Friday, April 10, 2009

natureza humana ou natureza de classe

A natureza humana serve de justificação para as maiores atrocidades que se cometem, serve de justificação para o conformismo, para o comodismo, para os comportamentos violentos e, curiosamente, serve para justificar os actos desumanos. Numa perspectiva política a natureza humana e as suas formas, ocupam um lugar de destaque no folclore ideológico que nos rodeia. É, pois curioso, que a interpretação política e filosófica do mundo e dos seus problemas possa basear-se num tão vago conceito como natureza humana por parte de alguém que pretenda ter uma visão revolucionária do mundo.


A primeira de todas as batalhas políticas trava-se no plano ideológico e, como consequência, no plano filosófico. E as duas grandes forças que se degladiam nessa batalha são o idealismo e o materialismo.


Ora dizia-se na caixa de comentários do anterior post aqui no império que o que se mantém imutável desde os dias de Marx não são os conflitos de classe e o sistema classista mas sim a natureza humana e que é, portanto sobre ela que importa agir. Também se disse a determinada altura dessa interessante discussão que os “ismos” ideológicos têm desempenhado um papel de obstáculo ao desenvolvimento da luta revolucionária.


Partamos então para uma análise mais aprofundada do conjunto de coneitos e paradigmas filosóficos que emergem da própria ideia de “natureza humana” nos termos em que ela é utilizada. A burguesia sempre difundiu como base da sua hegemonia cultural a ideia de que a natureza humana é uma matriz em si mesma que é quase ou mesmo inalterável e que assenta no egoísmo e egocentrismo. Com essa doutrina conservadora, a burguesia impõe como “natureza humana” a sua “natureza de classe”, utilizando os meios de comunicação e educação de massas ao seu dispor, a classe dominante sedimenta a sua própria natureza exploradora, competitiva, egocêntrica, predatória, assassina e violenta junto das massas. Álvaro Cunhal aborda bem a forma como o proletariado resiste a esta ofensiva através da partilha de um código moral distinto, na brochura sobre “a superioridade moral dos comunistas”. Ou seja, a “natureza”, numa perspectiva do estudo da ética e do comportamento humano é aproximadamente a síntese e a súmula dos comportamentos e códigos morais de cada ser humano. Numa abordagem simplista e horizontal poderíamos dizer que existe então uma natureza humana, sendo então essa natureza humana um modelo imutável que determina o comportamento humano.


Todavia, numa perspectiva materialista, importa relacionar o comportamento material e ético do homem com o ambiente e as relações materiais que o rodeiam. Assim rapidamente chegaremos a um ponto de vista mais amplo que começa a fazer a distinção entre as várias “naturezas humanas” - passando a contemplar então as “naturezas de classe”, ou seja, os comportamentos e códigos morais de cada classe social. Dizer que a natureza humana é o que define as relações sociais e é o que se mantém ao longo da história da Humanidade é subalternizar a luta de classes e ignorar as diferenças genéticas que existem entre a “natureza moral” do proletariado, dos trabalhadores e popular e a “natureza amoral” da burguesia. Mas mais grave do que isso, é esquecer que o que determina a natureza subjectiva do Homem é a sua relação materialista com o meio, a sua posição nas relações sociais e produtivas.


As abordagens idealistas, tão próprias da burguesia e da pequena burguesia (seja ela de esquerda ou de direita), são aquelas que centram na “natureza humana” as variáveis que determinam as relações materiais e sociais. Isso é subverter por completo o processo e aceitar a linguagem conservadora actual que contrapõe a tal “natureza humana” à construção do socialismo, atribuindo a todos os homens e mulheres a sede de poder, a tendência para a corrupção e o individualismo. Com esta abordagem, ignora-se a história da Humanidade e nega-se a possibilidade da construção do Homem Novo. E dirão a esta altura os mais encaixados e acomodados ao sistema que o Homem Novo é um adorno romântico da ideologia comunista. Mas na construção do Homem Novo e na aceitação de que é possível fazer essa construção, está a pedra de toque do dilema “natureza humana vs natureza de classe”.


