Tuesday, October 09, 2018

Notas sobre a táctica.

Sem perder de vista o objectivo supremo dos comunistas, perante a capacidade de adaptação do capitalismo e a sua tendência para recorrer à agressividade e à violência, através da constituição de estados e regimes fascistas sempre que se sente ameaçado pela simples possibilidade de perder o controlo da distribuição da riqueza produzida, a Internacional Comunista decidiu adoptar uma táctica frentista.

A unidade de todas as forças anti-fascistas, particularmente após 1933 e a ascenção de hitler, constituindo as frentes populares, por orientação da Internacional Comunista, com o grande contributo de Dimitrov e Stalin, delineou a orientação correcta para as vanguardas operárias de todo o mundo que se encontravam no limiar dos fascismos que assolavam e se assumiam como a face do capitalismo pronta a devastar o mundo. Perante a incapacidade de o movimento operário desferir o golpe fatal sobre o capitalismo em vários países e o reforço do apoio popular a versões demagógicas do capitalismo autoritário e ditatorial, os comunistas não hesitaram entre um capitalismo com potenciais expressões de democracia e a liquidação física dos seus camaradas.

Entre a liquidação dos progressistas e a manutenção de um regime em que os progressistas podiam usar a palavra e a participação institucional, com benefício para todas as camadas trabalhadoras, a hesitação seria mortal. Tal balanço provocou uma alteração sensível na orientação dos partidos comunistas na cena política das nações e também no plano internacional: de proclamantes a lutadores concretos pela liberdade, nas condições concretas de cada país. A unidade antifascista era mais do que justa, era uma absoluta necessidade. Ou seja, a táctica frentista é uma obrigatoriedade perante a ameaça fascista, na medida em que o extermínio dos comunistas em momento algum pode resultar a favor dos que lutam pela emancipação do proletariado. Perante a real ameaça fascista, o acantonamento pode resultar na total incapacitação da classe operária, pode resultar na liquidação da sua vanguarda e, como tal, da sua capacidade de organização, reorganização e disputa do poder ou, mesmo, na liquidação da sua capacidade de resistência.

A táctica da Internacional Comunista definida após 1933 não foi um erro, senão a adequação da táctica às condições reais e imprevistas da ascenção de uma versão de regime capitalista violento, de uma ditadura política, económica, social e cultural, dos monopólios, mantida com o recurso à força, à violência e ao extermínio, como a história, de formas diversas, nos veio a demonstrar.

O enquadramento histórico dessa táctica, contudo, veio a diluir-se. A táctica frentista de alianças com a social-democracia e outras camadas que em determinado momento se revelaram anti-monopolistas ou antifascistas foi delineada para travar o fascismo perante a real possibilidade do seu desenvolvimento e implantação, principalmente quando essa possibilidade se reveste de apoio popular entre as camadas trabalhadoras e populares. O prolongamento dessa táctica para além dos contextos em que o fascismo não se constitui como verdadeira e concreta ameaça pode resultar, na prática, na rendição do proletariado à doutrina da social-democracia e suas diversas e criativas versões. Versões que pelo mundo afora dão por nomes vários: desde "socialistas" a "social-democratas" e "trabalhistas". Versões que admitem não colocar em causa o modo de produção dominante e a organização política que o serve. Ou seja, versões do capitalismo que não visam mais do que angariar, a cada momento, a maior base de apoio social possível para o modo de produção dominante.

Tal é evidente na observação que a resolução política do XIX congresso do PCP estabelece sobre o PS:

"Partido da política de direita, mascarado com um discurso de «esquerda» para iludir os muitos milhares de eleitores socialistas que aspiram sinceramente a uma ruptura com a política de direita, o PS encontra, no quadro mediático orientado para perpetuar a política ao serviço do grande capital, o espaço para, sem deixar de colaborar e fazer avançar medidas antipopulares, se apresentar como «alternativa» ao actual governo. O que, a verificar-se, não só não corresponderia à necessária viragem de fundo nas políticas e orientações governativas como abriria uma nova fase na promoção e prosseguimento dos objectivos inscritos no Pacto de Agressão." (destaque meu)

O que o PCP aqui afirma é precisamente esse risco: o da potencial capacidade de forças políticas comprometidas com a estratégia do capital ganharem maior apoio social para a concretização dessa estratégia perante a possibilidade de perda de apoio social de forças assumidamente mais reaccionárias e assumidamente colocadas ao serviços dos grandes grupos económicos. Verificamos que o PCP alerta para a possibilidade de forças travestidas de "esquerda" angariarem apoios populares que permitam ao grande capital aplicar um programa com menos contestação social.

Esta tese, constante da resolução política do XIX Congresso, demonstra o alerta do PCP para os engodos da social-democracia e para o seu verdadeiro objectivo: o de aplicar o mesmo programa que a direita mais assumida, mas com mais apoio social.

A táctica frentista, todavia, acabou por se perpetuar e por se tornar presente e determinante em muitos locais onde os comunistas e seus partidos não lograram assumir a vanguarda e a hegemonia do movimento popular e do movimento operário. O derrubamento do socialismo no antigo sistema socialista mundial veio agravar o sentimento de isolamento de vários partidos comunistas e a alteração política e ideológica provocada por esse derrubamento à escala mundial veio encostar vários partidos a uma posição de "pré-rendição". Isso é patente em vários partidos ditos comunistas por todo o globo, com a sua adopção exclusiva ou dominante de códigos de luta em função de problemas justos mas circunstanciais dentro do capitalismo. As lutas sectoriais passaram a dominar a agenda de vários partidos que até então lutavam pela libertação do proletariado e pela constituição dessa classe como classe dominante.

A ideologia capitalista estendeu-se a algumas forças revolucionárias e a luta desceu a bitola. Da libertação do proletariado, muitos partidos e movimentos abandonaram ou secundarizaram a luta pelo poder a troco da luta pela melhoria das condições sectoriais. Problemas reais, resultantes objectivamente do capitalismo e do domínio da burguesia sobre o proletariado passam a ser encaradas como prioridade desgarrada da prioridade máxima: a da libertação do proletariado.
A luta dos homossexuais, transexuais, a luta das vítimas do racismos, a luta pelo ambiente saudável, a luta das mulheres, entre outras; todas elas absolutamente necessárias e orbitais em relação à luta do proletariado, ganham autonomia e canibalizam as forças das vanguardas proletárias. Em vez de serem rios que afluem para a grande batalha pelo poder proletário, tornam-se braços autónomos de um delta que não tem onde desaguar e acaba pulverizando forças e perdendo apoio popular por sectorializar a luta e se afastar das grandes preocupações transversais a todas as lutas sectoriais. Ao concentrar os seus esforços nessas lutas, as vanguardas comunistas acabam por secundarizar a mãe de todas as lutas e a luta da qual dependem todas essas: a luta pelo poder popular e proletário.

