Wednesday, September 09, 2009

da inteligência colectiva (i)

Quase no seguimento do último texto aqui deixado, surgem questões que se ramificam por um sem-fim de áreas, sociais, filosóficas, políticas, culturais, como não poderia deixar de ser quando abordamos o comportamento humano, esse mapa oculto para o sucesso da vida em comunidade.

Não raras vezes se ouve, da boca de sábios encartados, doutores e fazedores de opinião, muitos políticos ou activistas, bem como de muitos comuns influenciados pela hegemonia cultural que "o povo é burro" e que "tem de abrir os olhos". Esta concepção, típica dos que se julgam iluminados por alguma espécie de clarividência divina não é mais do que uma demonstração de uma de duas coisas: ou de ignorância ou de premeditada intenção para manipular o receptor da mensagem.

Se inteligência é a capacidade de um ser vivo se adaptar a situações e condições novas, ultrapassando obstáculos e enigmas desconhecidos, ela não deixa de ser também reflectida na capacidade de utilizar as ferramentas e o somatório das experiências e estímulos como instrumentos para a resolução de um determinado problema. Por isso mesmo, o ser humano - posicionado como o mais inteligente dos animais terrestres - é capaz de resolver situações novas, tanto melhor quantas mais experiências tiver realizado ao longo da vida. Cada experiência é, ao fim e ao cabo, o resultado da interpretação de um conjunto de estímulos e respostas que estruturam pensamentos no indivíduo e, consequentemente, no colectivo que ele compõe.

Ora, se os homens (e peço desculpa por utilizar o termo para determinar a Humanidade, mas é o correcto do ponto de vista biológico) são seres que interpretam os estímulos com capacidade de com base neles construir respostas e arquétipos de raciocínio, e se a sua inteligência é também determinada em grande parte pela capacidade que têm de transpôr essa interpretação para a resolução de problemas, natural será que, quanto mais intensas forem as manifestações de inteligência humana, maior será a resposta aos estímulos envolventes, ou seja: aos estímulos ambientais.

Que estímulos ambientais serão esses nos dias de hoje?

i. certamente os estímulos naturais, que se acumulam no património de experiência colectiva do homem, que reflectem os instintos mais primários e determinam os nossos comportamentos elementares.

ii. os estímulos sociais, que resultam do ambiente social e familiar em que nos encontramos e que podem estimular sentimentos e comportamentos sociais, quer nas relações próximas, quer nas relações com o conjunto da sociedade.

iii. os estímulos culturais, que resultam da hegemonia cultural de classe de cada momento histórico, em função das relações de classe que se verifiquem e onde se incluem os impactos da educação de massas, da comunicação de massas e da doutrina cultural dominante.

iii. os estímulos económicos que, não sendo mais do que o resultado dos anteriores, são determinantes tendo em conta as relações materiais de que Homem carece para a sobrevivência.

Neste quadro, de uma Humanidade "burra", esperar-se-ia que não interprestasse esses estímulos de forma compreensível. Ora o que se passa e precisamente ocontrário: os seres humanos interpretam a realidade precisamente com os instrumentos de que dispõem e em função deles agem na sociedade e no meio. A lucidez política de um colectivo ou de um indivíduo não se mede, portanto, na proporção da sua inteligência mas sim, e especialmente, na quantidade, qualidade e variedade dos instrumentos disponíveis.

Como ser inteligente, funciona em relação directa com os estímulos que recebe e, nesse sentido, toda a humanidade vai efectivamente demonstrando que é possuidora de um potencial de inteligência absolutamente fascinante. Por isso mesmo, a questão não está em aumentar a inteligência dos homens e das mulheres que, segundo os iluminados,andam "adormecidos" mas sim em determinar a alteração significativa da hegemonia, ou seja, alterando o conjunto de estímulos a que está sujeita a Humanidade, introduzindo diferentes qualidades, maiores quantidades e mais variedade de estímulos que permitam ao sujeito, ao indivíduo e ao colectivo, alcançar maior espectro de soluções possíveis para os problemas com que se depara.

No entanto, a inteligência não determina o carácter, nem vice-versa. Daí que a disponibilidade de informação e de instrumentos racionais não determine directamente o posicionamento político de cada ser humano. O que o faz é essencialmente a sua posição de classe no sistema produtivo e a sua relação com os produtos materiais. Daí que a alteração da hegemonia cultural a que o proletariado está sujeito pode ser um factor determinante para a sua capacidade de resposta aos problemas que se lhe colocam. O proletariado, sendo a soma mais significativa de seres humanos, representa pois o maior reservatório de inteligência individual e colectiva no interior da Humanidade e também aquela que detém a força potencial para a criação das condições para a construção de um mundo novo. A instrução do proletariado, mais do que de qualquer outra classe é então uma tarefa da maior importância para os revolucionários de todas as épocas do capitalismo.

Para os cérebros burgueses, centros nevrálgicos do egoísmo e do egocentrismo - sejam eles ditos de esquerda ou de direita - o proletariado e povo, genericamente considerado, é "burro" porque não percebe como eles percebem a realidade. Na verdade, o proletariado e o povo manifestam inteligência humana a cada dia que reagem aos estímulos a que estão sujeitos. Se a doutrina dominante apresenta apenas como solução para a actual situação política, económica e social, o aprofundamento do capitalismo e da exploração, se na escola aprendemos que o socialismo e o comunismo são iguais, senão piores, ao nazi-fascismo, se na televisão, nos jornais, nas rádios, nos jogos de vídeo tudo nos estimula num detreminado sentido, então o que revelaria uma falta de inteligência estranha seria as populações terem um comportamento desenquadrado dos estímulos que recebem.

