemos realizar um processo dedutivo e lógico no sentido de decifrar o real conteúdo. O conteúdo desse “apartidarismo”, tal como o do “anti-sindicalismo” que se lhe associa, não pode ser desligado do contexto em que é utilizado. Estas bandeiras “apartidárias”, “anti-sindicais” ou “anti-partidárias”, elevam-se pelas mãos de massas, conscientes ou não dos efeitos e consequências desse discurso, mas claramente com o apoio de um conjunto de forças, mais ou menos ocultas, entre as quais se encontra manifestamente a comunicação social dominante. E elevam-se num contexto de alastramento da revolta popular, de rápido esgotamento das capacidades do sistema capitalista, de aproximação da exaustão de recursos naturais e de elevado potencial revolucionário. Este discurso -se torna-se mais intenso em manifestações de massas, em acções de luta – na maior parte das vezes convocadas precisamente com o apoio de estruturas sindicais de classe e do Partido. Ora, no actual contexto político e social, em Portugal e nos restantes países, os partidos e forças sindicais que participam nestas manifestações e nestas acções são, como todos sabemos, os partidos e sindicatos de classe.
Pegando no exemplo português, o que significa então “apartidarismo” num meio envolvente em que apenas um partido está presente? Qual o partido e quais os sindicatos que participam, organizam e convocam, a luta do povo, dos trabalhadores?
Levando então o conceito de “apartidarismo” às suas últimas consequências, no contexto de aumento de potencial revolucionário, será que esses movimentos estão a dirigir-se à direita reaccionária, ao PSD ou CDS? Será razoável concluir-se que estão a dirigir-se aos partidos ausentes desde há 35 anos das movimentações de massas e da luta pelo progresso social? Será que estão a dirigir-se ao PS que não só não dinamiza como não participa nas lutas do povo português desde que a minha memória pode registar? Objectivamente, esse discurso não é dirigido a todos os partidos, mas exclusivamente ao partido que é profunda e absolutamente distinto desses outros, por se afirmar como partido de classe, revolucionário.
Tal como para compreender outros fenómenos, é necessário distinguir a sua origem da sua expressão, a sua concepção da sua prática. E neste caso, certamente, não é diferente na medida em que injusto seria afirmar que todos os indivíduos ou colectivos que portam essa bandeira do “apartidarismo” são anti-comunistas. É, no entanto e na minha opinião, correcto afirmar que a mensagem que expressam é reaccionária, apesar da existência ou não de uma consciência política sobre a natureza de classe dessa mensagem.
Da mesma forma, num paralelismo limitado, poderemos nós dizer que é mal motivado ou reaccionário o operário que repete a mensagem política fácil e manipuladora que dispara contra todas as direcções, que ouviu no noticiário pelo fazedor-de-opinião a que agora chamam politólogo? Na verdade, a compreensão da condição material é apenas um patamar da compreensão sobre as causas dessa condição. Ser consciente de uma situação de carência não é suficiente para ser consciente sobre as causas dessa situação.
Daí que entre os movimentos ditos “apartidários” seja necessário destrinçar as suas variadas e diversas tendências internas, as motivações que os compõem e o porquê da sua existência. Uma reflexão sobre isso não ilibará ninguém, nem mesmo os partidos comunistas e operários, sobre o desvio político que representam estes movimentos perante as potencialidades revolucionárias do momento histórico que atravessamos.
2. A luta de classes na luta de massas
Se entre partidos, e mesmo no interior dos partidos, se travam lutas de classes, ou pelo menos lutas de interesses particulares de classe, e se em toda a sociedade existe uma indelével marca da luta de classes que é, afinal de contas, a sua principal força motriz até à sua superação, então não será possível esperar que em cada manifestação humana existam expressões dessa luta. As lutas de massas encerram também ensaios de luta de classe e mesmo no interior das classes, existem impactos – de vária ordem, natureza e dimensão – provocados pela penetração ideológica de cada classe em outra. Entre o operariado existe uma tendência conservadora – talvez até dominante – que é precisamente o reflexo da penetração da ideologia burguesa nessas camadas, tal como o oposto se verifica igualmente e, necessariamente, em menor escala.
A História, em Portugal e no mundo, e principalmente aquilo da História fica, que é a versão oficial das classes dominantes, está recheada de elementos que produzem uma reacção de afastamento popular face à participação política partidária. Aliás, toda a participação democrática directa é alvo de um boicote deliberado e bem preparado ao longo dos anos pelas classes dominantes. O estímulo ao individualismo, à competição desleal, à concorrência desmedida, ao egoísmo cruza a sociedade capitalista transversalmente através de todos os meios de comunicação, através das relações laborais, da cultura dominante, da escola, etc.. Isso mesmo constitui uma importante barreira à formação de uma consciência política e até à simples consolidação de uma consciência colectiva.
No entanto, e sabe o capitalismo tão bem quanto sabem os comunistas, que a reacção natural das populações e das camadas exploradas é a de lutar pelos meios ao seu alcance. Perante este cenário, a única coisa certa é a de que a luta se intensifica na medida em que se intensifica a exploração, independentemente do conteúdo e do projecto dessa luta. Isso mesmo, o capital aproveita em seu favor através da elevação de um conjunto de formas de luta a exemplo. A atenção mediática, o apelo implícito, a estas movimentações são as formas que o capitalismo tem, entre algumas outras, de influenciar directamente o curso de uma luta que não pode evitar, mas pode influenciar. E pode influenciar determinantemente.
A burguesia não cessou de aprender ao longo da História da sua existência e sabe tão bem quanto sabem os revolucionários que a luta dos povos é o que determina o desenvolvimento e o desfecho dos episódios históricos, do fluxo da nossa vivência em comunidade. E o facto de essa lei ser imutável faz com que ao rol de opções da burguesia se acrescente a intervenção concreta e directa nos movimentos de massas, nos partidos e sindicatos. Além da opressão legal, policial, militar, além da agressividade bélica, da hegemonia cultural, do domínio das relações de produção, da produção legislativa classista, a burguesia usa essoutra arma importantíssima que é a de intervir directamente nas movimentações de massas por todo o mundo, de forma a atribuir-lhes um pendor reaccionário e até retrógrado com o fim último de garantir que, independentemente da existência ou não dessa luta, as relações de produção e as relações sociais de classe se mantenham intocadas ou até que se intensifique a sua natureza capitalista actual. Muitas franjas de pessoas que compõem os movimentos anti-partidos, de movimentos anti-tudo, anarquistas, “apartidários” caminham no fio da navalha entre o indignado e legítimo revolucionário em potência e o indignado fascista em potência. Daí não poder excluir-se, ainda que de forma relativa, nenhuma organização das responsabilidades perante o pendor destes movimentos. Pois que mesmo os comunistas sabem que têm de assumir a tarefa de, partindo da massa bruta que os compõe, garantir a conversão em energia revolucionária da sua energia potencial meramente anti-capitalista ou anti-sistema ou anti-partidos.
Claro que toda a abordagem que possamos fazer sobre estas movimentações ficará sempre aquém do necessário, já que não me referi ainda às movimentações partidárias que existem efectivamente entre estes movimentos, às movimentações anarquistas e fascistas. Mas no essencial, do ponto de vista do papel do comunista perante estes movimentos, julgo ser esta reflexão um contributo.