Implicitamente, forças progressistas de todo o mundo, acabam reconhecendo que o capitalismo pode não ser superado, mas ajustado a essas necessidades sectoriais, assim reforçando a visão social-democrata: a de que as reformas justas e progressistas do capitalismo são compatíveis com o poder hegemónico dos grandes grupos económicos. Essa ilusão revela-se fatal onde quer que grasse.

O estudo e a aprendizagem com os mestres do movimento operário e comunista demonstram com exemplos vários a impossibilidade cabal de conciliar capitalismo com emancipação do proletariado. A confluência com as forças sociais-democratas esgota-se portanto na necessidade imperiosa de derrotar os sectores do capitalismo que estão disponíveis para a constituição do estado fascista. Toda e qualquer colaboração com a social-democracia, num contexto não hegemónico da frente operária na luta, que vá além dessa necessidade, que se entretenha com supostos "estados intermédios" e com avanços supostamente progressistas está condenada a tornar-se numa rendição, num colaboracionismo com uma parte da burguesia que não aspira à real transformação do modo de produção dominante e à configuração política que lhe dá cobertura.

A entrega das armas dos comunistas à burguesia, ainda que a uma parte dela menos agressiva, conduz à constituição de um poder ao serviços dos interesses dessa burguesia, preferencialmente aliada da grande burguesia nacional e transnacional. A rendição ou o apoio da vanguarda partidária do proletariado perante a burguesia, excepto no caso extremo do combate à ascensão nazi e fascista, conduz à constituição política da ilusão que os comunistas visam desde sempre combater. A constituição de um suposto estado de todos, interclassista, não pode ser mais do que a ditadura da burguesia com mais ou menos cedências perante o operariado para obter o necessário apoio de massas. Tal estado de coisas corresponde no essencial ao lodaçal da estagnação económica, da degradação das condições básicas das condições de vida do proletariado a médio e a longo prazo, porque sempre que necessário escolher entre mais acumulação ou mais distribuição, a burguesia não hesita em favor do primeiro.

A condução de um povo para o lodaçal, gorando as suas legítimas expectativas tem um custo incomportável para os trabalhadores, para as minorias e, principalmente, para os que decidiram lutar pelas suas causas. A entrega do poder aos sectores mais demagógicos e reaccionários da direita. O extermínio. O Brasil.

Hoje, no Brasil, a unidade antifascista é uma evidência e uma urgência. Resta avaliar se o que se verificou antes era igualmente urgente e necessário.

Monday, May 30, 2016

Tem o idealismo raízes materialistas?

Confesso que tenho muita dificuldade em discernir qualquer linha de pensamento dos arrazoados simplistas com que José Rodrigues dos Santos insiste em fundamentar uma atoarda que lhe terá saído mal. Das duas uma, ou JRS é ignorante ao ponto de insistir porque julga que tem razão, ou JRS está profundamente comprometido com a linhagem teórica do revisionismo histórico em curso que tenta a todo custo aproximar o marxismo do fascismo. Ou ambas, que é uma coisa que JRS ainda não alcançou: a dialéctica.


Tendo em conta o caudal de argumentos desconexos, que traz consigo, como uma torrente, a lama de uma arrogância típica dos ignorantes, é muito difícil estruturar uma resposta que possa abarcar todos os aspectos daquilo a que JRS – não sei se como jornalista que cultiva a imparcialidade, se como escritor de ficção, se como investigador e historiador – se tenta referir sem apresentar uma única fonte que sustente as suas “provas”. Não deixa de ser curioso que um jornalista e escritor aponte como fonte para uma tese tão estapafúrdia como “o fascismo tem origem no marxismo” as suas próprias reflexões num livro de ficção. Sobre isso, para quem faz jornalismo e investigação, julgo que é tão básico como perceber que não se pode usar como fonte o veículo, por ser uma informação cuja confirmação se torna circular. Faz-me lembrar Paulo de Morais quando, durante os trabalhos da comissão de inquérito do BES, afirmava que a Comissão de Inquérito não sabia quem eram os beneficiários dos créditos do BES Angola porque não queria, sendo que ele já sabia. Instado pela Comissão a fazer chegar os documentos e provas que pudessem comprová-lo, Paulo de Morais envia os seus próprios artigos de opinião publicados na imprensa portuguesa. Ora, interagir com alguém que não compreende o ridículo dessa operação, torna-se demasiado penoso.



Mas, no caso, o marxismo merece o exercício de paciência e o esforço para que não restem dúvidas sobre a falsidade da tese de JRS.


Vejamos o que diz JRS, portanto:


1. Que alguns políticos se terão sentido incomodados com a sua afirmação de que “o fascismo tem origem no marxismo”e que recorreram, sem argumentos, ao insulto baixo.

Sobre isto, não sei a que políticos se refere e, à parte as reflexões sobre o termo “político” usado por JRS, eu sinto inserir-me nos “políticos” que se sentiram incomodados, porque me provoca incómodo, não que alguém possa dizer tamanhos disparates, mas que esse alguém seja um jornalista com carteira e um escritor muito lido, cuja credibilidade foi construída como um produto e é, por isso, uma ilusão de massas. Mas não deixa de ser uma “fonte credível” para um vasto conjunto de pessoas, pelo menos para todas quantas reputam como boa a literatura produzida pelo autor com uma chancela – por mais falsa que seja – de idoneidade e seriedade, até sob uma capa de uma certa cientificidade. Tendo em conta que não vi mais “políticos” a reagir ao jornalista, suponho que pelo menos eu seja visado neste seu desabafo, para o que, importa dizer, dispõe de espaço num jornal nacional. Em primeiro lugar, eu dei-me ao trabalho de traduzir “A doutrina do Fascismo” de Mussolini, para poder usar como fonte e base para o que dizia. E sim, é verdade que deduzi que JRS fosse um ignorante e escrevi-o. Daí a dizer que não utilizei argumentos quando publiquei as próprias frases de Mussolini que compõem um capítulo da obra “A doutrina do Fascismo” que se chama “A rejeição do marxismo”, julgo que tem de fazer um caminho só mais curto do que aquele que JRS tem de percorrer até poder discutir marxismo e fascismo, não como escritor de ficção, mas como político, filósofo ou mesmo historiador. Sim, porque JRS faz chacota e amesquinha a ciência política, arvorando-se em investigador, em pensador político e filósofo.