Wednesday, July 22, 2009

Liberdade

“Estou condenado a ser livre” escrevia Sartre como a síntese de um paradigma existencialista transversal. Esta concentração da racionalidade sobre o homem, vem recentrar o debate filosófico sobre a Humanidade. Aliás, Jean-Paul Sartre afirmou mesmo que “o humanismo é o existencialismo”.

Independentemente do impacto inegável que o contributo desse pensador nos trouxe, particularmente tendo em conta o momento histórico em que o fez, é importante relativizar a absolutização da liberdade que acaba por, de alguma forma, estar latente no pensamento sartriano.

Se o pensamento lógico, o raciocínio do ser humano, é baseado em premissas que partem de conceitos e, de acordo com o existencialismo ateu de Sartre, é essa propriedade humana que lhe confere a liberdade, então não poderemos absolutizar os graus de liberdade a que Sartre alude na sua obra e legado filosófico. Também é certo que Sartre bem distingue entre o acto e o não-acto, assim eliminando confusão entre a liberdade e a não-liberdade, relacionando essa distinção com a presença ou ausência de consciência da acção, ou com a presença ou ausência de vontade da acção.
E também não existe na obra de Sartre uma eliminação das assimetrias de classe e sua repercussão nas estruturas racionais do Ser Humano. Porém, também não lhe é dada a dimensão que julgo ser justo atribuir a essas anisotropias sociais. Pois que o conceito de liberdade, se absolutizado, esbarra na evidência de uma realidade que diariamente o nega.

Pois que se a liberdade é o resultado da soma das operações racionais e se traduz na possibilidade inalienável de escolha do Ser Humano, então a quantidade de variáveis disponíveis condiciona o grau de liberdade. Essa análise não é hoje suficientemente consolidada pelos acólitos burgueses do existencialismo pós-Sartre. A absolutização do conceito de liberdade, a sua dramatização como forma de constatação de eloquência intelectual, reflecte-se afinal na supressão das diferenças inerentes ao facto de existirem diferentes graus de cultura, de consciência e de acesso à informação. Em sentido figurado, se o raciocínio humano fosse um puzzle, ele só pode ser construído se o sujeito tiver à sua disposição todas as peças. Nessa analogia, as peças serão precisamente a informação, a cultura, o conhecimento, a experiência. A partir do momento em que existe uma condicionante à disponibilidade de cada uma das peças, então também o resultado final do puzzle está condicionado.

Obviamente que o pensamento humano não pode ser simplificado ao ponto de uma equação ou de um algoritmo simples. No entanto, com a necessária consideração das óbvias diferenças no grau de complexidade, podemos comparar o condicionamento do pensamento humano como a condição dos resultado s de uma equação. Claro que a caracterização de uma função matemática está condicionada pelo universo a que pertencem as variáveis. Da mesma forma, o resultado de um equação pode ser determinado em função do universo de trabalho. Por exemplo, se x^2=2, x E R é uma equação de resultado simples, com x=(raíz de 2) ou (simétrico da raíz de 2), já a mesma equação mas com x E N não tem solução possível.

Ora, sem querer obviamente comparar a estrutura racional humana a uma mera equação linear, certo é que mesmo a criatividade e inteligência (capacidades que determinam soluções onde aparentemente são impossíveis) estão condicionadas ao estímulo ou ausência dele. Caso contrário, a evolução tecnológica, artística, científica e cultural da Humanidade não seria um processo gradual, mas sim absoluto e momentâneo.

Ou seja, o conjunto das peças, dos elementos, das variáveis culturais, sociais e económicas, à disposição da capacidade intelectual de cada Ser Humano determina em grande parte a amplitude da sua liberdade. Independentemente da sua inteligência, das suas capacidades intelectuais, o grau de acesso à informação e ao conhecimento, condiciona o grau de liberdade para a acção e para a escolha.

Daí a forma tentacular e fortemente controladora como o sistema capitalista, as corporações e os estados subservientes, condicionam a disponibilidade de informação e impedem a difusão da consciência dialéctica e bloqueiam o raciocínio materialista através dos meios de comunicação e educação de massas. A limitação do conjunto de variáveis disponíveis para o pensamento, determina assim uma gradação de liberdades em função do posicionamento de cada indivíduo no tabuleiro da luta de classes. Não nos referimos aqui à liberdade legalmente considerada, nem tampouco à liberdade económica que está manifestamente afectada de brutais constrangimentos e garrotes em função da posição económica de cada um. Não é necessário grande estudo para rapidamente verificar que essa liberdade material está inteiramente dependente do papel de cada um na sociedade capitalista.
O Explorador detém um grau de liberdade material infinitamente superior à do Explorado. O patrão detém um conjunto de liberdades materiais que o seu empregado não detém, nem poderá alguma vez deter enquanto for trabalhador e não se tornar ele próprio em patrão. Mas no que à liberdade intelectual diz respeito, o processo não é tão diferente quanto isso.

É certo que Sartre tem razão quando afirma que o Ser Humano não pode escolher não escolher, pois essa a única liberdade que não lhe assiste. Está, pois, condenado a ser livre. Mas há toda uma hierarquização dos graus de liberdade que, incontornavelmente, se verifica entre os homens e impede a absolutização do conceito. Por exemplo, um trabalhador ofendido nos seus direitos laborais pode optar, no plano intelectual e racional, pela luta ou pela capitulação. É um facto, ele pode. Não podemos é, no entanto, negar que existem diversas formas de limitar essa capacidade de escolha. Se o trabalhador em causa não tiver acesso a dados sobre lutas de trabalhadores noutros casos, se o trabalhador não tiver acesso a informação sobre organização sindical dos trabalhadores, sobre os mecanismos de exploração capitalista, sobre os resultados de outras situações semelhantes, e se o mesmo trabalhador apenas dispuser de informação sobre trabalhadores que capitularam e que não se organizaram, negociando posições menos favoráveis mas mais favoráveis que o desemprego, então esse trabalhador terá certamente uma tendência para optar pela capitulação. Isso significa objectivamente que o grau de liberdade desse trabalhador está limitado.
Como tal, existindo limitação, e sendo essa limitação diferente de indivíduo para indivíduo, e em função da hegemonia cultural de classe em vigor em cada momento histórico, então a liberdade de escolha, sendo real, não é absoluta.

