Muitas vezes nos interrogamos e nos interrogam, na nossa condição de comunistas, sobre um conjunto de preocupações em torno da superioridade moral e das "novas formas de fazer política" e isso remete-nos para uma reflexão em torno do conceito que se vem chamando de "homem novo".
A determinada altura, no seu esplêndido romance "O caminho das aves", José Casanova, através de uma conversa entre dois amigos na narrativa, coloca o "homem novo" não como um estado mas como um processo. Essa perspectiva facilita bastante a discussão e a compreensão das ideias por detrás do conceito ideológico de "homem novo". Segundo uma das personagens desse romance, o "homem novo" é todo aquele que, mesmo nestas condições adversas (no tempo narrativo - o fascismo) assume a luta pela transformação da sociedade como uma luta sua e se empenha nessa transformação.
Não podia eu estar mais de acordo com esta consideração do "homem novo" não como um patamar absoluto do desenvolvimento ético, moral e social do ser humano, mas como um conceito adequado a cada momento histórico, moldado pela evidência de um ser humano perante a doutrina dominante. Aquele que questiona o estado das coisas, as relações de poder, e simultaneamente se compromete, racional mas também apaixonadamente, com a transformação ou revolução, destaca-se da malha moral dominante, afirma-se "novo".
A "superioridade moral dos comunistas" é uma superioridade de classe, não de indivíduo, ainda que uma não exista sem a outra e vice-versa. No entanto, avaliar esse conceito de forma desgarrada das características da classe operária e das camadas exploradas da população, como fonte do comportamento político, ético e moral dos comunistas e dos seus partidos, seria propício à confusão lançada pelos adversários dos comunistas, confundindo a "superioridade moral do comunista" com uma espécie de arrogância moral.
O "homem novo", na sua dimensão utópica ou tendencial, é o termo que designa o ser humano liberto das condicionantes impostas por uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem, logo, também liberto das concepções morais que sustentam a exploração. Todavia, por maioria de razão, essa dimensão do "homem novo" dificilmente pode nascer por geração espontânea num contexto de aguda ditadura de classe, como é o capitalismo. Milhares de "homens novos" com defeitos, de toda a ordem, convivem com o capitalismo na medida em que milhares de homens e mulheres desafiam o próprio sistema, apesar de não serem imunes nem impermeáveis a nenhuma das suas influências. Nenhum homem ou mulher, nem mesmo comunista, é destacável da sociedade capitalista, é nela que vivem, trabalham e lutam, mas também é nela que são formados e que gerem os conflitos do dia-a-dia.
O comunista sofre a influência da comunicação social dominante, sofre as pressões morais da burguesia, interage com um meio que é condicionado em maior medida pelo seu adversário do que por si próprio ou pela classe com que se compromete. No entanto, o comunista - certamente não exclusivamente - tem de facto elementos que o distinguem dos restantes, particularmente dos seus adversários políticos, mas mesmo dos restantes elementos das classes trabalhadores. Enquanto que os adversários políticos do comunista, os que disputam a liderança do comité de negócios do grande capital, se distanciam radicalmente dos comunistas por diferença matricial nos objectivos - conservação versus revolução - os restantes membros da classe operária e de outras camadas exploradas distanciam-se do comunista apenas pelo facto de não estarem inseridos no mesmo colectivo, legado deles, mas que ainda não integram por insuficiência própria ou do colectivo.
Afirmar corajosamente a revolução como horizonte e objectivo e assumir compromissos com esses objectivos são comportamentos que se destacam e se evidenciam como avançados no contexto da hegemonia cultural e social em que nos encontramos.
i) a superioridade moral dos comunistas é entendida não como uma arrogância social, nem pode ser, mas como uma decorrência do posicionamento político dos comunistas. A moral da burguesia, predominante e contaminante, que sobrepõe o indivíduo ao colectivo e a exploração à convivência igual é uma moral conservadora das actuais relações sociais, retrógrada objectiva e subjectivamente. A moral burguesa, enquanto elemento conservador, amplia e difunde comportamentos que facilitam a estagnação histórica e limitam o progresso. Em oposição, a moral operária, assente no colectivo e na solidariedade, é uma moral progressista e orientada para a transformação, para a quebra das relações sociais baseadas na exploração. É, por isso mesmo, mais avançada, mais progressista, superior. Da mesma forma que se pode dizer que moral burguesa é mais avançada do que a moral aristocrática, é-lhe igualmente superior. Com esta abordagem compreendemos que a "superioridade moral" não é sequer uma característica individual dos comunistas, mas uma característica de classe, que os comunistas promovem entre eles, fazendo uso da sua organização de classe: o Partido.
Significa isso que o comunista, individualmente considerado, não é moralmente superior? Parece-me que não. Na verdade, o simples facto de se comprometer com a moral revolucionária, com a verdade, com a emancipação, com a elevação da sua própria conduta, particularmente no mundo do trabalho, no tabuleiro da luta de classes, assumindo o interesse colectivo como interesse superior e o sentimento do outro como parte integrante do seu, faz distinguir o comunista dos seus adversários, da burguesia, apesar dos seus defeitos.
ii) o "Homem Novo" existe antes do "Homem Novo". O conceito é evolutivo e, de certa forma, só pode ser compreendido nesses termos. Caso contrário, nunca haveria evolução histórica das sociedades e da Humanidade. Se só o Homem Novo plenamente concretizado poderá revolucionar o mundo e as relações sociais, gera-se um paradoxo incontornável.
Se só as massas e a sua luta podem alavancar as evoluções e revoluções, então só uma enorme massa de "homens novos" poderia revolucionar o mundo. Mas o "homem novo", pleno e ideal, só existiria no pós-comunismo. Aqui está uma impossibilidade prática se aplicarmos uma visão estanque e episódica. Essa impossibilidade dilui-se quando abordamos o aparente paradoxo de um prisma dialéctico. Os homens e mulheres que lutam por um mundo novo são já, em certa medida, "Homem novo". E é com estes, com seus defeitos, incapacidades, mas também com seu empenho e audácia revolucionários que se marcará o tempo para a evolução, gradual, processual, ou catastrófica, revolucionária certamente.
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2 comments:
Muito melhor ler-te do que ouvir uma deputada do psd na AR...
O Caminho das Aves foi um livro que me marcou, creio que marca todos quantos o lêem. É tempo de relermos os livros que aqui mencionas e outros. A ver se ganhamos mais força. A ver se isto anda...
Bom trabalho.
Este artigo... fez-me bem lê-lo :) Obrigada!
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