"de indignado a revolucionário vai um passo da distância a que se encontrar o Partido."

Thursday, November 03, 2011

armistício ou rendição

a luta de classes é uma guerra social, política e económica. imaginemos, como exercício, que as armas da burguesia nessa guerra são a exploração, o desemprego, a extorsão, a apropriação, a opressão e que as armas dos trabalhadores são apenas o protesto e a greve.



então, o que querem dizer os magnatas, os milionários, os poderosos, os membros dos governos corruptos, quando falam de paz social, de unidade nacional? querem dizer aos trabalhadores que párem de usar as suas armas na guerra, mas nunca quererão dizer à burguesia que faça o mesmo.



parar de usar as armas que temos é capitular. é entregar a vitória à burguesia.

é como chamar armistício a uma rendição.



pararemos de usar a luta, a greve e o protesto, quando os inimigos pararem de explorar, extorquir, desempregar, apropriar, oprimir e até matar.



enquanto assim não for, a paz social não é mais do que o terrorismo da burguesia.

Wednesday, September 07, 2011

Elogio da mediocridade

A sociedade não corrompe o Homem, porque o não existe Homem sem sociedade. O "bom selvagem" não é mais que uma hipótese vã, sustentada numa ideia impossível de materializar.

A utilidade da tese, por mais generosa que seja, é próxima de nula quando dela não pode resultar mais que uma divagação. Ou seja, independentemente da veracidade da teoria, pode não se verificar a sua utilidade.

Mas a Sociedade não molda o Homem de forma diferente do que a Humanidade molda a sua organização social. Aliás, a sociedade é o Homem e o Homem é a sociedade, o indivíduo é o colectivo e o colectivo é o indivíduo, na medida em que ambos se influenciam em permanente dinâmica.

A Sociedade capitalista não é um demónio. É apenas o resultado concreto da evolução das relações sociais e materiais, resultado actual dos movimentos da luta de classes ao longo dos séculos e das eras. Mas é uma sociedade medíocre, que limita o crescimento do Ser Humano, que impede o florescimento da nossa alma, dos nossos plenos sorrisos. A Sociedade capitalista é a sociedade que faz do vazio, do supérfluo, da ignorância, do egoísmo e da violência as características mais destacadas dos homens e mulheres.