Tuesday, July 21, 2009

A Corrupção

Corrupto é o que está, de alguma forma, poluído, quebrado na sua estrutura. Legalmente, do ponto de vista técnico, corrupção constitui um crime punível.

No entanto, quando se fala de corrupção, limita-se sempre o conceito a essa categorização e tipificação legística e administrativa, deixando ficar de fora a corrupção legal, não menos imoral.

Nos cargos públicos de eleição e de nomeação, o juramento é feito para com o povo e o interesse nacional, sob a vigência da Constituição da República Portuguesa que, acima de tudo, lhes cabe cumprir e respeitar. Se um titular de órgão público exerce o poder para benefício próprio, cometendo um acto ilegal ou legal, ou usa poderes que lhe assistem como moeda de troca para se beneficiar a si próprio, incorre num crime previsto na lei. Porém, se um titular desse mesmo órgão se apresentar a eleições com o propósito anunciado de defender o interesse público e, no uso do poder, defender a concentração do lucro, a acumulação de capital em grupos privados, a estratégia empresarial deste ou daquele, então isso já não cabe sob a definição estrita de corrupção, de acordo com a lei.

No entanto, para todos os efeitos, as consequências dessa tipologia de corrupção legal são, na maior parte das vezes, bem mais perniciosos e de impactos significativamente mais amplos que os da pequena e média corrupção ilegal. A imoralidade no uso do poder traduz-se de facto, na verdadeira dimensão da corrupção sistémica - o apodrecimento das estruturas, o desvirtuamento dos compromissos e o desvio do funcionamento do Estado do Povo.

Corrupto - de sinónimo, em latim, "apodrecido" - é o sistema capitalista e os que lhe dão corpo.
Infelizmente, em Portugal, é corrupção autorizar a edificação de um empreendimento turístico em área protegida a troco de um qualquer prémio. No entanto, já não se considera corrupto o legislador que altera o quadro legal para permitir a construção do mesmo empreendimento turístico, mesmo que esteja provado o seu impacto negativo e efeitos nefastos para a economia e para a população envolvente.

Da mesma forma, seria ilegal e censurável que alguém vendesse o domínio público a uma empresa privada para exclusividade de usos. Mas é absolutamente aceitável que um Governo altere a lei para permitir a alienação total do domínio público, material e imaterial, entregando assim esse domínio a um ou outro interesse privado, depauperando do Estado do Povo, mesmo à margem do espírito e da forma da Constituição da República.

É ilegal receber benefícios próprios a troco de actos administrativos, políticos ou executivos, legais ou ilegais. E bem. E no entanto, é perfeitamente aceitável no quadro da lei que os indivíduos que desempenham cargos públicos e, muitas vezes até como legisladores, sejam cooptados para o mundo das empresas privadas que foram beneficiadas pelos seus actos enquanto titulares dos cargos públicos. Não é corrupto que um dos mais altos representantes do Estado Português se apresente como promotor de marcas de automóveis, de peixe congelado e de computadores e software quando foi eleito pelo povo que é diariamente prejudicado precisamente por essas mesmas corporações?

Por isso quando ainda há poucos dias via na tv um programa sobre corrupção, me revoltava. Por um lado porque centram a corrupção nos pequenos actos, indo ao ridículo de acusar o funcionário público pela corrupção de Estado que grassa em Portugal. Por outro lado, porque sempre recusam colocar a discussão sobre os aspectos essenciais. E esses aspectos são a natureza corrupta do Estado no sistema capitalista, natureza suportada pelos partidos que disputam o poder burguês.

Curioso é também verificar que sempre se aligeira o papel do corruptor. Ou seja, se existe um corrupto, existe um corruptor. Porquê demonizar apenas o corrupto - que certamente desempenha o papel mais censurável - e esquecer o corruptor. É que se existe quem se venda, é porque existe quem compre e estimule a imoralidade. Essas mesmas empresas que são diariamente promovidas como o céu na terra e como a salvação para todos os males do país, são precisamente aquelas que acenam com dinheiro e regalias por baixo das mesas e secretárias do poder político apodrecido e corrupto. São as mesmas que trocam impressões sobre quem contratar nos gabinetes dos ministros, nos governos, ou nos aparelhos de influência dos partidos burgueses. Essas, afinal de contas, saem sempre ilesas dos processos. Tudo a bem da manutenção da natureza corrupta do sistema burguês a que, ultimamente, se vai chamando "democracia ocidental" ou "democracia consolidada".

Friday, June 19, 2009

cinco dedos, um punho

como não sei pôr vídeos no blog, deixo o link para o vídeo na rádio moscovo.

Tuesday, May 19, 2009

sexo ou género?

Uma das modas que mais recentemente tem surgido no léxico político no quadro da hegemonia burguesa é o termo "género" para substituir o termo sexo, ou para, segundo dizem, alargar o conceito de "identidade própria" de cada ser na sua dimensão sexuada. Que significa pois, género? Porque é tão amplamente difundido como uma nova palavra?