2. Que o marxismo se via como uma ciência “tão científico, na sua opinião, como a física de Newton”. JRS não compreende que o materialismo se opõe ao idealismo. Aqui começa o deslize de compreensão de JRS que acaba por se transformar na grandiosa conclusão própria de que “muito pouca gente sabe, mas é verdade”, “o facto de que o fascismo é um movimento que tem origem marxista”. Na verdade, Marx e Engels usavam a abordagem científica, materialista da História da Humanidade. O que JRS desconhece – mas bastava ter lido uma brochurazita sobre marxismo – é que o marxismo usa o método científico para estudar a realidade, mas em caso algum espera da realidade um comportamento linear. Aliás, o marxismo, com a utilização do método científico na construção dos seus fundamentos compreende muito bem quais são as forças que devem actuar para motivar as transformações sociais. O que JRS afirma “A ideia era simples: ao feudalismo sucede-se o capitalismo, cujas contradições levarão inevitavelmente os proletários à revolução que conduzirá ao comunismo. Nesta visão a história é teleológica e determinista. Não é preciso ninguém fazer nada, pois a revolução do proletariado é inevitável.” manifesta uma tremenda falta de compreensão sobre o marxismo para quem acha que pode sequer debatê-lo. Pelo contrário, quem resume o marxismo desta forma, não apenas demonstra ignorância, mas também que não cumpre os mínimos para um debate sério sobre o tema em que, por mais cacetada que leve, insiste.

Em nenhum momento, em forma alguma, Marx ou Engels terão dito ou escrito qualquer coisa semelhante à que JRS usa para definir o marxismo. Isso, por si só, é revelador.


3. JRS tenta dar alguma cientificidade aos seus delírios, chamando ao debate um monte de gente que ninguém conhece e assim tentando construir uma legitimidade e credibilidade pelo impacto. “Epá, o tipo deve saber muito disto.” Vamos lá então: em primeiro lugar, JRS confunde movimento com ideologia, acção política com doutrina. E fá-lo desajeitadamente e provavelmente sem se aperceber do erro que comete. É que, se por um lado é verdade e correcto dizer-se que o movimento fascista tem origem na instrumentalização dos movimentos operários, já é absurdo dizer que o fascismo tem origem marxista. E porquê? É verdade que perante a ascensão do proletariado enquanto classe revolucionária, as burguesias dominantes tentam condicionar o crescimento da luta e dar-lhe um carácter conservador e reaccionário. É, portanto, verdade, que o movimento operário e reivindicativo esteve na origem do crescimento do fascismo, porque o fascismo cresce precisamente pela manipulação desse movimento. Quanto mais divisões, mais alheamento, mais religiosidade, o fascismo pôde introduzir no movimento operário, mais o conseguiu tornar reaccionário. Ora, começa a perceber-se um primeiro patamar do problema de JRS: começa por confundir movimento operário com marxismo. Adiante, no seu artigo, vai mesmo confundir o conceito de socialismo dos anos 20 com marxismo.


4. Depois da gloriosa tirada que resume “Das Kapital” em três frases, JRS tenta dizer-nos que há duas grandes correntes no pensamento marxista que importam para a ligação entre o fascismo e o marxismo: a visão de Sorel e a visão de Bauer. Aproveita para dizer que o bolchevismo nasce com a perspectiva soreliana, assim desvalorizando Lenine. JRS diz que é Sorel que traça o destino do partido bolchevique ao definir, no seu livro “Reflexões sobre a violência” a vanguarda e a violência como fórmulas revolucionárias. Infelizmente para JRS, já Marx, uns bons 60 anos antes falava da eventual necessidade de violência e Lenine, 6 anos antes de Sorel escrever o livro que JRS diz ter sido a base da acção bolchevique, escreve o conhecido “Que fazer?”, obra na qual Lenine define com relativa precisão a necessidade de organizar política e socialmente o proletariado. Curiosamente, o anarquista Sorel é citado como fonte inspiradora, não por Lenin, mas por Mussolini. Começa bem, JRS.


5. Adiante, JRS diz: “Recorde-se que Marx e Engels consideravam que o capitalismo era uma fase necessária e imprescindível da história humana e que sem capitalismo nunca haveria comunismo. Os bolcheviques renegaram esta parte do marxismo quando preconizaram que na Rússia era possível passar diretamente de uma sociedade feudal para o comunismo, mas neste ponto os fascistas mantiveram-se marxistas ortodoxos ao aceitar que o capitalismo teria mesmo de ser temporariamente cultivado em Itália.” e consegue introduzir dois enganos. O primeiro é o de que os bolcheviques renegaram esta parte do marxismo. Com isto, JRS demonstra ignorar o escopo da NEP (nova política económica) e a persistência de várias práticas inerentes ao capitalismo na economia russa e soviética, assim decidida precisamente por terem os bolcheviques compreendido que a organização capitalista da economia potenciava, transitoriamente e para aquele contexto, melhores condições para o desenvolvimento das forças produtivas e para a superação do feudalismo e do atraso tecnológico da Russia. O segundo é o de dizer que defender o capitalismo é ser “marxista ortodoxo”. Pelo simples facto de que a consideração marxista sobre o papel do capitalismo era uma constatação de factos e não uma defesa do capitalismo. O marxismo não defende que o capitalismo deve preceder o socialismo por motivos morais, o marxismo identifica esse nexo como factual no fluxo da história. Mas numa perspectiva “marxista ortodoxa”, o que seria de esperar seria a defesa do capitalismo como fase transitória para o socialismo. Ora, é precisamente isso que o fascismo nega. O fascismo não afirma como objectivo, em fase alguma da sua história, a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Pelo contrário, o fascismo advoga a iniciativa privada e abomina o colectivismo. Ao longo de todos os discursos de Mussolini está presente essa visão, bem como na obra fundadora do fascismo enquanto doutrina “A doutrina do Fascismo”.


6. Sobre o nome do NSDAP, Partido Nacional-Socialista da Alemanha que JRS usa como prova máxima da sua tese abjecta, importa dizer duas coisas: em primeiro lugar, o socialismo não é o marxismo, o conceito de socialismo e a sua utilização naquela altura estava longe de ser meramente marxista. O socialismo é um modelo de organização da economia que não é fundado por Marx, nem por Engels. Aliás, Marx e Engels começam os estudo do capitalismo precisamente para compreender como se pode construir o socialismo, já conceptualizado muitos anos antes pelos socialistas utópicos. Em segundo lugar, a utilização do termo “socialista” no nome do NSDAP é o aproveitamento oportunista do momento histórico, económico e social que a Alemanha vivia naquela altura. É preciso relembrar JRS de que as eleições quase tinham sido vencidas pelo Partido Comunista Alemão e que o contexto era de ascensão do proletariado e que, por isso mesmo, Hitler não teria as mesmas hipóteses caso não tivesse optado por parasitar esse sentimento?