O capitalismo, a cultura das suas classes dominantes, assenta nas característcias do Ser Humano, costumamos ouvir dizer. Na Natureza Humana, sussurram-nos diariamente como que em jeito de lavagem cerebral. E no entanto, ninguém pode negar que a Natureza humana é coisa que não existe considerada por si só, fora do meio, independentemente do ambiente e das componentes sociais. Assim, partindo do princípio que a natureza humana é, em si mesma, uma causa e uma consequência, todo o processo dialético da construção do ser humano se torna mais decifrável. A natureza do Homem é múltipla, diversa, mutável e complexa.

É verdade que se pode afirmar que o Homem é um animal com tendência para o egoísmo, para a violência, para a corrupção, para a disputa, a preguiça, a cobiça e a ganância? Sim, é verdade que se pode afirmar que, principalmente após a constituição da propriedade privada como base da organização social dos Homens, as classes dominantes manifestam essas características de forma aguda. O capitalismo, no seguimento de outras formas de organização baseada na propriedade e na exploração do esforço alheio, exacerbou essas características na sua classe dominante, mas teve a capacidade de acelerar a sua difusão para as classes exploradas. O que não é estranho, antes pelo contrário, é natural. A moral burguesa, a cultura burguesa, o comportamento social burguês são incutidos em todas as camadas da população como únicas formas de viver, de estar.

Mas não é menos verdade que o Homem é um animal com tendência para o altruismo, para a cooperação, para a amizade, para o amor, para a arte, para a alegria, para o trabalho empenhado. Ninguém poderá negar isso, mesmo num contexto em que não existem praticamente estímulos na cultura dominante para que assim nos comportemos e que, salvo as organizações progressistas e revolucionárias, salvo o mundo do trabalho entre iguais, raras são as oportunidades de estimular essas características nas pessoas. O dia-a-dia é passado em ambiente hóstil para o indivíduo e para o colectivo e apenas alguns momentos existem para contrariar essa torrente de egoísmo que a sociedade capitalista gera e torna cada vez mais caudalosa.

A sociedade capitalista é o elogio da mediocridade humana. E a mediocridade existe e sempre existirá. A grande questão que nos devemos colocar é: devemos contentar-nos com uma sociedade baseada na mediocridade, que estimula o pior do que temos, ou ansiar a sua superação por uma sociedade baseada na elevação da consciência dos homens e das mulheres, assente no estímulo das melhores características que temos. Da mesma forma que o Homem consegue ser solidário, amigo, alegre, criativo mesmo rompendo com o formato da sociedade capitalista, óbvio será que no socialismo, não desaparecerão a agressividade, o egoísmo, a cobiça e a preguiça.

Porém, a sociedade crescerá com o Homem e o Homem com a sociedade e o meio determinará a preponderância de umas sobre as outras, como faz actualmente, mas ao contrário.

Monday, January 24, 2011

Artigo escrito para a Revista Vértice, publicado em 2010

A organização de um cristal é perene na medida em que a perenidade é apenas uma forma prolongada de efemeridade. E se jazem inertes os átomos nessa “molécula infinita” que é o cristal, isso ocorre apenas enquanto se encontrem estáveis as suas posições geométricas. Ou seja, até as menos dinâmicas das formações naturais, são episodicamente fluidas. Ou dito de outra forma, a mais sólida cristalização é, na verdade, um sistema permanentemente dinâmico, embora lento.
Os eóns e as eras sucedem-se e deixam-nos ficar as marcas da efemeridade de tudo quanto até hoje povoou o planeta. O estudo da Terra, dos fenómenos que nela se desenrolam e manifestam, sejam geológicos ou biológicos, químicos ou mecânicos, e particularmente o estudo desses fenómenos à luz do tempo geológico, constitui uma ferramenta de substantiva utilidade para a leitura global dos fenómenos económicos e políticos e um instrumento valioso para a compreensão da relação, ou relações, da Humanidade com a Natureza.

