Não poucas vezes, principalmente
entre aqueles profissionais que dedicam a sua vida e trabalho às escolas e à
Educação, surgem inúmeras dúvidas, e legítimas, sobre as posições críticas em
torno da chamada Escola Dual e sobre as “vias vocacionais”. Falta de
compreensão justificada quer pela forma como se entregam ao combate pelo
sucesso escolar dos estudantes que acompanham, quer pela situação social com que
se defrontam e que significaria, muito provavelmente, na ausência de respostas
próprias, o abandono escolar de milhares de jovens.
Hábeis são as armadilhas
ideológicas com que a classe dominante mina o argumentário pseudo-social com
que justifica a profunda desfiguração que vai impondo aos sistemas educativos,
em vários locais do mundo, sendo um deles Portugal.
A tese mais difundida e que,
aparentemente, mais colhe é a de que as vias profissionalizantes, vocacionais e
profissionais são a forma de “diversificar a oferta educativa” para dar
resposta à desmotivação de muitos jovens que abandonariam a escola na ausência
dessas vias. Outros tantos afirmam ainda que estas vias devem ser encaradas
como a única forma de manter nas escolas os jovens que não têm vocação para o
prosseguimento de estudos. Estas duas teses, por si sós, suscitam logo um vasto
conjunto de considerações, dúvidas e respostas.
Por um lado, se aceitamos que
existem vias de escolarização especialmente dedicadas a jovens de grupos
susceptíveis de abandonarem em massa a escolaridade, isso significa que
aceitamos que a escola deve tratar de forma diferenciada as diversas camadas e
classes sociais. Essa consideração pode não ser errada, na medida em que a
Escola Pública, para assegurar sucessos escolares equiparáveis entre as classes
sociais, deve mobilizar para as camadas mais pobres mais meios do que para as
camadas mais ricas. Todavia, a desqualificação das vias profissionalizantes,
vocacionais, tem significado oposto. Há um facto que não pode ser, de forma
alguma, ignorado ao percorrer o caminho de raciocínio que este artigo traduz: o
insucesso e o abandono escolar não são fenómenos imunes ao efeito de classe,
antes pelo contrário, são resultado das assimetrias socias entre classes e da
degradação das condições de vida das camadas exploradas ou marginalizadas da
sociedade capitalista. Assim, a criação de respostas para as camadas juvenis
expostas aos fenómenos do abandono e do insucesso é, na prática, o mesmo que a
criação de respostas para as camadas mais empobrecidas da população, as camadas
trabalhadoras. Posto isso, pergunta-se se enquanto comunista posso ser contra a
existência de respostas educativas próprias para combater as dificuldades com
que defrontam esses jovens. Claro que não. A Escola Pública e o Estado têm a
obrigação de mobilizar todos os meios para garantir que a condição social do
jovem não age como determinante no seu percurso escolar, académico e formativo.
Essa obrigação passa, pela eliminação de mecanismos de triagem social que reproduzam
as assimetrias de origem e isso significa que a Escola deve estar munida dos
meios, recursos, e instrumentos administrativos que lhe permitam colocar o
estudante filho de trabalhadores em pé de igualdade perante o conhecimento e a
técnica, quando comparado com o filho das camadas mais ricas da população.
A cristalização em torno dos “conceitos
modernos” de “formação em contexto laboral”, de “ensino dual”, de “ensino
vocacional”, que conquista os mais incautos e dedicados profissionais da
educação, contribui para uma regressão social e civilizacional que transporta
Portugal para o passado e aprofunda o papel do Estado como instrumento da
classe dominante. O facto de existirem pesados indicadores de abandono e insucesso
escolares, fruto da necessidade de muitos jovens ingressarem precocemente no
mercado de trabalho ou na obtenção de meios de forma marginal, deve pois ser
combatido pela capacitação da Escola Pública no âmbito do número de
profissionais, professores, pedagogos, psicólogos, auxiliares de acção
educativa, mas também pela qualificação do processo educativo, pela sua modernização
e permanente melhoria. A acção social escolar, verdadeiramente digna, tem
igualmente o dever de criar as condições para a frequência escolar e acesso ao
conhecimento por parte de todos os estudantes.