Infelizmente para os povos de todo o mundo, nem Hitler nem Mussolini tinham qualquer simpatia pelo socialismo sequer, muito menos pelo marxismo.


Mas JRS comete um erro fundamental que, no seu desenvolvimento, o faz confundir “movimento” com “doutrina”; “socialismo” com “marxismo”; “Ciência” com “método científico”; “dialéctica” com “determinismo”. É que JRS está no campo filosófico do idealismo: dos que preferem ter como facto tudo o que não é possível negar, a crença, a ideia. E os marxistas estão do lado oposto: no campo filosófico do materialismo: dos que preferem ter como facto aquilo que podem confirmar.
Curiosamente, JRS está no mesmo campo filosófico que Mussolini, o do idealismo.


O que é grave, não é que JRS tenha ideias próprias. Ainda bem que as tem. O que é grave é que amesquinhe quem dedica a vida aos estudos sérios, com cientificidade, com método. O que é grave é que não se aperceba do respeito que deve a quem o lê e o que é grave é que não perceba que a ligação entre marxismo e fascismo que ele estabelece não é matéria de facto, é matéria de opinião. E o que é grave é que uma pessoa que entra em nossa casa como imparcial jornalista seja, na verdade, um cruzado político que, como bom cruzado, porta o estandarte da religião. No caso, a anti-comunista.

Tuesday, May 17, 2016

Paralaxe

O erro de paralaxe é o erro que corresponde à aparente variação de posição de um determinado objecto em função da posição do observador. Na política, todos somos afectados por esse erro. Cada um de nós, combatendo ou não esse efeito, interpreta o mundo e os fenómenos políticos em função da perspectiva, do posicionamento político, da posição de classe social que integra ou com que se identifica. Mesmo podendo separar os campos de interpretação em duas grandes áreas de perspectiva: a idealista e a materialista, dentro de cada uma dessas áreas, cabem interpretações várias de um mesmo fenómeno.

Uma vez, ouvi uma rapariga dizer que era contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez porque só engravida quem quer, que hoje há muita informação e muito acesso aos métodos contraceptivos mais variados, que há consultas de planeamento familiar gratuitas e que na escola se aprende tudo quanto é necessário para fazer um planeamento ponderado da gravidez. Não concordei. Contudo, se olhasse à minha volta apenas, para o grupo de pessoas nos quais me insiro, praticamente todas aquelas considerações seriam válidas. Entre a juventude urbana e informada, descendente de professores e professoras, com acesso a educação e acompanhamento familiar em casa, com acesso a escola de qualidade e com centros de saúde com trabalho de proximidade na comunidade e consultas de planeamento familiar bem próximas de casa, todas as premissas da rapariga eram válidas: só engravida quem quer e, como tal, só aborta quem se desleixa.

Uma vez, num determinado contexto, defendi a legalização do consumo de drogas leves. O meu argumento fundamental assentava na liberdade do indivíduo e na capacidade de gerir o consumo de forma inteligente e sem prejudicar a sua vida social, laboral e familiar. Para o universo de jovens que eu conhecia, isso era uma realidade aparentemente material - que só mais tarde vim a compreender tratar-se de uma ilusão. Que há muita informação, que se um jovem adulto quer fumar um pof em casa descansado, deve ter acesso a droga de qualidade e a adquiri-la numa loja com regras e com garantias e certificado de origem. Na verdade, à minha volta, todo o consumo de drogas parecia informado, livre e divertido.

Uma outra vez ainda, disseram-me que a prostituição deveria ser regulamentada. Que quem quer prostituir-se deve ter direito a fazê-lo e que só se prostitui quem quer. Que assim, regulamentada a profissão, seria mais digno para quem decide prostituir-se e que seria mais higiénico para quem quer usar o serviço. É uma questão de liberdade individual, diziam-me! Que se eu quero vender o meu corpo, sou livre de o fazer e o Estado tem de respeitar a minha opção. Que eu sou informado e que até posso gostar de me prostituir e que quero é ter direitos como os restantes trabalhadores. E mais, quero pagar impostos e regularizar o mercado e o negócio das carnes e do acto sexual livre e consentido, pois só assim se combate o mercado ilícito e degradante da prostituição de rua. Tendo em conta o universo de pessoas em que me insiro, praticamente todas estas premissas se verificam.

Não faz muito tempo, ouvi argumentar que devíamos regulamentar o "negócio jurídico" da gestação de substituição. Por motivos óbvios, se uma pessoa quer ter um filho para ajudar um casal amigo que não pode, por motivos médicos, ter filhos, então essa pessoa deve ser livre de o fazer. Que é um avanço para as mulheres, uma exaltação da sua autonomia e liberdade. Tendo em conta o grupo de pessoas com quem me relaciono, praticamente todas estas considerações são válidas.

Portanto, numa visão centrada no "eu" e na minha experiência, na minha vida, nos meus conhecimentos e na minha capacidade cultural, social e económica de dar resposta às questões com que me deparo ao longo da vida é adequado afirmar que: não devemos despenalizar o aborto porque só aborta quem quer; não devemos proibir o mercado da droga porque somos todos suficientemente conscientes para fazer um consumo regrado de drogas leves; devemos regulamentar a prostituição porque só se prostitui quem quer; devemos criar um "negócio jurídico" para que uma mulher possa ser gestante de um filho do qual abdica antes de o conceber.

Quando se fazem leis, contudo, há uma questão que tem de prevalecer: a de que elas não se aplicarão apenas ao meu grupo de amigos, nem apenas a uma elite cultural ou social ou económica. As leis que se produzem não são exclusivas para os jovens, nem para os idosos, nem para os cultos, nem para os incultos, nem para os pobres, nem para os ricos. E, como tal, assumir uma posição sobre uma lei comportará um risco de erro tanto maior quanto mais presente for a componente individual da análise. O pior que posso fazer para interpretar uma questão política é pensar apenas em que medida se aplica a mim a referida questão. Em todos os referidos casos, a lei servir-me-ia: eu tenho informação suficiente para fazer uma vida sexual sem risco de gravidez e, acaso a gravidez sucedesse seria por erro meu; tenho informação suficiente e uma vida profissional e familiar que me permitem consumir drogas recreativas sem que isso represente a minha alienação social e cultural, sem que isso implique a degradação da minha saúde e sem representar um risco para a saúde pública; tenho condições económicas para recorrer à prostituição apenas e só se essa for a minha livre e consciente vontade.

Contudo, vejamos agora como se aplica a lei no concreto, em cada realidade e situação concreta e facilmente todos aceitamos que afinal nem tudo é tão simples quanto parece e que analisar a realidade colectiva à luz da minha experiência pessoal, não é mais do que, afinal, egoísmo involuntário.

