Tuesday, October 09, 2018

Notas sobre a táctica.

Sem perder de vista o objectivo supremo dos comunistas, perante a capacidade de adaptação do capitalismo e a sua tendência para recorrer à agressividade e à violência, através da constituição de estados e regimes fascistas sempre que se sente ameaçado pela simples possibilidade de perder o controlo da distribuição da riqueza produzida, a Internacional Comunista decidiu adoptar uma táctica frentista.

A unidade de todas as forças anti-fascistas, particularmente após 1933 e a ascenção de hitler, constituindo as frentes populares, por orientação da Internacional Comunista, com o grande contributo de Dimitrov e Stalin, delineou a orientação correcta para as vanguardas operárias de todo o mundo que se encontravam no limiar dos fascismos que assolavam e se assumiam como a face do capitalismo pronta a devastar o mundo. Perante a incapacidade de o movimento operário desferir o golpe fatal sobre o capitalismo em vários países e o reforço do apoio popular a versões demagógicas do capitalismo autoritário e ditatorial, os comunistas não hesitaram entre um capitalismo com potenciais expressões de democracia e a liquidação física dos seus camaradas.

Entre a liquidação dos progressistas e a manutenção de um regime em que os progressistas podiam usar a palavra e a participação institucional, com benefício para todas as camadas trabalhadoras, a hesitação seria mortal. Tal balanço provocou uma alteração sensível na orientação dos partidos comunistas na cena política das nações e também no plano internacional: de proclamantes a lutadores concretos pela liberdade, nas condições concretas de cada país. A unidade antifascista era mais do que justa, era uma absoluta necessidade. Ou seja, a táctica frentista é uma obrigatoriedade perante a ameaça fascista, na medida em que o extermínio dos comunistas em momento algum pode resultar a favor dos que lutam pela emancipação do proletariado. Perante a real ameaça fascista, o acantonamento pode resultar na total incapacitação da classe operária, pode resultar na liquidação da sua vanguarda e, como tal, da sua capacidade de organização, reorganização e disputa do poder ou, mesmo, na liquidação da sua capacidade de resistência.

A táctica da Internacional Comunista definida após 1933 não foi um erro, senão a adequação da táctica às condições reais e imprevistas da ascenção de uma versão de regime capitalista violento, de uma ditadura política, económica, social e cultural, dos monopólios, mantida com o recurso à força, à violência e ao extermínio, como a história, de formas diversas, nos veio a demonstrar.

O enquadramento histórico dessa táctica, contudo, veio a diluir-se. A táctica frentista de alianças com a social-democracia e outras camadas que em determinado momento se revelaram anti-monopolistas ou antifascistas foi delineada para travar o fascismo perante a real possibilidade do seu desenvolvimento e implantação, principalmente quando essa possibilidade se reveste de apoio popular entre as camadas trabalhadoras e populares. O prolongamento dessa táctica para além dos contextos em que o fascismo não se constitui como verdadeira e concreta ameaça pode resultar, na prática, na rendição do proletariado à doutrina da social-democracia e suas diversas e criativas versões. Versões que pelo mundo afora dão por nomes vários: desde "socialistas" a "social-democratas" e "trabalhistas". Versões que admitem não colocar em causa o modo de produção dominante e a organização política que o serve. Ou seja, versões do capitalismo que não visam mais do que angariar, a cada momento, a maior base de apoio social possível para o modo de produção dominante.

Tal é evidente na observação que a resolução política do XIX congresso do PCP estabelece sobre o PS:

"Partido da política de direita, mascarado com um discurso de «esquerda» para iludir os muitos milhares de eleitores socialistas que aspiram sinceramente a uma ruptura com a política de direita, o PS encontra, no quadro mediático orientado para perpetuar a política ao serviço do grande capital, o espaço para, sem deixar de colaborar e fazer avançar medidas antipopulares, se apresentar como «alternativa» ao actual governo. O que, a verificar-se, não só não corresponderia à necessária viragem de fundo nas políticas e orientações governativas como abriria uma nova fase na promoção e prosseguimento dos objectivos inscritos no Pacto de Agressão." (destaque meu)

O que o PCP aqui afirma é precisamente esse risco: o da potencial capacidade de forças políticas comprometidas com a estratégia do capital ganharem maior apoio social para a concretização dessa estratégia perante a possibilidade de perda de apoio social de forças assumidamente mais reaccionárias e assumidamente colocadas ao serviços dos grandes grupos económicos. Verificamos que o PCP alerta para a possibilidade de forças travestidas de "esquerda" angariarem apoios populares que permitam ao grande capital aplicar um programa com menos contestação social.