I
Se a Terra, sistema complexo e dinâmico, é o substrato material em que se estabelecem as relações sociais entre os seres humanos e dela depende a economia material, por incontornável processo de interacção Humano-Terra, então a abordagem científica sobre os diversos sistemas terrestres é uma peça fundamental do puzzle que vai, inexoravelmente sendo construído pela História, pequeníssima e quase inquantificável parcela da Geohistória. É contudo evidente que à sua irrelevância temporal não corresponde menoridade social ou tampouco científica. Ter consciência do tempo geológico é, no entanto, um exercício em si mesmo interessante, para enformar a noção de relatividade no nosso raciocínio e compreender, no quadro das possibilidades da compreensão humana que a ocupação humana (Homo sapiens sapiens) do planeta se consolida nos últimos 150 a 200 mil anos e que os hominídeos mais antigos (considerando o género) surgem há cerca de 1,5 a 2,5 Milhões de anos. A primeira relativização que se impõe surge da comparação entre esses valores e a idade da Vida na Terra, que se estima situar-se próxima dos 2500 Milhões de anos, tendo em conta as mais rudimentares formas biológicas. A grande explosão da biodiversidade terrestre ocorre no Câmbrico, ou seja, desponta há 570 Milhões de anos atrás.
A Física, a Química e a Matemática são a base de todas as ferramentas científicas, a que aliamos incontornavelmente o amor pelo saber que nos traz a Filosofia. A interpretação e, mais particularmente, a transformação da realidade implicará, pois, a convocação de todas essas ferramentas para a emancipação da Humanidade. Esta discussão conduzir-nos-á directamente para o aprofundamento da metodologia científica e a sua relação muito íntima com o materialismo enquanto pilar da inteligência. De facto, só nos momentos em que se abandonam as ilusões metafísicas e se deixam cair os dogmas idealistas é que se constituem os novos patamares do Conhecimento. Independentemente do contributo histórico que constituiu o pensamento idealista para o progresso humano, por mero reconhecimento devido, poderá ainda questionar-se se não foi ele sempre um factor mais resistente e conservador do que progressista. Por um lado, o desenvolvimento histórico é em si mesmo um processo resultante da soma de múltiplos processos e, por isso mesmo, a especulação não serve como instrumento para a sua análise, assim não deixando espaço para julgar que a História estagna ou reverte o seu curso. Assim, o reconhecimento de todas as etapas da História como elementos ou fases de um percurso é meramente natural. O domínio idealista, que ainda hoje de certa forma subsiste, não impede o progresso, mas resiste-lhe. Por outro, a “cientificidade” está, de acordo com a minha opinião, ligada à perspectiva e interpretação materialistas dos fenómenos.


II
As ciências da Terra, soma conjugada das matemáticas, físicas e químicas aplicadas à compreensão e modelação dos fenómenos terrestres em todas as suas dimensões – biológicas, geológicas, atmosféricas, etc. – constituem, sem a mais pequena dúvida, uma das áreas nucleares no conjunto das ciências que hoje, pela sua ligação com a economia material, se afirmam como indissociáveis das actividades humanas e, como tal, da política. A consideração dos dados, das hipóteses e das teses que as ciências da Terra vão produzindo, não devendo ser acriticamente assimiladas, devem ser importante referência para uma análise da cena política internacional e para a construção das alternativas ao curso de auto-destruição e de sobre-exploração que a Humanidade vai imprimindo a si própria e ao planeta de que depende, por força da persistência histórica das relações sociais capitalistas.
Se a inteligência é a capacidade de adaptação a uma situação inesperada e imprevista, ela manifestar-se-á de forma suprema na capacidade de adaptação dos seres vivos e particularmente do ser humano através da capacidade de resposta e, essencialmente, da criatividade. No entanto, a adaptação é uma capacidade, fruto de processos mais ou menos complexos, que não é exclusiva do ser humano ou mesmo dos seres vivos. A lava fluida que solidifica com a diminuição das pressões e temperaturas, mais não faz do que adaptar-se às novas condições físicas a que está sujeita, criando a rocha e os minerais que a compõem. O fluído hidrotermal que vai mineralizando as paredes da falha por que percola, mais não faz do que permitir que as moléculas que o saturam, deixem de o saturar para se afirmarem como corpos agora precipitados e independentes. Da mesma forma, a rocha sujeita a elevadas temperaturas e pressões, volverá a lava ou magma e o cristal precipitado tornará a diluir-se no fluído que dele não se encontre saturado. Ora, a mais estática das formações, o cristal, não deixa de ser dinâmico. Tal como a mais estática ou aparentemente estática relação social ou económica não deixa de ser uma fase de um processo permanentemente em evolução.
Contudo, o paralelismo simplista não só não é adequado como é errado. Por um lado porque a precipitação de um cristal através da sobre-saturação de uma solução é um processo que obedece linearmente a um conjunto finito de variáveis. Por outro lado porque é inevitável não apenas o desfecho como o processo que se desenvolve. É absolutamente inevitável que a sub-saturação conduza à diluição, tal como a temperatura extrema leve à fusão. Já não é absolutamente inevitável que as relações sociais actuais sejam alteradas de forma pré-determinada e previsível. É no entanto, absolutamente inevitável que elas se alterem num sentido genericamente considerado, obedecendo a leis específicas que são, afinal de contas, o resultado interpretativo do próprio curso da história e das relações materiais que se estabelecem e se desenvolvem. Ou seja, o paralelismo linear e simplista é errado e desajustado. Todavia, existe de facto um paralelismo, ainda que meramente formal. O conteúdo e as manifestações das relações humanas, sendo tão materiais como as relações físico-químicas, de que aliás resultam, diferem essencialmente dos restantes processos naturais pela complexidade e não pela natureza.
O antropocentrismo não deve, portanto, originar um “egoísmo humano”, pois essa perspectiva, independentemente da sua bondade ou ausência dela, será sempre conducente à menorização da Natureza perante o Homem, excluindo-o dela, ao invés de criar as condições para a nossa plena integração. A absolutização do Homem como epicentro de todos os fenómenos pode constituir um obstáculo à compreensão da realidade e, particular e especialmente, um obstáculo à sua transformação. É certo que toda a abordagem e acção humana parte necessariamente de uma visão centrada no Homem. Seria no entanto redutor absolutizar a centralidade do ser humano por ser um passo para ignorar a forma como a natureza evolui e por ser, ao fim e ao cabo, uma forma de absolutizar o momento presente.