Se é válido dizer para o meu grupo de amigos que só engravida quem quer, já para uma adolescente da periferia, de uma família pobre, sem acompanhamento familiar, sem escola ou em situação de insucesso ou abandono escolar, sem acesso a serviços de saúde, a coisa muda ligeiramente de figura.

Se é válido dizer que tenho condições para fumar uma ganza sem pôr em causa a minha vida toda e sem que isso signifique qualquer alienação do mundo cultural, social e político em que vivo, já diferente é dizer que o acesso livre a drogas para os jovens das pequenas localidades desertificadas, onde não há nada com que ocupar os tempos, onde não há oferta cultural, nem trabalho, nem nada, lhes permite conscientemente definir os seus limites no consumo de drogas, independentemente de serem leves ou pesadas - aliás, o que são drogas leves e pesadas?

Da mesma maneira, parece-me perfeitamente adequado dizer que eu só me prostituo se quiser. Aliás, em boa verdade, nada na lei em vigor me proíbe de o fazer e de pagar impostos por esse trabalho. O que a lei proíbe é o proxenetismo e o tráfico de seres humanos. Mas adiante, poder-se-á dizer o mesmo de uma mulher toxicodependente, caída no desemprego e no desamparo social? Poder-se-á dizer que uma pessoa enredada numa teia de extorsão e agressão, de chantagem e violência, de droga e de fome, só se prostitui porque quer?

Igualmente se pode dizer com relativa certeza que uma mulher do meu grupo de amigos tem condições para ser gestante de um filho para ajudar um casal de amigos que não pode ter filhos. A questão é que a lei aprovada não diz lá que é para os meus amigos. É para toda a gente e abre, melhor escancara, a porta para o aluguer do corpo humano. E se, por um lado, é certo que as minhas amigas não precisam de dinheiro ao ponto de alugarem a barriga, já o mesmo não se poderá certamente dizer de quem passa fome. É verdade que a lei proíbe o pagamento de qualquer valor pelo aluguer da barriga, mas coloca-se a questão mais simples de todas: como se prova o não pagamento de algo? A lei aprovada por proposta do BE, apresentada como um grande avançao, pode bem ser um alívio para um grupo de pessoas, mas pode vir a ser um perigoso e degradante mecanismo para muitas outras mulheres que serão obrigadas a abdicar de todos os direitos sobre um filho antes mesmo de o conceberem.

Este erro de perspectiva coloca-se também ao contrário. E também nos prejudica, a nós comunistas, e fecha-nos. Se entendermos a visão e a perspectiva do outro como uma forma deliberada de egoísmo ou de idealismo, se entendermos que só a nossa visão das coisas está correcta, como que por magia, ou por iluminação reservada a uma seita. Se não compreendermos que entre as massas, o idealismo é dominante e que a abordagem individualista dos problemas sociais não resulta da vontade de cada, mas da própria cultura dominante, se não percepcionarmos que a indisponibilidade para compreender a nossa forma de abordar e interpretar os problemas não resulta de uma má-vontade, mas de uma concepção distinta do mundo, então estamos a desistir de alargar, estamos a capitular por nos recusarmos a compreender que as barreiras existem e que nos cabe a nós ultrapassá-las. Ou contamos que seja a doutrina dominante a fazê-lo?

Se somos nós, comunistas, revolucionários, que estamos em período de resistência e de acumulação de forças, está nas nossas mãos, apenas nas nossas mãos, romper o cerco com que a cultura dominante nos isola. E de cada vez que hostilizamos quem pensa que pensa pela sua própria cabeça só porque não pensa como nós, de cada vez que interpretamos a dificuldade de compreender a nossa mensagem como "ignorância", como "adormecimento" ou "alienação", estamos a fechar uma porta.

E nós, comunistas, revolucionários, queremos essas portas escancaradas de par em par.

Wednesday, January 06, 2016

Apontamentos políticos de 2016 - I


Podemos questionar-nos sobre qual a forma de construção dos orçamentos que financiam os mecanismos de concretização de direitos. Cada despesa do Estado corresponde, no essencial, ao conjunto de operações necessárias para a materialização de um serviço. Num Estado que tome a forma de estrutura política e repressiva ao serviço da burguesia, é natural que a maior parte dos serviços prestados pelo Estado o sejam a essa classe, tendencialmente concentrados na grande burguesia.

Ou seja, um Estado capitalista, ao serviço da classe dominante desse regime político, utiliza os meios legislativos, policiais, militares, culturais, educativos, jurídicos, para defender os privilégios, entretanto tornados direitos, da elite económica que corresponde igualmente – e no geral - à elite política. O Estado burguês capta, portanto, os impostos a todos os cidadãos, através dos meios de cobrança de que dispõe, com especial incidência sobre os rendimentos do trabalho e aliviando os rendimentos de capital. Isso significa que o Estado capitalista está ao serviço da grande burguesia com o dinheiro do proletariado. A burguesia usa os sistemas judicial, policial, educativo, fiscal, cultural, financeiro fornecidos pelo Estado e cujo financiamento é assegurado pelo remanescente valor do Trabalho após a apropriação da mais-valia. Ora, vejamos, a grande burguesia fica com a mais importante fatia do resultado do trabalho, a mais-valia e paga ao trabalhador apenas uma parte do valor da produção. Dessa parte com que o trabalhador fica, cerca de metade é pago em impostos a um Estado que colocará esse dinheiro ao serviço quase exclusivo da grande burguesia. Em Portugal, fruto da evolução política que resultou da crevolução e contra-revolução, tal como em muitos outros países, o Estado, apesar de estar tendencialmente orientado para satisfazer apenas os caprichos da burguesia, tem ainda um pendor social formal e material que não se pode ignorar.

Ou seja, se é correcto dizer-se que o Estado português está cada vez mais ao serviço da burguesia – com o financiamento a entidades privadas no ensino por exemplo – não é factualmente nem politicamente correcto dizer-se que é indiferente ou inútil o financiamento ao ensino público. A dialéctica, também em matéria de papel do Estado, exige-nos que nada seja analisado do ponto de vista estático, mas como uma dinâmica, como um processo que é feito de tensões constantes, de uma luta de classes que está longe de cessar. Aliás, entender o Estado como um aparelho cristalizado integralmente ao serviço de uma só classe é entender que ele é imune à realidade concreta em que existe. Tal como a luta de classes reflecte o impacto que o Estado tem sobre as classes em luta, também o Estado reflecte as tensões de classe que existem nas relações sociais, porque também o Estado, mesmo o ditatorial, é resultado de relações sociais e delas não se pode dissociar integralmente.