Estas duas considerações podem
ser simplificadas da seguinte forma:
1. A
Escola não deve desqualificar a resposta de classe, como forma de reproduzir a
assimetria pré-existente, mas antes qualificar a resposta de classe como forma
de gradualmente eliminar essa assimetria. Não é aceitável que os filhos das
camadas mais empobrecidas e exploradas sejam considerados à partida como
intelectualmente desfavorecidos ou desprovidos de vocações adequadas à aquisição
de conhecimentos, enquanto que os filhos das camadas mais ricas são, só por
deterem a origem de classe que detêm, vocacionados para o desempenho das mais
qualificadas profissões e para o acesso ao conhecimento e à cultura aos mais
elevados níveis. A mais suave aceitação desses pressupostos levar-nos-ia para
uma sobrenatural distribuição da inteligência de acordo com os meios económicos
entre os seres humanos.
2. A
acção social escolar não pode representar um apoio na miséria, nem um mero
fingimento. A acção social escolar só pode ser entendida como o conjunto de
mecanismos que possibilitam ao filho do trabalhador estar em exacto pé de
igualdade com o filho do patrão perante o acesso e a frequência escolares. Ou
seja, a gratuitidade do ensino é uma questão fundamental para ultrapassar as
barreiras sociais e económicas que estão na origem do problema que o ensino
vocacional diz querer resolver. A acção social escolar só é efectiva se o estudante
carenciado estiver perante a Escola com o mesmo grau de exigência social e
económica que o Estudante não carenciado. Se todo o Ensino for absolutamente
gratuito, então à acção social escolar basta assegurar que a família carenciada
não tem de fazer um esforço superior às restantes para ter os filhos a estudar.
Se já
partirmos com essas considerações assumidas, ou pelo menos debatidas, o debate
sobre o ensino dual torna-se mais fácil e a posição que se lhe opõe torna-se
mais compreensível. Não se trata, pois, de estigmatizar um tipo de “ensino”,
nem tampouco aqueles que o frequentam ou os que nele trabalham, mas sim de não
aceitar que pode o Estado criar uma via de ensino desqualificado e orientado
para a formação profissional
exclusivamente para os filhos das classes exploradas. A propaganda do “ensino
ou formação em contexto laboral” que surge apregoado como a solução para os
problemas de falta de trabalho para os jovens assenta no dogma da reprodução da
assimetria, caso contrário, porque não são os filhos dos ricos também formados
nessas circunstância? Se a formação em contexto de trabalho é tão espectacular,
por que acaba sendo apenas dirigida para os filhos dos trabalhadores?
A defesa de um
sistema dual, ou ainda mais ramificado, assenta num preconceito classista que
determina que apenas os jovens mais ricos podem aceder aos mais elevados níveis
de conhecimento e que para os restantes se considera já um sucesso o facto de
aprenderem a fazer uma ou duas coisas de jardinagem. No essencial, com isto a
classe dominante deixa de dispender de meios para proceder à formação
profissional dos trabalhadores e passa essa responsabilidade para o Estado que
depois vende essa formação profissional como uma medida social e económica.
A
escolaridade obrigatória deixa de ser um direito para ser convertida numa
espécie de formação profissional compulsiva.
A defesa de um
sistema dual comporta ainda uma postura política mais grave: a da aceitação da
assimetria de origem como insanável e a da abdicação do direito a uma Escola
Pública de Qualidade para todos. Ou seja, perante a realidade social, abdicamos
de lutar pelo direito de todos a aceder aos mais elevados graus do
conhecimento, da cultura, da arte. Aceitamos que para uns, deus ou a classe
dominante, reservaram o acesso a saber desempenhar tarefas, a manifestar
competências e a outros foi dado o supremo direito a serem formados como
indivíduos conscientes, críticos e criativos. O sistema capitalista, a classe
dominante, assegura assim que a crítica e a criatividade fiquem reservadas
precisamente àqueles que as utilizarão para aprofundar a exploração e jamais
para a eliminar.
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