Esta tese, constante da resolução política do XIX Congresso, demonstra o alerta do PCP para os engodos da social-democracia e para o seu verdadeiro objectivo: o de aplicar o mesmo programa que a direita mais assumida, mas com mais apoio social.

A táctica frentista, todavia, acabou por se perpetuar e por se tornar presente e determinante em muitos locais onde os comunistas e seus partidos não lograram assumir a vanguarda e a hegemonia do movimento popular e do movimento operário. O derrubamento do socialismo no antigo sistema socialista mundial veio agravar o sentimento de isolamento de vários partidos comunistas e a alteração política e ideológica provocada por esse derrubamento à escala mundial veio encostar vários partidos a uma posição de "pré-rendição". Isso é patente em vários partidos ditos comunistas por todo o globo, com a sua adopção exclusiva ou dominante de códigos de luta em função de problemas justos mas circunstanciais dentro do capitalismo. As lutas sectoriais passaram a dominar a agenda de vários partidos que até então lutavam pela libertação do proletariado e pela constituição dessa classe como classe dominante.

A ideologia capitalista estendeu-se a algumas forças revolucionárias e a luta desceu a bitola. Da libertação do proletariado, muitos partidos e movimentos abandonaram ou secundarizaram a luta pelo poder a troco da luta pela melhoria das condições sectoriais. Problemas reais, resultantes objectivamente do capitalismo e do domínio da burguesia sobre o proletariado passam a ser encaradas como prioridade desgarrada da prioridade máxima: a da libertação do proletariado.
A luta dos homossexuais, transexuais, a luta das vítimas do racismos, a luta pelo ambiente saudável, a luta das mulheres, entre outras; todas elas absolutamente necessárias e orbitais em relação à luta do proletariado, ganham autonomia e canibalizam as forças das vanguardas proletárias. Em vez de serem rios que afluem para a grande batalha pelo poder proletário, tornam-se braços autónomos de um delta que não tem onde desaguar e acaba pulverizando forças e perdendo apoio popular por sectorializar a luta e se afastar das grandes preocupações transversais a todas as lutas sectoriais. Ao concentrar os seus esforços nessas lutas, as vanguardas comunistas acabam por secundarizar a mãe de todas as lutas e a luta da qual dependem todas essas: a luta pelo poder popular e proletário.

Implicitamente, forças progressistas de todo o mundo, acabam reconhecendo que o capitalismo pode não ser superado, mas ajustado a essas necessidades sectoriais, assim reforçando a visão social-democrata: a de que as reformas justas e progressistas do capitalismo são compatíveis com o poder hegemónico dos grandes grupos económicos. Essa ilusão revela-se fatal onde quer que grasse.

O estudo e a aprendizagem com os mestres do movimento operário e comunista demonstram com exemplos vários a impossibilidade cabal de conciliar capitalismo com emancipação do proletariado. A confluência com as forças sociais-democratas esgota-se portanto na necessidade imperiosa de derrotar os sectores do capitalismo que estão disponíveis para a constituição do estado fascista. Toda e qualquer colaboração com a social-democracia, num contexto não hegemónico da frente operária na luta, que vá além dessa necessidade, que se entretenha com supostos "estados intermédios" e com avanços supostamente progressistas está condenada a tornar-se numa rendição, num colaboracionismo com uma parte da burguesia que não aspira à real transformação do modo de produção dominante e à configuração política que lhe dá cobertura.

A entrega das armas dos comunistas à burguesia, ainda que a uma parte dela menos agressiva, conduz à constituição de um poder ao serviços dos interesses dessa burguesia, preferencialmente aliada da grande burguesia nacional e transnacional. A rendição ou o apoio da vanguarda partidária do proletariado perante a burguesia, excepto no caso extremo do combate à ascensão nazi e fascista, conduz à constituição política da ilusão que os comunistas visam desde sempre combater. A constituição de um suposto estado de todos, interclassista, não pode ser mais do que a ditadura da burguesia com mais ou menos cedências perante o operariado para obter o necessário apoio de massas. Tal estado de coisas corresponde no essencial ao lodaçal da estagnação económica, da degradação das condições básicas das condições de vida do proletariado a médio e a longo prazo, porque sempre que necessário escolher entre mais acumulação ou mais distribuição, a burguesia não hesita em favor do primeiro.

A condução de um povo para o lodaçal, gorando as suas legítimas expectativas tem um custo incomportável para os trabalhadores, para as minorias e, principalmente, para os que decidiram lutar pelas suas causas. A entrega do poder aos sectores mais demagógicos e reaccionários da direita. O extermínio. O Brasil.

Hoje, no Brasil, a unidade antifascista é uma evidência e uma urgência. Resta avaliar se o que se verificou antes era igualmente urgente e necessário.

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