A cultura dominante é difundida, irradiando da classe dominante, através dos meios de comunicação, utilizando também as linguagens como poderosos instrumentos de manipulação de massas. A linguagem, sendo um dos primordiais instrumentos de comunicação é também um influente e poderoso tijolo do raciocínio, ainda que na medida das representações que induz e constrói. A mistificação de conceitos faz-se em grande parte através da manipulação da linguagem e o capitalismo apercebeu-se rapidamente da importância da mistificação. Como já várias vezes repeti, a tendência para remeter as questões para o seu plano imaterial é uma das expressões mais vincadas dessa estratégia de mistificação.

A forma como a linguagem da classe dominante rapidamente absorveu o conceito, suficientemente subjectivo, de género é assinalável. Daquilo que vamos então percebendo, quer esse conceito ultrapassar a condição natural dos seres humanos e atribuir-lhe uma dimensão comportamental e ontológica, aparentemente desligada do sexo enquanto factor biologicamente determinado. Desengane-se quem pensa que o termo "género" tenciona fazer menção a identidades sexuais independentes do sexo, pois é um facto que hoje em dia quando se fala de "violência de género", "igualdade de género" e outras que tais, aponta-se, sem qualquer dúvida, para a "violência em função do sexo" e "para igualdade entre os sexos" ainda que sem referir o termo "sexo". E essa omissão não é inocente.

Ela visa de facto criar a ilusão de que existe uma super-categoria que agrupa os seres humanos em função de características subjectivas e comportamentais que será, portanto, o género. Assim se apaga a importância da classe social e a discriminação sexual como elemento de exploração do trabalho das classes trabalhadoras. A ideia de que existe um comportamento genérico atribuído a uma qualquer parte da população em função de arquétipos comportamentais afasta claramente o raciocíonio da análise material e remete-o para o campo da subjectividade.

Por exemplo, enquanto que numa abordagem que parte da "igualdade de género" se assume que o que importa é o agrupamento subjectivo que se pode fazer de um conjunto de pessoas em função do seu sexo, pois isso determina comportamentos sociais, éticos e políticos; numa abordagem que parta da "luta de classes", posicionam-se no tabuleiro das forças os homens e as mulheres em função do seu papel no sistema de produção. "Género" passa a ser portanto uma representação em função de supostas sensibilidades femininas ou masculinas que, bem aprofundado, não pode senão remeter para o factor material que as determina.

Esse factor material é duplo. É determinado em função, essencialmente da classe social, e do sexo, independentemente das orientações e comportamentos sociais. Por exemplo, um operário não deixa de ser um operário se pensar como um pequeno-burguês e um pequeno-burguês não deixa de o ser por defender aqui ou além os interesses dos operários. Imaginemos agora o que seria se passássemos a classificar as pessoas em função do seu comportamento e não do seu enquadramento no sistema classista. Também as mulheres, pesem embora as características inerentes à sua feminilidade e também os homens, independentemente da sua masculinidade, devem pois ser enquadrados de acordo com a sua condição material (classe e sexo) e não com o seu comportamento.

Ao utilizarmos o conceito de género para alargar a representação do sexo, incorremos muitas vezes afinal na camuflagem das reais assimetrias e discriminações em função do sexo. Os problemas da discriminação de transsexuais, transgéneros e homossexuais não está minimamente incluído no conceito de "igualdade de género", caso contrário, a lei da paridade (que assenta nesse tal princípio da igualdade de género) teria de contemplar que 1/3 das listas teria de ser do género feminino ou masculino, independentemente do sexo. Ora, como está à vista de todos, tal não só não se verifica como seria impraticável e absurdo.

Portanto, na verdade, quando a cultura dominante faz surgir o termo género é exactamente para criar um conceito super-estrutural que atribui à mulher características comuns independentemente da sua condição de classe e da sua condição feminina. Ou seja, em última análise, este conceito subjectivo encaminha-nos para dedução de que existem mais critérios para se ser mulher ou homem do que o sexo. Quem sabe não sejam exactamente esses critérios que acabam por justificar a cada vez maior diferença e discriminação que se vai verificando entre os sexos nas classes trabalhadoras...?

é que, caso contrário, não se percebe porque é que aqueles que dizem precisamente que "género" representa o modelo, o paradigma comportamental induzido em função de identidade sexual, não lutam então pela abolição da diferença de género e pela verdadeira igualdade entre os sexos.

Em última análise uma mulher operária, independentemente da sua orientação sexual, que se identificasse como pertencente ao género masculino, por se enquadrar exactamente nesse modelo comportamental, não seria discrimanada. Pois se o que contasse fosse o comportamento, na perspectiva de quem defende o termo "género" para referir "sexo", essa mulher não precisaria de protecção contra potencial discriminação sexual pois, na linha desse raciocínio, ela integra o "género" forte.

Tuesday, May 05, 2009

Autoridade Nacional

escrevi este texto na Autoridade Nacional, mas achei que também não ficaria mal aqui.

Friday, April 10, 2009

natureza humana ou natureza de classe

A natureza humana serve de justificação para as maiores atrocidades que se cometem, serve de justificação para o conformismo, para o comodismo, para os comportamentos violentos e, curiosamente, serve para justificar os actos desumanos. Numa perspectiva política a natureza humana e as suas formas, ocupam um lugar de destaque no folclore ideológico que nos rodeia. É, pois curioso, que a interpretação política e filosófica do mundo e dos seus problemas possa basear-se num tão vago conceito como natureza humana por parte de alguém que pretenda ter uma visão revolucionária do mundo.


A primeira de todas as batalhas políticas trava-se no plano ideológico e, como consequência, no plano filosófico. E as duas grandes forças que se degladiam nessa batalha são o idealismo e o materialismo.


Ora dizia-se na caixa de comentários do anterior post aqui no império que o que se mantém imutável desde os dias de Marx não são os conflitos de classe e o sistema classista mas sim a natureza humana e que é, portanto sobre ela que importa agir. Também se disse a determinada altura dessa interessante discussão que os “ismos” ideológicos têm desempenhado um papel de obstáculo ao desenvolvimento da luta revolucionária.