Para aqueles que no Homem Novo vêem apenas um romantismo socialista, basta perguntar-lhes se é ou não verdade que o Homem de hoje não é diferente do Cro-Magnon, ou do Homem da Idade Média. Isso rapidamente os obrigará a reconhecer que existem diferenças substanciais entre os comportamentos humanos de cada época e que, por consequência, Homem Novo é uma figura que marca as etapas históricas do passado e continuará a marcar as do futuro. Quando se diz que é a natureza humana que se mantém e que, como tal, podemos aceitá-la como um dado objectivo no nosso pensamento político revolucionário, ignora-se ou confunde-se que o que se mantém é a relação entre o Homem e os estímulos que recebe. No geral, poder-se-á quanto muito afirmar que os comportamentos materiais e éticos dos homens se têm mantido relativamente estáveis enquanto os estímulos materiais e sociais à sua volta se mantém igualmente. Ou seja, a tal de natureza humana é definida, não por um padrão de comportamentos pré-definido, mas pelo facto de ser racional e, sendo racional, redunda em respostas iguais para estímulos iguais. Já se o comportamento humano fosse errático ou caótico, tal natureza de consistência comportamental perante um estímulo igual não existiria.


A natureza humana é então um produto da relação do homem com o meio e é, portanto, tão variável quanto o são as relações sociais e os sistemas de organização da sociedade. O Homem sujeito a determinados estímulos reproduzirá proporcionais comportamentos. Ou seja, a classe dominante tem também como preocupação dominar os estímulos que fornece às restantes classes, como forma de moldar o seu comportamento. No entanto, a natureza humana não é má nem boa, é fruto racional das situações a que está sujeita.


Identificar na natureza humana uma espécie de “instinto primordial” que nos leva a roubar, matar, explorar, escravizar, etc.. é tão ridículo como identificar na natureza humana um “instinto primordial” que nos leva a ser solidários e empáticos com os outros. Os estímulos e a relação material que cada ser humano tem com o meio determinam o seu comportamento. No entanto, a racionalidade impõe comportamentos que se tornam padrões, por indução. Os homens das classes trabalhadoras rapidamente se aperceberam que a cooperação e a solidariedade são formas mais eficazes de combater a adversidade e construir o progresso, daí também se enraizarem com mais significado esses valores nas classes exploradas. No entanto, no meu entender, essa é uma questão relacionada com a interpretação racional do meio e não com um instinto solidário que nasce com o Homem. Da mesma forma, os homens das classes exploradoras sempre identificaram nos restantes membros da sua classe um adversário por competição, sempre viram nas restantes classes, os seus inimigos e, como tal, o seu comportamento e código moral é mais competitivo, predatório e muitas vezes violento e assassino. Esta dualidade de comportamentos mostra bem que, no quadro da sua racionalidade e interpretação do mundo, as naturezas humanas ramificam-se em naturezas de classe.


Significa isto que os trabalhadores não sentem a competição e o individualismo? Ou que a burguesia é insensível à miséria e não pode ter compaixão? No meu entendimento, esta antítese não nega a tese essencial. Os trabalhadores não são impermeáveis às pressões ideológicas das classes dominantes e a pulverização e desarticulação das formas de organização da produção e, consequenetemente, das formas de organização do operariado, contribuem para uma cada vez maior permeabilidade do operário à doutrina ideológica idealista. Dir-se-á que o trabalhador que adopta uma postura individualista o faz racionalmente porque os estímulos à sua volta lhe indicam que essa é a melhor forma de melhorar a sua vida, individualmente considerada.

Da mesma forma, o membro da burguesia, mesmo da grande burguesia pode manifestar comportamentos de compaixão e empatia com os outros. É exactamente desta incapacidade de ignorar o sofrimento e de simultaneamente pretender manter as relações que posicionam o burguês como classe dominante, que nascem as práticas caritativas. A abordagem kantiana a esta questão apoia inclusivamente esta análise. Para Kant, a moral é uma forma de integração e aceitação social do indivíduo. Ou seja, o indivíduo “pratica o bem” porque isso o beneficiará perante o meio. Ao que Kant nunca chegou foi ao reconhecimento de que o meio é variável e que, como tal, também o conceito de “bem” é variável. Ao que Kant também nunca chegou foi ao reconhecimento de que existem assimetrias de classe que moldam os comportamentos morais do indivíduo.