O facto de, a cada momento histórico, o Estado ser simultaneamente um instrumento de repressão sobre as classes dominadas e um prestador de serviços às dominantes, não significa que as dinâmicas da hegemonia não se repercutam no Estado. Pelo contrário, a hegemonia reflecte-se na orgânica e no papel do Estado. Mesmo um Estado que persista além da hegemonia – e portanto uma ditadura imposta à maioria – é permeável às tensões de classe e é forçado a permitir, aqui e ali, concessões para manter a ordem da classe dominante antes da ruptura. A ditadura da burguesia não é, para já, em Portugal, imposta pela força à maioria dos portugueses precisamente porque lhe tem favoráveis os ventos da hegemonia. Contudo, apesar de ser um país capitalista e onde a grande burguesia exerce cada vez mais o seu domínio, Portugal dispõe de um Estado que carreia para os dias de hoje, toda a história da luta de um povo, todo o lastro de Abril – não inteiramente neutralizado por Novembro.

Esta é uma organização de Estado, todavia, que se afasta a passos largos e acelerados de poder dar resposta aos problemas das pessoas e dos trabalhadores, pelo simples facto de que se coloca cada vez mais ao serviço dos grandes grupos económicos.

A democratização do Estado burguês parece uma contradição nos termos. E no longo prazo é, porque a sua democratização plena implica a sua transformação num Estado proletário, ou seja, a revolução socialista.

E tudo isto senti necessário para abordar o financiamento que o Estado deve assegurar aos serviços que presta. Ou seja, devemos assumir que o orçamento para assegurar os direitos das populações é definido em função da contingência ou que, pelo contrário, os impostos exigidos às actividades económicas e às pessoas devem ser definidos em função das necessidades do Estado. Uma perspectiva estática diria que qualquer gasto assumido pelo Estado estaria a favorecer única e exclusivamente a grande burguesia, mas uma avaliação da realidade concreta será obrigada a concluir que, apesar do definhamento, importantes parcelas do orçamento do Estado são destinadas a garantir serviços a camadas da população que integram as classes trabalhadoras. Pode mesmo dizer-se que a maior parte dos gastos públicos é destinada a suprir necessidades das camadas exploradas e que, por isso mesmo, a despesa pública tem sido alvo de uma infame campanha destinada a reorientá-la quase estritamente para o serviço da dívida e para o funcionamento de uma máquina estatal ao serviço estrito da classe dominante.



Portanto, pode a luta pelo socialismo ignorar a luta pela democratização do Estado burguês?

Thursday, April 09, 2015

"O trabalho da lagarta é resistir à mariposa", ou um conto de rebelião.


“Uma lagarta segue o seu caminho através do seu ecossistema, deixando um rasto de destruição comendo tanto quanto algumas centenas de vezes o seu próprio peso num só dia, até que fica demasiado cheia para continuar e acaba por se pendurar, com a sua pele a endurecer até tomar a forma de crisálida.

Dentro da crisálida, bem no interior do corpo da lagarta, pequenas coisas, a que os biólogos chamam “discos imaginais” começam a formar-se. Não reconhecendo os recém-chegados, o sistema imunitário da lagarta mata cada disco imaginal assim que se forma. Mas esses discos continuam a surgir com uma rapidez crescente e procuram ligar-se uns aos outros.

Eventualmente, o sistema imunitário da lagarta falha sob stress e os discos tornam-se células imaginais que acabam por se constituir alimentando-se da lagarta que se desfaz.

Demorou muito tempo para que os biólogos compreendessem a razão pela qual o sistema imunitário das lagartas atacava as incipientes células de mariposa, mas vieram a descobrir que a mariposa tem o seu próprio genoma, que é transportado pela lagarta, herdado de geração em geração ao longo do processo evolutivo, mas não é parte da própria (Margulis & Sagan, Acquiring Genomes 2002).

Se nos virmos como discos imaginais trabalhando para construir a mariposa que é um mundo melhor, compreenderemos que estamos a lançar um novo “genoma” de valores e práticas para substituir o presente sistema insustentável. Mas também veremos o quão importante é que nos liguemos uns aos outros para sabermos ao certo quantos tipos de células imaginais serão necessárias para construir uma mariposa com todas as suas capacidades e cores.”


Elisabet Sahtouris, Ph. D. Bióloga Evolucionista

Tradução minha.

Nota: Engels escrevia coisas muito semelhantes em "A dialéctica da Natureza", sabendo ainda praticamente nada do que hoje se chama genética, para ilustrar a lei da dupla negação.

Wednesday, November 12, 2014

A crise, a "crise", e a "crise de classes" e a luta de massas.



Machete diz que “a crise pode justificar certas restrições aos direitos fundamentais” e assume com uma certa franqueza a sua concepção de “crise” e de “direitos fundamentais”. Na verdade, desde sempre os comunistas disseram que o desenvolvimento económico é a base da concretização dos direitos das populações, particularmente dos trabalhadores. A ausência de crescimento económico, o subdesenvolvimento, o atraso ou retrocesso no desenvolvimento dos meios de produção sacrifica em primeiro lugar os direitos dos trabalhadores. Isso sucede, não apenas no contexto de predominância de relações sociais capitalistas, mas mesmo num percurso de construção do socialismo. No primeiro caso, porque a “crise” mais não é do que um resultado da sobreprodução capitalista, o que significa que a apropriação capitalista é assegurada enquanto que a “crise” se abate sobre o conjunto dos trabalhadores como a perda de rendimentos e sobre os serviços públicos, condição que são para a satisfação de direitos. No segundo caso, porque a economia é o substrato que alimenta todas as actividades humanas.

As componentes da democracia, tal como vista por nós, são interdepentes e interpenetram-se. A democracia económica, a social, a política e a cultural são as quatro dimensões da democracia que consubstanciam uma política democrática e não podem existir umas sem outras. Contudo, como materialistas, é a base material que determina os fenómenos e os processos e, não é diferente neste caso. A base, a economia, é o pilar sobre o qual se constrói a sociedade, a cultura e a política. Como tal, a democracia económica é o pilar sobre as restantes componentes da democracia se consolidam, sem prejuízo de uma relação plenamente dialéctica entre elas, na medida em que não é possível atingir uma democratização plena da economia – socialização dos meios de produção, socialização da produção e dos ganhos, gestão democrática e subordinação da produção às necessidades da população – sem que simultaneamente se construam e aprofundem as restantes vertentes da democracia.