Partamos então para uma análise mais aprofundada do conjunto de coneitos e paradigmas filosóficos que emergem da própria ideia de “natureza humana” nos termos em que ela é utilizada. A burguesia sempre difundiu como base da sua hegemonia cultural a ideia de que a natureza humana é uma matriz em si mesma que é quase ou mesmo inalterável e que assenta no egoísmo e egocentrismo. Com essa doutrina conservadora, a burguesia impõe como “natureza humana” a sua “natureza de classe”, utilizando os meios de comunicação e educação de massas ao seu dispor, a classe dominante sedimenta a sua própria natureza exploradora, competitiva, egocêntrica, predatória, assassina e violenta junto das massas. Álvaro Cunhal aborda bem a forma como o proletariado resiste a esta ofensiva através da partilha de um código moral distinto, na brochura sobre “a superioridade moral dos comunistas”. Ou seja, a “natureza”, numa perspectiva do estudo da ética e do comportamento humano é aproximadamente a síntese e a súmula dos comportamentos e códigos morais de cada ser humano. Numa abordagem simplista e horizontal poderíamos dizer que existe então uma natureza humana, sendo então essa natureza humana um modelo imutável que determina o comportamento humano.


Todavia, numa perspectiva materialista, importa relacionar o comportamento material e ético do homem com o ambiente e as relações materiais que o rodeiam. Assim rapidamente chegaremos a um ponto de vista mais amplo que começa a fazer a distinção entre as várias “naturezas humanas” - passando a contemplar então as “naturezas de classe”, ou seja, os comportamentos e códigos morais de cada classe social. Dizer que a natureza humana é o que define as relações sociais e é o que se mantém ao longo da história da Humanidade é subalternizar a luta de classes e ignorar as diferenças genéticas que existem entre a “natureza moral” do proletariado, dos trabalhadores e popular e a “natureza amoral” da burguesia. Mas mais grave do que isso, é esquecer que o que determina a natureza subjectiva do Homem é a sua relação materialista com o meio, a sua posição nas relações sociais e produtivas.


As abordagens idealistas, tão próprias da burguesia e da pequena burguesia (seja ela de esquerda ou de direita), são aquelas que centram na “natureza humana” as variáveis que determinam as relações materiais e sociais. Isso é subverter por completo o processo e aceitar a linguagem conservadora actual que contrapõe a tal “natureza humana” à construção do socialismo, atribuindo a todos os homens e mulheres a sede de poder, a tendência para a corrupção e o individualismo. Com esta abordagem, ignora-se a história da Humanidade e nega-se a possibilidade da construção do Homem Novo. E dirão a esta altura os mais encaixados e acomodados ao sistema que o Homem Novo é um adorno romântico da ideologia comunista. Mas na construção do Homem Novo e na aceitação de que é possível fazer essa construção, está a pedra de toque do dilema “natureza humana vs natureza de classe”.


Para aqueles que no Homem Novo vêem apenas um romantismo socialista, basta perguntar-lhes se é ou não verdade que o Homem de hoje não é diferente do Cro-Magnon, ou do Homem da Idade Média. Isso rapidamente os obrigará a reconhecer que existem diferenças substanciais entre os comportamentos humanos de cada época e que, por consequência, Homem Novo é uma figura que marca as etapas históricas do passado e continuará a marcar as do futuro. Quando se diz que é a natureza humana que se mantém e que, como tal, podemos aceitá-la como um dado objectivo no nosso pensamento político revolucionário, ignora-se ou confunde-se que o que se mantém é a relação entre o Homem e os estímulos que recebe. No geral, poder-se-á quanto muito afirmar que os comportamentos materiais e éticos dos homens se têm mantido relativamente estáveis enquanto os estímulos materiais e sociais à sua volta se mantém igualmente. Ou seja, a tal de natureza humana é definida, não por um padrão de comportamentos pré-definido, mas pelo facto de ser racional e, sendo racional, redunda em respostas iguais para estímulos iguais. Já se o comportamento humano fosse errático ou caótico, tal natureza de consistência comportamental perante um estímulo igual não existiria.


A natureza humana é então um produto da relação do homem com o meio e é, portanto, tão variável quanto o são as relações sociais e os sistemas de organização da sociedade. O Homem sujeito a determinados estímulos reproduzirá proporcionais comportamentos. Ou seja, a classe dominante tem também como preocupação dominar os estímulos que fornece às restantes classes, como forma de moldar o seu comportamento. No entanto, a natureza humana não é má nem boa, é fruto racional das situações a que está sujeita.


Identificar na natureza humana uma espécie de “instinto primordial” que nos leva a roubar, matar, explorar, escravizar, etc.. é tão ridículo como identificar na natureza humana um “instinto primordial” que nos leva a ser solidários e empáticos com os outros. Os estímulos e a relação material que cada ser humano tem com o meio determinam o seu comportamento. No entanto, a racionalidade impõe comportamentos que se tornam padrões, por indução. Os homens das classes trabalhadoras rapidamente se aperceberam que a cooperação e a solidariedade são formas mais eficazes de combater a adversidade e construir o progresso, daí também se enraizarem com mais significado esses valores nas classes exploradas. No entanto, no meu entender, essa é uma questão relacionada com a interpretação racional do meio e não com um instinto solidário que nasce com o Homem. Da mesma forma, os homens das classes exploradoras sempre identificaram nos restantes membros da sua classe um adversário por competição, sempre viram nas restantes classes, os seus inimigos e, como tal, o seu comportamento e código moral é mais competitivo, predatório e muitas vezes violento e assassino. Esta dualidade de comportamentos mostra bem que, no quadro da sua racionalidade e interpretação do mundo, as naturezas humanas ramificam-se em naturezas de classe.