III

A economia capitalista, na busca incessante pela sua dinâmica de acumulação, tende a desmaterializar-se e a tornar-se cada vez mais distante da economia real. Isso não significa, porém, que o sistema actual, a sua organização e o seu governo global, não conheçam as limitações da especulação, mas apenas que a supremacia dos objectivos de acumulação se sobrepõe a uma interpretação e actuação racionais perante a economia real, a humanidade e a natureza. Mesmo num quadro de crescente financeirização da economia, o governo global do sistema capitalista não ignora a importância - aliás, não poderia ignorar – das ciências da Terra e o seu incontornável contributo para o desenvolvimento social e económico, mesmo na perspectiva capitalista. A evolução dos meios e métodos de produção capitalista constitui, no entanto, um património da sociedade que não será desperdiçado em fase alguma do desenvolvimento histórico, nomeadamente, nas fases históricas que venham a superar o próprio capitalismo. A relação dessa progressão tecnológica, económica e produtiva depara-se, contudo, com limitações internas e externas. Limitações internas que se prendem com as necessidades do próprio Ser Humano no que toca à distribuição da riqueza produzida e limitações externas que advêm do facto de serem incompatíveis os ritmos de renovação dos recursos naturais com os ritmos de acumulação que o capitalismo vem adquirindo.
Sendo a Terra um sistema dinâmico, com recursos tendencialmente infinitos, a sua renovação tem intervalos longos à escala temporal de referência dos humanos. Intervalos esses que são manifestamente incompatíveis com a natureza predatória do capitalismo que, como já Engels e Marx o caracterizaram – mais depressa definhará do que parará de acumular. E o que é também significativo é o facto de os ritmos de acumulação capitalista serem acelerados, ainda que inconstantemente acelerados. A renovação dos recursos naturais, porém, além de lenta tem aceleração negativa. Ou seja, dada a concentração de recursos na biosfera e nas actividades humanas, nomeadamente a relativa à transformação energética, a renovação dos recursos tende a ocorrer em intervalos de tempo cada vez mais longos. A insustentabilidade da economia capitalista, tanto material como imaterial, torna-se portanto mais do que evidente. Significará essa insustentabilidade que as limitações externas imporão a alteração de paradigma organizacional das sociedades? Não é, de todo, essa a tese que pretendo defender. As limitações externas, objectivas, convergem para um ponto de revolução e exigem-no, mas serão certamente as limitações internas, as mais directas, a determinar o comportamento do ser humano em função das relações de classe do momento. Tal como nas restantes manifestações da natureza, esta relação é profundamente dialéctica. Ou seja, as limitações internas dependem das externas e vice-versa, tal como as condições objectivas se relacionam directamente com as condições subjectivas e vice-versa.

