Friday, November 01, 2013

notas sobre o capitalismo e a democracia

Será compatível com o conceito de democracia, a contracção dos serviços públicos ao simbolismo ou a regressão do Estado a mero polícia da ordem dominante?

Para que pudéssemos responder a essa questão, teríamos antes de tudo, clarificar que conceito de democracia estamos a utilizar no debate.

Podemos pensar a democracia como prática política correspondente à participação popular na definição e concretização das orientações políticas, ou seja, como a participação concreta e directa das massas na vida colectiva. Esta democracia, que em grego corresponderá a laocratia, tem como desenvolvimento final e lógico o comunismo, ou seja, a total superação das relações sociais de exploração, por inexistência de propriedade privada, na medida em que a gestão colectiva ultrapassa a necessidade de uma hierarquização da propriedade e da sua utilização.

Por outro lado, podemos pensar a democracia como a forma de organização de uma sociedade e dos seus órgãos de soberania, ou seja a democracia como República, o correspondente ao grego Democratia. Esse conceito é infinitamente mais limitado e tem como resultado a organização social do estado sob a forma de uma "democracia parlamentar", assente nos princípios da democracia representativa. No caso da República Portuguesa, consequência das conquistas de Abril vertidas no texto constitucional, essa democracia formal é coexistente com uma democracia participativa, ou deveria ser. A República, enquanto forma de organização formal do Estado não limita por si mesma o aprofundamento e a manifestação de todas as outras formas de participação.

A questão que nos devemos colocar é: será possível manter ou aprofundar qualquer uma das formas de "democracia"? A resposta que me parece acertada é "não". Nenhuma democracia é compatível com a liquidação do papel do Estado nos serviços públicos e na economia. O mesmo é dizer que, no médio-prazo, existe uma contradição insanável entre capitalismo e democracia, seja a formal, seja a directa. Se considerarmos, como aos comunistas portugueses parece acertado, que a democracia se desenvolve em quatro vertentes interdependentes e interpenetrantes - cultural, social, económica e política - então, a liquidação da intervenção democrática em cada uma dessas esferas faz colapsar cada uma delas e, em última análise, a própria dimensão política da democracia - a formal.

O avanço do capitalismo é assim tendencialmente contraditório com as mais elementares formas de democracia. O que está em causa não é sequer o antagonismo entre o capitalismo e o socialismo, mas também a sua incompatibilidade concreta com a democracia, mesmo com a democracia burguesa. A concentração da propriedade e a gestão privada da economia retira de qualquer regime democrático a capacidade de definir seja o que for na organização da vida colectiva.

No entanto, não é menos correcto afirmar que quanto maior for o aproveitamento do potencial produtivo de um país, mesmo em contexto capitalista, mais se aproxima esse país da possibilidade de construção do socialismo. Tal afirmação parece decorrer da consideração do desenvolvimento dos meios de produção como condição para a superação do capitalismo. Aparentemente é criada uma contradição: se a concretização do potencial produtivo conduz a maiores possibilidades de superação do capitalismo, como pode o aprofundamento do capitalismo ser incompatível com a democracia. Tal aparente contradição é ultrapassada se tivermos em conta que o capitalismo não é o mesmo que o desenvolvimento da produção. Na verdade, mesmo ignorando os factores relativos à distribuição internacional do Trabalho, o capitalismo não significa produção, significa antes acumulação, pela via da apropriação dos resultados do trabalho sobre a forma de lucro, seja pela exploração directa do trabalho, seja por via da especulação que é igualmente uma apropriação de mais-valias, embora de forma indirecta.

O capitalismo não corresponde, pois, à intensificação da produção nem à generalização do Trabalho, aliás, quando a produção deixa de ser a preocupação central do capitalismo e quando o desenvolvimento dos meios de produção desacelera ou estagna, significa que o capitalismo atingiu os seus limites históricos. Ou seja, se enquanto o capitalismo implica um franco desenvolvimento da produção - porque a maximização do lucro é concordante com essa estratégia - se pode afirmar que existe uma espécie de exploração do Homem pelo Homem com resultados globalmente positivos apesar de assimétricos.

Já tal não se pode afirmar quando o objectivo do lucro passa a ser contraditório com a intensificação da produção, ou quando subordina a produção ao controlo financeiro, na medida em que, ao contrário do que se passa na fase que referimos anterior, já não há benefício global, mas apenas lucro para quem explora e empobrecimento para quem trabalha. Essa fase do capitalismo é contrária ao desenvolvimento social e económico e, como tal, frontalmente contraditória com a democracia, por mais formal que seja, e regride para o afastamento do limiar da superação do capitalismo.

Apesar de os processos históricos serem fluídos, constantes e dialécticos, não podemos entender os movimentos históricos como assimptóticos. Ou seja, está nas mãos da vanguarda, dos comunistas, dos trabalhadores e das suas organizações, partido e sindicatos, criar o sobressalto histórico necessário para que o capitalismo não se prolongue, oscilando entre as democracias formais e as ditaduras, para que o factual atingimento dos seus limites históricos corresponda a uma superação e não a uma regressão civilizacional.
Tal sobressalto é catalisado pela vanguarda, pelas organizações de classe dos explorados, mas só pode ser protagonizado com as massas.