Significa isto que os trabalhadores não sentem a competição e o individualismo? Ou que a burguesia é insensível à miséria e não pode ter compaixão? No meu entendimento, esta antítese não nega a tese essencial. Os trabalhadores não são impermeáveis às pressões ideológicas das classes dominantes e a pulverização e desarticulação das formas de organização da produção e, consequenetemente, das formas de organização do operariado, contribuem para uma cada vez maior permeabilidade do operário à doutrina ideológica idealista. Dir-se-á que o trabalhador que adopta uma postura individualista o faz racionalmente porque os estímulos à sua volta lhe indicam que essa é a melhor forma de melhorar a sua vida, individualmente considerada.

Da mesma forma, o membro da burguesia, mesmo da grande burguesia pode manifestar comportamentos de compaixão e empatia com os outros. É exactamente desta incapacidade de ignorar o sofrimento e de simultaneamente pretender manter as relações que posicionam o burguês como classe dominante, que nascem as práticas caritativas. A abordagem kantiana a esta questão apoia inclusivamente esta análise. Para Kant, a moral é uma forma de integração e aceitação social do indivíduo. Ou seja, o indivíduo “pratica o bem” porque isso o beneficiará perante o meio. Ao que Kant nunca chegou foi ao reconhecimento de que o meio é variável e que, como tal, também o conceito de “bem” é variável. Ao que Kant também nunca chegou foi ao reconhecimento de que existem assimetrias de classe que moldam os comportamentos morais do indivíduo.


O idealismo é pois o instrumento mais poderoso da burguesia, porque centra o comportamento humano em torno das questões subjectivas e porque ilude a natureza materialista da ética e da moral. A sacralização de comportamentos nobres, desligados de uma abordagem materialista e a centralização ideológica no indivíduo são os meios filosóficos do capitalismo e não só. São, sempre que necessário, os instrumentos que fundam os fascismos e nazismos.


Curiosamente, anarquistas, esquerdistas, fascistas e nazis, partilham como base teórica das suas análises políticas e filosóficas o idealismo.

Wednesday, April 08, 2009

além da ideologia

Sobre as diferenças entre partidos comunistas e partidos de esquerda mais ou menos moderna ou colorida, julgo que importa aprofundar algumas questões. Principalmente porque há algumas semanas foi levantada esta questão aqui numa caixa de comentários do império bárbaro, julgo que posso deixar aqui umas breves opiniões e notas sobre aquilo que julgo serem as duas distintas e divergentes matrizes entre os partidos ditos de esquerda em Portugal.

Muitas vezes ouvimos dizer que a "unidade" das esquerdas é a ausência que justifica a sua derrota e que não existem assim tantas diferenças entre os partidos de esquerda em Portugal. Ainda há bem pouco tempo, nessa caixa de comentários, um amigo sugeria que entre as posições do PCP e do BE não existem assim tantas diferenças e que isso deve contribuir para diluir as divergências e criar um espaço de convergência.

O PCP, porém, é um partido de classe, identificado com a classe operária e os trabalhadores portugueses e baseia a sua análise política no materialismo dialéctico, apontando como alternativa ao rumo capitalista que sufoca a humanidade, o socialismo. Assim, partindo da concepção base de que é a luta de classes em torno da defesa de interesses antagónicos que produz alterações e progressos históricos, o PCP identifica os trabalhadores como a força indispensável às alterações políticas e sociais necessárias para uma superação do capitalismo. Os objectivos do PCP são essencialmente os da organização dos trabalhadores, dos jovens, homens e mulheres, em torno da defesa dos seus direitos, anseios e aspirações, como forma de intensificar a componente trabalhadora e popular da luta de classes.

O colectivo partidário do PCP é movido pela profunda convicção de que independentemente dos resultados eleitorais de cada força político-partidária é a luta de massas que corporiza a luta de classes que criará as condições para a ruptura política com o rumo que Portugal e o mundo vão tomando à mercê dos desígnios do grande capital. A alteração da correlação de forças no plano eleitoral e representativo é uma condição para ruptura institucional e é um contributo de grande força para a luta de classes e para a superação do actual estado de coisas, mas não é nem decisivo, nem única condição. Ou seja, a ruptura com o rumo político actual depende em grande escala da luta de massas, podendo ser potenciado em pequena escala pela alteração da correlação de forças no quadro da representação institucional para uma que seja favorável ao PCP.

Assim, o PCP começa por identificar um campo de prioridades distintas da do típico partido político português. A captação de eleitorado, a mediatização das suas posições e a agenda em função da conjuntura são características absolutamente secundarizadas num partido de classe e de projecto como o PCP.

O PCP é um partido nacional, com um programa político que tem como objectivo nuclear a construção do socialismo em Portugal e a emancipação dos trabalhadores, pondo fim à exploração do Homem pelo Homem. Acrescem as diferenças genéticas e matriciais que se verificam entre o PCP e os outros partidos: o PCP é um partido que assenta as suas posições numa profunda discussão interna, que apresenta as suas políticas e propostas alternativas com base numa sequência coerente, independentemente do momento político. O PCP não se posiciona de acordo com as flutuações conjunturais porque a sua análise é mais ampla e o âmbito da sua intervenção é global. O PCP é um partido que resulta da produção colectiva que é e não do contributo de um conjunto de dirigentes ou da vontade de um punhado de doutores ou intelectuais.

Ora, muito haveria para dizer do PCP, como é óbvio e seria inevitável num partido com 88 anos de história e com um papel histórico determinante em muitas alturas decisivas da história contemporânea de Portugal.