IV
A relação do ser humano com a natureza é, no essencial, material. Atalharemos aqui aos simbolismos e relações espirituais que o Homem vem nutrindo com a natureza ao longo das épocas, pois elas são precisamente o resultado das relações materiais.
A natureza e os recursos naturais que a compõem, no sistema capitalista, representam além de um meio e de um substrato, uma nova bolsa de mercadoria, passível de ser sujeita às normas comuns do mercado. A atmosfera, o oxigénio que a compõe, a biodiversidade, a água – principalmente a água doce-, os recuros marinhos, os recursos minerais metálicos e não metálicos, o geotermalismo e outras manifestações geológicas de energia são apropriadas como se fossem meras mercadorias transaccionáveis, ultrapassando as regras habituais do próprio sistema capitalista que vinha, até há pouco tempo, considerando mercadoria apenas os objectos/serviços nos quais fosse possível estabelecer concorrência e transacção para aquisição. Ora, isso significa que o próprio conceito de mercadoria capitalista se encontra em evolução e que se alarga na medida dos anseios da acumulação dos lucros. A conversão dos recursos em lucros, particularmente dos recursos que constituem o meio material indispensável à vida e ao desenvolvimento social e económico das populações, representa mais uma forma de apropriação do trabalho, sendo que o trabalho é a única forma de relação directa entre as actividades económicas e a natureza.
Para que os recursos sejam passíveis de se tornarem em mercadorias, independentemente dos custos sociais e humanos que essa conversão possa produzir, é necessário um profundo conhecimento do funcionamento da dinâmica terrestre, compreender a física e a química do planeta. Simultaneamente, para que seja dado o passo em frente de superação do capitalismo por uma organização mais avançada e socialista, é igualmente necessária a utilização desses instrumentos do conhecimento e da ciência.
A geologia e a biologia, aplicações concretas da física e da química ao contexto natural que nos rodeia, são desde sempre áreas científicas cruciais para o desenvolvimento económico. Foram-no desde a Pré-História, já que a evolução dos processos sociais depende em grande medida da ecologia, entendida como o conjunto das relações entre os diversos agentes do meio. Desde a utilização da rocha como utensílio, esculpindo-a à medida das necessidades do Homo habilis, até ao aproveitamento da energia térmica da Terra que se faz nos dias de hoje, passando pela importância dos recursos metálicos ao longo da História da Humanidade e dos recursos não metálicos, como o sal e outros evaporitos, que chegou mesmo a ser a base das transacções no império romano, as matérias-primas foram a incontornável fonte do progresso, sem as quais nenhum processo produtivo seria possível. A consolidação do sistema capitalista mundiais, as suas novas expressões através da globalização económica, tem fortes raízes na concepção e na perspectiva que o capitalismo vem desenvolvendo sobre a natureza e sobre as suas componentes, pois a sua própria sustentação depende da capacidade que venha a revelar de capitalizar e mercantilizar a própria natureza. Nesta linha, não são irrelevantes as campanhas mundiais que os estados e os grandes grupos económicos vêm fazendo no sentido de criar dogmas para-científicos, com vista essencialmente à criação de mecanismos de apropriação e controlo das riquezas naturais, mesmo daquelas, ou até particularmente dessas, que são de utilização fundamental e incontornável para a vida humana.
A gestão dos recursos, pilar e base da economia real – embora muitas vezes relegada para o plano da irrelevância por força da sobrevalorização dos mercados financeiros e especulativos – está pois intimamente relacionada com o progresso social e a política geralmente considerada. Para uma abordagem revolucionária, que vise a evolução constante das relações sociais como fruto das tensões classistas e das conquistas por elas geradas, também não poderão ser colocadas de parte duas questões centrais:

a) A interpretação crítica da manipulação que o sistema faz do conhecimento científico para servir os seus objectivos;
b) A utilização da Ciência e das ferramentas filosóficas do raciocínio, ou seja, do materialismo dialéctico, como instrumentos de emancipação social da humanidade.

Na primeira dimensão, existem importantes movimentações do governo global capitalista, articuladas no terreno pelos estados alinhados com essa estratégia de acumulação capitalista, que se traduzem, sem excepção, na espoliação das populações. Tal como as potências ainda correspondentes a Estados exploraram continentes e povos inteiros para garantir o seu florescimento, os grandes interesses, hoje supra-estatais, exploram novas dimensões da natureza e do trabalho. A entrega da gestão de recursos naturais e a dogmatização em torno das soluções de mercado para as insuficiências geradas precisamente pelo mercado global virá a traduzir-se numa ainda maior apropriação dos meios, com efeitos numa ampliação da exploração do factor trabalho. Da mesma forma que são as populações e o povo trabalhador que depende mais directamente do substrato natural, é a classe dominante a que menos dele depende para a subsistência. Essa relação de dependências diferenciadas faz toda a diferença, pois é ela que determina que a apropriação dos meios naturais produz directa ou indirectamente a apropriação de uma maior fatia do factor Trabalho, assim garantindo a tendência da crescente acumulação, mesmo num contexto em que se continua a verificar a lei da diminuição tendencial da taxa de lucro. Aliás, é precisamente por se continuar a verificar essa lei, descrita e sistematizada por Marx, em “O Capital”, que a voracidade do sistema capitalista atinge a escala acelerada o sistema Terra. A delapidação dos recursos é apenas uma expressão da delapidação do Trabalho.
Esse contínuo antagonismo entre Trabalho e Capital está na base do desenvolvimento histórico, do qual faz parte a diferente forma como o Homem se relaciona com natureza ao longo dos tempos. A compreensão dos fenómenos naturais, particularmente dos geológicos e biológicos, está pois na base de um projecto de gestão política, social e económica novo e audacioso, que supera as relações actuais e mitiga a discrepância galopante entre o ritmo da renovação dos recursos e o da acumulação de lucro.
A tese de que a Humanidade é, em si mesma, insustentável tendo em conta o crescimento exponencial da sua população e das suas necessidades não encontra correspondência com a realidade. Por um lado porque o consumo é distribuído de forma assimétrica pela população e é precisamente a que menos se reproduz que mais consome, correspondendo aos países ocidentais e europeus do hemisfério norte, a que se junta o Japão, como pólo imperialista regional e global. A forma como a Humanidade se organiza, porém, é de facto insustentável. Ou seja, a acumulação gerada pela avidez do lucro, resultado de leis objectivas entre as quais a já referida lei da tendencial diminuição da taxa lucro, é o factor principal de estímulo à degradação e delapidação. A crise de superprodução capitalista que atravessou a humanidade nestes últimos anos, tal como as anteriores, demonstra à exaustão que o efeito stock é útil apenas para a criação de factores de acumulação e que, perante a constante desvalorização do Trabalho, apenas resulta na quebra e na ruptura dos próprios mercados capitalistas.