O que Machete afirma não é nada mais, nada menos do que isto, do ponto de vista da classe dominante. Ou seja, num contexto em que a classe dominante, a grande burguesia, geriu os meios de produção em função única e exclusivamente da apropriação crescente da riqueza produzida pelo Trabalho alheio e pela exploração dos recursos naturais e gerou um cenário de crise de sobreprodução, a especulação e a apropriação das parcelas de riqueza sob gestão pública são o alvo preferencial do capital monopolista, sem prejuízo do assalto ao valor do trabalho e da intensificação da exploração e das alterações necessárias na divisão internacional do Trabalho. Assim sendo, do ponto de vista da classe dominante, num contexto em que os grupos económicos precisam de acumular também através do assalto aos orçamentos dos Estados e às dívidas soberanas, os recursos escasseiam para assegurar o conjunto de direitos das populações – todos eles dependentes do desenvolvimento económico. Claro que para Machete, nem o conceito de “crise” corresponde necessariamente ao conceito de crise de sobreprodução capitalista, mas a uma espécie de castigo sobre os trabalhadores por terem almejado ter mais do que os patrões lhes quiseram dar; nem o conceito de “direitos fundamentais a restringir” abarca os privilégios dos grupos económicos de continuarem a explorar, a especular, a despedir, a descapitalizar, no fundamental, a roubar. Não passará, certamente, pela cabeça de Machete questionar o “direito fundamental” à propriedade privada dos meios de produção e da banca; ou o “direito fundamental” a manipular a comunicação social: ou o “direito fundamental” a despedir trabalhadores, descapitalizar ou desmantelar empresas em função do lucro dos accionistas; muito menos passará pela cabeça de Machete restringir o “direito fundamental” a extrair mais-valia do trabalho e a distribui-la sob a forma de dividendos aos accionistas dos grupos monopolistas.

A perspectiva de classe nas palavras de Machete é límpida e é deste tipo de vanguarda reaccionaria que mais rapidamente se extrai a verdadeira vontade dos políticos ao serviço da classe dominante, porque o revanchismo anti-Abril e a moral burguesa lhe corre não só nas veias, como lhe sai incontinente pelos poros. Machete fala verdade.

O desenvolvimento económico será a primeira prioridade para assegurar a democracia e os direitos dos jovens, dos trabalhadores e trabalhadoras, dos idosos e reformados, na medida em que só produzindo pode o país gerar a riqueza necessária para o libertar do esmagamento e da dependência do exterior. Ao mesmo tempo, só o desenvolvimento económico pode criar as condições para que os trabalhadores se libertem da dependência dos grupos monopolistas nacionais e transnacionais. No sistema capitalista isso não é menos verdade, na medida em que apenas a produção pode gerar a riqueza para alimentar os serviços públicos, os salários e pensões. No entanto, o sistema capitalista não está cristalizado no tempo e desenvolve-se e atinge um limiar crítico entre a possibilidade de acumulação e a possibilidade de afectação de riqueza a direitos e sua concretização. Esse limiar crítico é histórico e material e, em última análise incompatibiliza por completo o funcionamento do sistema capitalista em simultâneo com qualquer laivo de democracia económica, social, cultural ou até mesmo política.

O que Machete diz é verdade: na sua óptica, como na nossa, há comportamentos que podem e devem ser restringidos em contexto de subdesenvolvimento económico. Resta, pois, saber se acatamos que sejam os autores e responsáveis da crise de sobreprodução capitalista (os grandes grupos económicos e os seus políticos de serviço) a manter os privilégios que estiveram na origem da própria crise ou se é altura de resgatarmos os nossos direitos. O capitalismo é, em si mesmo, mais uma fase de “crise de classes” que também se manifesta na acumulação da riqueza nas mãos de uma classe à custa do empobrecimento das restantes. Ante a crise, ou abdicamos da democracia ou liquidamos o poder dos monopólios e os privilégios da burguesa. Onde Machete quer restringir “direitos fundamentais”, respondamos com a necessidade de os afirmar como nunca. Sob pena de o fascismo se abater sobre os povos, atrasando o necessário salto para o fim da “crise”, o da revolução socialista. Por isso é que lutar por cada um, em cada esquina, fábrica, escola ou hospital, desses “direitos fundamentais”, trazendo as massas à sua defesa, a luta pela manutenção e até pelo aprofundamento desses direitos é a luta pelo socialismo.



Por isso é que a luta por uma democracia política não pode ser feita sem a luta por uma democracia económica, social e cultural. E por isso é que a luta pela democracia, em última análise até mesmo pela democracia política, é a luta pela superação do capitalismo. Por isso é que é participação das massas na defesa de cada direito que trará a todos a percepção clara de que tais direitos e a sua concretização plena são incompatíveis com o capitalismo e as suas democracias decadentes e que só a revolução socialista poderá criar o espaço para uma verdadeira Democracia. A luta pelos direitos concretos, pelas aspirações e das pessoas, pelos direitos da juventude, dos trabalhadores e dos reformados e pensionistas não é um caminho para a democracia por opção. É mesmo porque um mundo de solidariedade e cooperação, um novo modo de produção social e gerido colectivamente só pode ser empreendido com solidariedade e cooperação, com participação social e direcção e acção colectivas. Isso é luta. E é de massas.

Thursday, November 06, 2014

Cultura, Mercado, Estado e Socialismo

A cultura não é algo que se possa suprimir, independentemente das vontades e volatilidades do mercado, das políticas do Estado ou da inexistência do próprio. Com ou sem mercado, com ou sem Estado, a cultura continuará a ser um inexorável resultado da existência das sociedades. Se a cultura é conjunto de práticas, símbolos e expressões, códigos estéticos, éticos, morais, necessariamente sociais, então ela existe na medida em que o ser humano é humano e cria códigos, símbolos e práticas sociais. Contudo, a divisão das sociedades em classes atravessa esse conceito de cultura, afecta-o, influencia a quantitativa e qualitativamente cada uma das expressões culturais, bem como a sua utilização.

Compreender as políticas de cultura das sociedades capitalistas, compreender o papel da cultura nessas sociedades pode ser útil para compreender como a classe dominante consolida o poder, a hegemonia e, no cumprimento estrito das leis do materialismo histórico, ganha as massas para o aprofundamento do capitalismo. Ao mesmo tempo, compreender como o Estado é um instrumento de classe e define e exerce políticas que determinam o papel da cultura na sociedade sob o seu poder, na medida em que o Estado corresponde, ainda que em graus diferenciados, à estrutura de poder da classe dominante, pode contribuir para identificar as políticas que, em nome do Estado, submete a cultura aos desígnios exclusivos da classe dominante, seja por via do mercado capitalista, seja por via da programação cultural de Estado. O papel que a cultura, a arte e as expressões, ocupariam no contexto de uma democracia plena - o socialismo - constitui igualmente matéria sobre a qual a reflexão pode ser feita, na medida em que no contexto do domínio do proletariado sobre a burguesia, também se altera a cultura dominante, até que não existam mais classes, nem dominantes nem dominadas e a cultura seja plenamente livre e incapaz de gerar instrumento de poder, ante a extinção do Estado e o comunismo.