O BE é um partido que surge como o palco da fama de um conjunto reduzido de políticos da extrema-esquerda portuguesa, que funciona na medida dos raciocínios e propostas dessa elite política e que toma posições sobre os chamados temas quentes da actualidade, em função da conjuntura. A única razão para que esse agrupamento político tenha tantas posições políticas alinhadas com o PCP é o facto de copiar praticamente todas as propostas do PCP. Aliás, o BE pouco mais faz do que copiar as posições políticas do PCP, livrando-se daquelas que são incómodas à luz da comunicação social dominante e da hegemonia cultural de classe que vigora, independentemente de serem ou não justas. Por exemplo: à luz dos princípios que o BE diz defender, as FARC-EP teriam tudo para ser apoiadas por esse grupelho. No entanto, sendo conhecido o estatuto de terrorista que lhes tem sido atribuído ultimamente pela cultura dominante, torna-se incómodo e até ingrato defender essa força revolucionária. Por isso, mais vale não se falar disso. Mas o BE também faz o contrário, assumindo posições e depois escondendo-as porque não dão jeito. O BE anda por aí nas alturas de campanha eleitoral a apregoar a liberalização das drogas e o carácter lúdico do consumo de estupefaciantes. Mas quando chega a altura de concretizar e entre eleições, o BE limita-se a silenciar esses jovenzitos radicais que pululam entre as suas fileiras.

O BE é, além disso, um grupo político que despreza o contributo dos trabalhadores, que não reconhece a importância da luta de classes como motor do progresso e que até há bem pouco tempo dizia que os movimentos de massas tinham terminado e que o processo revolucionário de ora em diante se verificaria através da organização de minorias activas. O BE mantém assim, no essencial, a doutrina trotskyista que quer agora esconder, admitindo como central o papel de uma burguesia esclarecida na direcção política do planeta e do país. Para o BE, o operariado português, particularmente o operariado ligado ao PCP é retrógrado, conservador, machista e ignorante. Como tal, incapaz de operar as transformações sociais que se exigem para a ruptura socialista revolucionária. Assim rezará pois a bíblia esquerdista (agora social democratizada) dos membros do BE. No seu íntimo, desejam uma ruptura política que não coloque em risco a matriz do sistema, ou seja, os privilégios e a dominância económica, política, cultural e social da burguesia.

E essa é a diferença mais abissal que pode separar os diferentes partidos e movimentos políticos. Ao contrário do que o tema deste post indica, ela não está além da ideologia, mas nasce da própria ideologia, assim moldando todos os cantos e pilares de um partido. Porque a concepção burguesa, ainda que de esquerda, da transformação social é feita sem o contributo colectivo do proletariado organizado como classe dominante. É feita da mera soma dos espíritos privilegiados.

Isto molda os mais elementares princípios orgânicos do PCP e não molda os do BE. Isto faz distinguir o PCP de todos os outros partidos, isto determina uma organização comunista em torno de um colectivo, munido do centralismo democrático como instrumento revolucionário e do materialismo histórico como ferramenta interpretativa da realidade. Isto faz, quer queiram quer não, distinguir o PCP do BE em toda a linha. Porque no BE não existe o conceito de militância classista, de organização revolucionária.

Dir-me-ão: "mas no imediato que importa a concepção programátrica de cada um?" importa na medida em que um trabalha para retardar o potencial da classe operária, como forma de manter os seus privilégios e outro trabalha com tudo o que tem para o reforçar e acelerar. Importa na medida em que essa diferença determina a diferença de comportamentos que se verifica entre os membros descomprometidos do BE e os militantes comprometidos do PCP. Porque isso influencia a forma como se concebe e se utiliza o poder, a intervenção sindical a representação institucional.

Ao longo do tempo, uma coisa se tornará certa. Os trabalhadores terão sempre a necessidade de um Partido de classe. Pode chamar-se PCP ou qualquer outra coisa. Mas esse partido, essa organização terá sempre as características do PCP e nunca as do BE.

Friday, March 20, 2009

uma estória

é a primeira vez que conto por escrito esta estória. é verdadeira, mas como compreenderão não citarei nomes. passou-se em setúbal.

há alguns tempos atrás, o T tinha-me perguntado por que era eu comunista. frequentávamos juntos as aulas de religião e moral e ele sempre se assumira como cristão, católico. eu, pelo contrário, sempre frequentei aquelas aulas pelo mero gosto de saber e conhecer a doutrina que ali se ensina e pelo estímulo que a discussão com os católicos me oferecia. o T era bom rapaz, assim sempre pensei e mesmo hoje não o nego.

o T ficou sensibilizado com a minha explicação sobre a minha opção política. na sequência dessa conversa pediu-me livros e informação. era um rapaz capaz de reconhecer algo justo quando o via. depois de algumas conversas, de pontos de contacto e de discenso, lá o T se disponibilizou a visitar o espaço da JCP e a participar numa ou outra reunião. o que viu espantou-o pela positiva.

inscreveu-se na JCP. militou nessa organização juvenil durante uns meses, participou em algumas reuniões. parecia-me às vezes até entusiasmado e era patente que julgava justas as posições da JCP sobre as mais diversas matérias.

um dia, o T aproxima-se de mim e pede-me para falar. um certo incómodo atravessava-lhe a voz e o olhar baixo. diz-me que falaram com ele (a família e alguns amigos) e o desaconselharam quanto à sua participação política com comunistas. lembro-me bem da expressão "na JCP não vou a lado nenhum, por isso vou para a JS". dizia que na JS teria mais perspectivas de "subir" e ter carreira. confesso que fiquei triste.

mas também fiquei contente. e respondi-lhe: "se são essas as razões, fazes bem e apoio".
tínhamos 17 anos. aos 24 ou 25 o T fez parte das listas do PS para a assembleia municipal de setúbal. não foi eleito.