V
As teses que visam opor o desenvolvimento humano à natureza são, na essência, as teses que vão sustentando as inevitabilidades capitalistas. Independentemente das fórmulas que as sociedades busquem para obter energia, independentemente das tecnologias que as sustentem, as contradições e incompatibilidades entre a organização social e económica manter-se-ão. A dogmatização para-científica de um conjunto de hipóteses, estimulada precisamente por quem detém o poder económico e político, acaba por resultar, quer no plano objectivo, quer no plano subjectivo, numa paralisação racional que opõe Homem à Natureza, de forma quase incontornável.
Porém, em primeiro lugar, a tese que opõe o desenvolvimento humano à natureza deve ser desconstruída pelo simples facto de não ser o Homem a mesma coisa que o Capitalismo. Melhor dizendo, se nos dias de hoje, de facto, a Humanidade corresponde predominantemente a uma sociedade capitalista, isso não significa que esse estádio de organização seja inultrapassável ou estático. Na realidade, a concepção que opõe economia e ecologia é a que cristaliza em torno do maior dos actuais dogmas, o que nos apresenta a organização social capitalista como fim histórico de um processo de evolução da espécie e da sociedade. Além de manifestamente “egocêntrica”, essa tese tende a ignorar os milhões de operações que condicionam o estado de desenvolvimento da Humanidade, os milhões de relações que se estabelecem e os milhões de mutações que essas operações vão sofrendo diariamente. Independentemente da tendência evolutiva que podemos, ou não, identificar no rumo que a História toma, o certo é que seria errado e precipitado afirmar como fim da evolução, o estádio de organização actual. Independentemente mesmo dos sentimentos que nos possa gerar o actual estado mundial, das revoltas, das paixões, independentemente das injustiças que se verificam a cada segundo, seria disparatado pensar que o motor da história pararia apenas porque se atingem patamares de equilíbrio entre as forças. Esses patamares de equilíbrio não são mais que os momentos mais estáveis da dinâmica global que preside às relações humanas e a toda a Natureza.
A oposição, como referia, entre economia e ecologia, além de cortar radicalmente com as origens de ambos os conceitos, deve afinal de contas traduzir-se na oposição que existe entre o uso capitalista da economia e o uso capitalista da ecologia, ou seja, essa oposição é na realidade a súmula da insustentabilidade do próprio sistema. Ecologia e economia partilham o prefixo “eco” que remete para “oikos ()” “lar”, “casa”, sendo que a primeira aponta o seu estudo e a segunda a sua administração. Do ponto de vista social e do desenvolvimento colectivo da Humanidade, ecologia e economia fundem-se. Do ponto de vista da obtenção máxima do lucro, ecologia e economia fundem-se também, porém, no sentido da destruição mútua e galopante dos seus objectos. Sendo que o objecto da economia são as relações entre o Homem e o da Ecologia são as relações na Natureza, que inclui as do Homem entre si e entre os restantes recursos.
A sistematização e compreensão do ecossistema terrestre, da sua ecologia natural e economia humana, remete-nos portanto para uma posição bastante mais humilde perante a Terra e o Tempo do que aquela que actualmente se vai afirmando na comunicação de massas e que tem como objectivo único absolutizar o estado actual, o presente, o sistema. Sabem tão bem os ideólogos da classe dominante quanto os revolucionários, que a imutabilidade da história é apenas o embuste e o engodo para prolongar a exploração. É isso que fazem e farão tudo ao seu alcance para manter a correlação de forças e as relações de produção actuais, independentemente dos impactos que essas relações imponham ao conjunto dos seres humanos por força das implicações que acarretam junto dos recursos finitos que compõem o ecossistema. A ciência é, por isso mesmo, um instrumento de emancipação da Humanidade na mesma proporção em que a manipulação científica pode ser um instrumento de conservação do estado de relações, já que resulta de um processo social assim traduzindo a correlação de forças política de cada momento. O potencial transformador da utilização da Ciência, do Conhecimento, mas numa perspectiva materialista e dialéctica perante a realidade afirma-se assim sem necessidade de outras considerações.

Wednesday, January 19, 2011

Determinismo Histórico?