Esse caminho é longo e o horizonte é, eventualmente distante. Mas olhar o futuro, estabelecer o objectivo final e o projecto é um passo fundamental para traçar o objectivo imediato e o programa político. Este não é, todavia, um texto programático, mas uma tentativa de sistematização descritiva do que são as políticas culturais em capitalismo, a sua contradição com o projecto constitucional português - por ser, ainda, um projecto de construção do socialismo -, bem como uma reflexão sobre o que podem ser as políticas culturais num contexto de alteração da configuração do poder político, num contexto dinâmico de alteração da configuração do poder económico (passagem do poder económico das mãos da burguesia para as mãos do proletariado, acelerando a decadência e desaparecimento da burguesia).

1. A ideia transforma-se em força material quando apropriada pelas massas, esta afirmação do materialismo histórico aplica-se igualmente em qualquer contexto, independentemente da classe dominante. Qualquer regime económico e político não carece de uso da força e da repressão massiva enquanto tiver as massas convertendo em força material a ideologia. Veja-se o caso do capitalismo, quase completamente embebido na ideia de cada um dos cidadãos, com excepção da vanguarda política, o que faz desse modo de produção uma força tão eficaz e pujante. No dia em que a hegemonia social, cultural, económica, política e ideológica do capitalismo definhar ao ponto de as massas não se apropriarem dela com empenho, só o fascismo - ditadura violenta do capital monopolista - pode tentar atrasar, pela força, perseguição e extermínio, a revolução socialista.

2. A subordinação da cultura à dinâmica do mercado, sujeitando a fruição e criação culturais e artísticas ao critério do lucro não é ausência de política cultural, é a própria política cultural. No contexto de um Estado tomado pela burguesia como classe dominante, a utilização da cultura cumpre dois propósitos centrais: ganhar as massas para o projecto capitalista, destacar o papel dominante da burguesia e das elites económicas periféricas. A cultura nunca é neutra, mas pode neutralizar forças ou direccioná-las num certo sentido. A política de um Governo ao serviço da burguesia será, como consequência dos objectivos que prossegue o da programação cultural na medida do necessário e o da supressão da criação e fruição difusa e democrática como forma de facilitar o domínio de uma cultura que entorpece as massas trabalhadoras.

3. O processo de alteração da hegemonia e da cultura dominante está dependente do processo de revolução social e vice-versa. A dialéctica permite-nos compreender como dois processos são interdependentes sem que um preceda necessariamente outro. A dinâmica entre a ideia, as massas, o projecto e o trabalho revolucionário altera-se a cada dia, com fluxos e refluxos, avanços e recuos, mas a luta pelo socialismo passará sempre pelo aprofundamento das conquistas dos trabalhadores e pela conquista de novos direitos na democracia, mesmo que essa democracia sofra das limitações e constrangimentos matriciais da democracia burguesa. Por isso mesmo, a forma como o Estado exerce o poder na política cultural é, ainda que não determinante, importante para a alteração da hegemonia. Não sendo a base do desenvolvimento das forças produtivas, nem sendo o substrato fundamental da luta de classes - que é a economia - a cultura é, ainda assim, um elemento catalisador ou retardador da tomada de consciência revolucionária. É na luta pelos direitos que a elasticidade da democracia burguesia mostrará os seus limites históricos, tais como os do capitalismo, e nessa luta inclui-se a luta pelos direitos culturais.

4. Para simplificar, e porque os termos e conceitos "erudita" e "popular" acarretam uma dimensão qualitativa, e impõem uma dicotomia que não se pretende agora aprofundar, utilizarei dois conceitos para tentar definir diferenças entre políticas de consolidação do poder da burguesia e políticas de superação do poder da burguesia. "Evento pontual ou concentrado" e "evento difuso" para me referir a duas dimensões da política cultural. O evento pontual ou concentrado é o que resulta da política que privilegia a programação cultural - de Estado ou de mercado, e o evento difuso é o que resulta da criação e fruição cultural e artística pelas massas, sendo o primeiro limitado no tempo e o segundo um processo permanente. A cultura de programação é a cultura de organização de eventos, com ou sem objectivo de obtenção de lucro, mas sempre para adornar elites ou gerar entretenimento. A cultura de programação, cultura pontual é a das televisões, jornais, festivais de verão, concertos dos supermercados, e caracteriza-se também por ser uma prestação de um serviço por uma minoria criadora a uma maioria fruidora. A cultura difusa, para usar os termos de simplificação que escolhi - e que podem não ser os melhores -, pelo contrário, caracteriza-se por não estar sujeita à dinâmica da venda do serviço e da aquisição de adorno, representando o conjunto dos eventos e práticas que fazem de cada cidadão um criador e um fruidor, na medida em que a cultura passa a ser não apenas um serviço, mas uma prática social plena e democrática.
A utilização do Estado pela burguesia impõe uma política de "eventos concentrados" de cultura que permite, não só a mercantilização e elitização de algumas expressões culturais, como a massificação de um consumo de expressões entorpecedoras, neutralizantes ou mesmo cativantes das massas para que o capitalismo continue a ser a força material que é.

5. A cultura ao serviço da superação da exploração do trabalho pelo capital deixa de ser algo que simplesmente nos rodeia, para ser um elemento de emancipação e inspiração colectiva e, como tal, uma política revolucionária privilegia a cultura difusa, privilegia não o mercado cultural, mas o direito à criação e fruição. Ao invés de assegurar a programação, apesar de poder programar pontualmente, um Estado ao serviço do proletariado dinamiza uma política cultural de criação, não de públicos, mas de artistas que criam e que, também por isso, são público. Independentemente do grau de profissionalização de cada criador, é a difusão do direito que produzirá a quantidade e a qualidade artística capaz de romper o cerco à criatividade que o capitalismo nos impõe. A arte e a cultura terá sempre os profissionais dedicados, mas o contributo que esses profissionais, bailarinos, músicos, cantores, actores, escritores, poetas, pintores, escultores, podem entregar à evolução da Humanidade será tanto maior, quanto mais seres humanos inspirarem, quanto mais criatividade gerarem, quanto mais sentimentos partilharem.

6. A opção por uma cultura concentrada determina que a classe dominante define a quantidade e a qualidade de cada expressão cultural que está disponível, para si e para as massas. A opção por uma cultura difusa retira à classe dominante a capacidade de determinar a forma, o número e o conteúdo das expressões e eventos e entrega-o directamente nas mãos das massas. A programação pelo Estado e pelo Mercado passam a preencher um papel residual na política cultural, enquanto que a criação e a fruição passam a definir a essência da política.