O idealismo é pois o instrumento mais poderoso da burguesia, porque centra o comportamento humano em torno das questões subjectivas e porque ilude a natureza materialista da ética e da moral. A sacralização de comportamentos nobres, desligados de uma abordagem materialista e a centralização ideológica no indivíduo são os meios filosóficos do capitalismo e não só. São, sempre que necessário, os instrumentos que fundam os fascismos e nazismos.


Curiosamente, anarquistas, esquerdistas, fascistas e nazis, partilham como base teórica das suas análises políticas e filosóficas o idealismo.

Wednesday, April 08, 2009

além da ideologia

Sobre as diferenças entre partidos comunistas e partidos de esquerda mais ou menos moderna ou colorida, julgo que importa aprofundar algumas questões. Principalmente porque há algumas semanas foi levantada esta questão aqui numa caixa de comentários do império bárbaro, julgo que posso deixar aqui umas breves opiniões e notas sobre aquilo que julgo serem as duas distintas e divergentes matrizes entre os partidos ditos de esquerda em Portugal.

Muitas vezes ouvimos dizer que a "unidade" das esquerdas é a ausência que justifica a sua derrota e que não existem assim tantas diferenças entre os partidos de esquerda em Portugal. Ainda há bem pouco tempo, nessa caixa de comentários, um amigo sugeria que entre as posições do PCP e do BE não existem assim tantas diferenças e que isso deve contribuir para diluir as divergências e criar um espaço de convergência.

O PCP, porém, é um partido de classe, identificado com a classe operária e os trabalhadores portugueses e baseia a sua análise política no materialismo dialéctico, apontando como alternativa ao rumo capitalista que sufoca a humanidade, o socialismo. Assim, partindo da concepção base de que é a luta de classes em torno da defesa de interesses antagónicos que produz alterações e progressos históricos, o PCP identifica os trabalhadores como a força indispensável às alterações políticas e sociais necessárias para uma superação do capitalismo. Os objectivos do PCP são essencialmente os da organização dos trabalhadores, dos jovens, homens e mulheres, em torno da defesa dos seus direitos, anseios e aspirações, como forma de intensificar a componente trabalhadora e popular da luta de classes.

O colectivo partidário do PCP é movido pela profunda convicção de que independentemente dos resultados eleitorais de cada força político-partidária é a luta de massas que corporiza a luta de classes que criará as condições para a ruptura política com o rumo que Portugal e o mundo vão tomando à mercê dos desígnios do grande capital. A alteração da correlação de forças no plano eleitoral e representativo é uma condição para ruptura institucional e é um contributo de grande força para a luta de classes e para a superação do actual estado de coisas, mas não é nem decisivo, nem única condição. Ou seja, a ruptura com o rumo político actual depende em grande escala da luta de massas, podendo ser potenciado em pequena escala pela alteração da correlação de forças no quadro da representação institucional para uma que seja favorável ao PCP.

Assim, o PCP começa por identificar um campo de prioridades distintas da do típico partido político português. A captação de eleitorado, a mediatização das suas posições e a agenda em função da conjuntura são características absolutamente secundarizadas num partido de classe e de projecto como o PCP.

O PCP é um partido nacional, com um programa político que tem como objectivo nuclear a construção do socialismo em Portugal e a emancipação dos trabalhadores, pondo fim à exploração do Homem pelo Homem. Acrescem as diferenças genéticas e matriciais que se verificam entre o PCP e os outros partidos: o PCP é um partido que assenta as suas posições numa profunda discussão interna, que apresenta as suas políticas e propostas alternativas com base numa sequência coerente, independentemente do momento político. O PCP não se posiciona de acordo com as flutuações conjunturais porque a sua análise é mais ampla e o âmbito da sua intervenção é global. O PCP é um partido que resulta da produção colectiva que é e não do contributo de um conjunto de dirigentes ou da vontade de um punhado de doutores ou intelectuais.