A forma como Marx transforma a dialéctica num instrumento ideológico revolucionário é, na minha opinião, um avanço no pensamento humano ao qual apenas se pode comparar o avanço extraordinário que a percepção humana do universo teve com as teorias da relatividade restrita e relatividade geral de Einstein. Tanto um quanto outro utilizaram instrumentos e modelos racionais que assumiam a ruptura com os raciocínios que sistematicamente levavam a Humanidade aos becos sem saída. O próprio Einstein, socialista e apologista do socialismo como solução para os problemas da sua época, afirmou que "não pode resolver-se um problema utilizando os raciocínios que o geraram". Aliás, a aplicação das leis da dialéctica a um novo materialismo, iniciada por Marx e Engels, não representa outra coisa senão o surgimento dos novos raciocínios para resolver os problemas gerados pelos antigos.

Diz-se que durante o período da Guerra Fria, os cientistas soviéticos se opuseram à concepção matemática de "singularidade" como estado inicial do universo. Hawking diz mesmo que o fizeram por "fé marxista no determinismo histórico". Curiosamente, décadas mais tarde vem a colocar-se precisamente com grande força a hipótese teórica de não ter sido, de facto, esse o estado inicial do universo. Mas não é, obviamente, esse o motivo do texto que aqui trago, até porque estaria manifestamente em terreno inóspito para o meu insignificante conhecimento em matéria de física moderna, ou clássica, para o caso tanto faz.

"o mundo só terá duas saídas, socialismo ou a barbárie." Ora esta ideia marxista, plasmada na frase de Rosa Luxemburgo, segundo me parece é tudo menos determinista até porque nem o socialismo nem a barbárie são definidos por leis imutáveis, tampouco previsíveis. Mas mais do que isso, o simples facto de ser colocada uma bifurcação histórica teórica (socialismo ou barbárie) indica um modelo não estático da evolução histórica da humanidade. Aqueles que acusam os marxistas de determinismo histórico ou, pior, como faz Hawking (independentemente da sua genialidade) os acusam de "crentes numa fé", ignoram o mais evidente facto de estarem eles próprios a incorrer num raciocínio cristalizado em torno da imutabilidade das relações sociais. Ou seja, dos que descrevem as leis elementares das relações de classe e preconizam a superação dos estádios de desenvolvimento humano em cada época através da agudização dos antagonismos de classe, diz-se que são deterministas, ainda que assumam a incerteza sobre o futuro da Humanidade em função das condições objectivas e subjectivas de cada momento histórico.

Em contrapartida, dos que assumem a total estagnação da História no estado capitalista/imperialista, diz-se que são racionais e anti-dogmáticos. A contradição é evidente. Hawking encontra-se entre os que, do lado ocidental do mundo, se afirmou no mundo da ciência também partindo das conquistas de inúmeros astrónomos e matemáticos soviéticos, muito embora com o campo socialista tenha sempre mantido a necessária distanciação que o patrocínio do império lhe exigia. Ele próprio foi vítima da dogmatização de crenças religiosas, tendo agora, felizmente, a lucidez que caracteriza os génios para questionar essas teses, abandonando crenças e fés que sempre criticou nos restantes.


A concepção marxista, materialista e dialética do mundo e do universo, que embora integrada no pensamento de Einstein nunca afectou Hawking, é tudo menos determinista no sentido estrito da palavra. Veja-se como a visão materialista dialética é efectivamente a única ferramenta filosófica que, simultaneamente passível de teste e verificação (ao contrário dos modelos idealistas)aceita o princípio da incerteza, não na escala micro, mas mesmo macro, reconhecendo a influência das infinitas variáveis materiais e subjectivas que se interpõem no curso histórico da Humanidade. No entanto, é tão determinista quanto a Física e a Matemática, no plano filosófico. Ou não são ambas as disciplinas, particularmente a Física, o corolário da aceitação genérica e específica de que o Universo - em todas as escalas - é gerido por leis passíveis de compreensão. É aliás este o motor da investigação em Matemática e em Física: a convicção de que existem leis que podem determinar o funcionamento de todo o Universo. A busca da teoria quântica da gravitação (que unificará, tanto quanto se pensa, a teoria da relatividade geral com a mecânica quântica) é isso mesmo: a busca por uma teoria que possa unificar duas que aparentemente se contradizem e se excluem mutuamente. Claro que, para um marxista, isto não representa uma dogmatização ou uma fé determinista, na medida em que sabem que, de acordo com as mais elementares leis da dialética, existe interpenetração dos contrários. Ou seja, do antagonismo aparentemente insanável resulta uma realidade irrevogável.

Quem, como Hawking faz, acusa de "crentes deterministas" aqueles que descrevem os processos com que ele se defronta diariamente só pode fazê-lo por dois motivos: má-fé e anticomunismo militante e consciente, ou incapacidade de compreensão do que realmente é determinismo, dogmatização e dialética materialista.

A conquista humana da "teoria quântica da gravitação" será um momento de consagração do materialismo dialético nas ciências e modelos.