Ora, muito haveria para dizer do PCP, como é óbvio e seria inevitável num partido com 88 anos de história e com um papel histórico determinante em muitas alturas decisivas da história contemporânea de Portugal.

O BE é um partido que surge como o palco da fama de um conjunto reduzido de políticos da extrema-esquerda portuguesa, que funciona na medida dos raciocínios e propostas dessa elite política e que toma posições sobre os chamados temas quentes da actualidade, em função da conjuntura. A única razão para que esse agrupamento político tenha tantas posições políticas alinhadas com o PCP é o facto de copiar praticamente todas as propostas do PCP. Aliás, o BE pouco mais faz do que copiar as posições políticas do PCP, livrando-se daquelas que são incómodas à luz da comunicação social dominante e da hegemonia cultural de classe que vigora, independentemente de serem ou não justas. Por exemplo: à luz dos princípios que o BE diz defender, as FARC-EP teriam tudo para ser apoiadas por esse grupelho. No entanto, sendo conhecido o estatuto de terrorista que lhes tem sido atribuído ultimamente pela cultura dominante, torna-se incómodo e até ingrato defender essa força revolucionária. Por isso, mais vale não se falar disso. Mas o BE também faz o contrário, assumindo posições e depois escondendo-as porque não dão jeito. O BE anda por aí nas alturas de campanha eleitoral a apregoar a liberalização das drogas e o carácter lúdico do consumo de estupefaciantes. Mas quando chega a altura de concretizar e entre eleições, o BE limita-se a silenciar esses jovenzitos radicais que pululam entre as suas fileiras.

O BE é, além disso, um grupo político que despreza o contributo dos trabalhadores, que não reconhece a importância da luta de classes como motor do progresso e que até há bem pouco tempo dizia que os movimentos de massas tinham terminado e que o processo revolucionário de ora em diante se verificaria através da organização de minorias activas. O BE mantém assim, no essencial, a doutrina trotskyista que quer agora esconder, admitindo como central o papel de uma burguesia esclarecida na direcção política do planeta e do país. Para o BE, o operariado português, particularmente o operariado ligado ao PCP é retrógrado, conservador, machista e ignorante. Como tal, incapaz de operar as transformações sociais que se exigem para a ruptura socialista revolucionária. Assim rezará pois a bíblia esquerdista (agora social democratizada) dos membros do BE. No seu íntimo, desejam uma ruptura política que não coloque em risco a matriz do sistema, ou seja, os privilégios e a dominância económica, política, cultural e social da burguesia.

E essa é a diferença mais abissal que pode separar os diferentes partidos e movimentos políticos. Ao contrário do que o tema deste post indica, ela não está além da ideologia, mas nasce da própria ideologia, assim moldando todos os cantos e pilares de um partido. Porque a concepção burguesa, ainda que de esquerda, da transformação social é feita sem o contributo colectivo do proletariado organizado como classe dominante. É feita da mera soma dos espíritos privilegiados.

Isto molda os mais elementares princípios orgânicos do PCP e não molda os do BE. Isto faz distinguir o PCP de todos os outros partidos, isto determina uma organização comunista em torno de um colectivo, munido do centralismo democrático como instrumento revolucionário e do materialismo histórico como ferramenta interpretativa da realidade. Isto faz, quer queiram quer não, distinguir o PCP do BE em toda a linha. Porque no BE não existe o conceito de militância classista, de organização revolucionária.

Dir-me-ão: "mas no imediato que importa a concepção programátrica de cada um?" importa na medida em que um trabalha para retardar o potencial da classe operária, como forma de manter os seus privilégios e outro trabalha com tudo o que tem para o reforçar e acelerar. Importa na medida em que essa diferença determina a diferença de comportamentos que se verifica entre os membros descomprometidos do BE e os militantes comprometidos do PCP. Porque isso influencia a forma como se concebe e se utiliza o poder, a intervenção sindical a representação institucional.

Ao longo do tempo, uma coisa se tornará certa. Os trabalhadores terão sempre a necessidade de um Partido de classe. Pode chamar-se PCP ou qualquer outra coisa. Mas esse partido, essa organização terá sempre as características do PCP e nunca as do BE.