Wednesday, February 25, 2009

A pequena moral da burguesia e a moral da pequena burguesia

Por mais que tentem esconder, pequenos deslizes – aparentemente inocentes – denunciam a moral que subjaz ao comportamento dos esquerdistas. Em Portugal e no mundo, estas franjas do espectro político transportam características muito próprias, bem narradas por vários comunistas ao longo da História. A principal questão que importa aqui referir é a sua incontornável origem de classe que radica nas classes burguesas e pequeno-burguesas.

Como tal, toda a intervenção política destes grupelhos – mais ou menos organizados – gira em torno de uma matriz ideológica anti-marxista. É verdade que eles próprios se afirmam marxistas quando isso lhes dá jeito, mas cabe aos comunistas interpretar as mensagens políticas e estar capaz de desmascarar o seu carácter social-democratizante. Claro que estes grupos políticos tanto manifestam uma tendência claramente social-democratizante como se afirmam radicalistas e revolucionários inquebrantáveis. Um olhar sobre a História e verificamos que vagueam entre um papel e outro consoante o momento histórico, seguindo a matriz de se colocar exactamente no papel que funciona como conservador da realidade.

Na verdade, os esquerdistas, os movimentos pequeno-burgueses de fachada socialista, assumem na História o papel da conservação da correlação de forças em que assenta o capitalismo e a exploração. Mostram-nos a social-democracia como solução quando o socialismo encontra no terreno as condições subjectivas para se consolidar como alternativa. Mostram-se aventureiristas e radicalizantes, quando não existem as condições subjectivas para comportamentos dessa natureza. Isto resulta numa postura variável em função dos momentos históricos, ao contrário do que seria de esperar e do que seria necessário numa perspectiva revolucionária.

Dizia que mesmo nos pequenos deslizes se destaca uma perspectiva moral burguesa na linguagem e na mensagem dos esquerdistas. A última novidade, tão bem recebida pelo patronato português, é a tirada em que o Bloco de Esquerda ultimamente cavalga: “Quem tem lucros não pode despedir.” O BE espalhou por aí esses cartazes de tamanho jumbo com a bonecada esquerdista do costume, que se preocupa exclusivamente com o mediatismo e a facilidade de digestão das mensagens, independentemente da justeza do seu conteúdo. É verdade... assim parece. O Louça mandou a bujarda na Convenção do Bloco e aquilo soou bem. Soou bem aos amigos que lá estavam a ouvir o sacerdote, soou bem à comunicação social burguesa e até calhou bem ao patronato português que se apressou a dar umas palmadinhas nas costas do BE por tão excelsa sugestão.

Um raciocínio leviano termina com uma apreciação positiva. Efectivamente parece bem que quem tem lucros não possa despedir trabalhadores e ponto final. É elementar até. Desafio, porém, a um raciocínio mais ponderado, sem facilitismos ou entusiasmos mediáticos. Sei que é um esforço demasiado para os dias que correm em que esperamos tudo mastigado e, de preferência pela boca de um qualquer sábio que pense por nós, que leia por nós, que julgue por nós. Mas é importante combater essa preguiça cerebral.

Ora vamos lá a ver... “quem tem lucros não pode despedir”. Qual é a mensagem na sua totalidade? Se quem tem lucros não pode despedir, parte-se do princípio que quem não tem lucros pode despedir, certo? Ou seja, há despedimentos legítimos – de quem tem prejuízo – e despedimentos ilegítimos – de quem tem lucro. É um raciocínio que começa a revelar o seu carácter burguês com todo o esplendor. Ora se quem apresenta prejuízo pode despedir isso assume-se como um despedimento socialmente aceite, um despedimento legítimo. Escuso relembrar que as contas das empresas são sistematicamente manipuladas de forma a esconder os lucros, escuso relembrar que também existe prejuízo ilegítimo, por má-gestão ou por investimentos fora do território nacional, desviando a riqueza aqui produzida para outros pontos do globo. Ora, este segundo patamar de raciocínio não é o último, pois que da ideia de despedimento legítimo decorre uma consequência linear. A de que é legítimo que o trabalhador assuma a responsabilidade sobre as desventuras da administração da sua empresa e que seja o responsável primeiro e último pela crise estrutural do capitalismo.

Perante uma crise de dimensões colossais, em que o capitalismo treme sobre as suas fundações, o Bloco de Esquerda vem dizer-nos que a responsabilidade social da empresa capitalista é a solução para as maleitas do mundo. Que é imoral despedir se tem lucros, pois claro. Mas não será imoral colocar sobre o trabalhador a responsabilidade pelos prejuízos da empresa? Afinal de contas, que raio de culpa tem o trabalhador pelas más-opções da empresa, da sua administração, que culpa terá o trabalhador perante a financeirização da economia global, perante a especulação bolsista e perante o colapso das bolhas especulativas daí decorrentes?

A moral do bloco de esquerda é a moral da burguesia. É uma moral conservadora, que lhe escapa e se manifesta nas suas mais pequenas expressões, só é preciso procurá-la.

Friday, February 06, 2009

Educaçao e formação

A educação em Portugal está a ser substituída pela formação profissional.
As necessidades do capital são evolutivas, tal como o próprio sistema capitalita e as suas formas, na medida do desenvolvimento dos meios de produção. A actual fase demonstra-nos cada vez mais claramente como as necessidades do capitalismo são diametralmente opostas às das populações. É certamente pacífico afirmar que o grau e a velocidade de desenvolvimento das sociedades, é tanto maior quanto maior for a massificação do conhecimento.

Por todos os motivos humanistas, mas também pelo simples facto de que: quanto mais seres humanos detiverem as ferramentas mentais e filosóficas de análise da realidade, mais problemas a humanidade no seu conjunto será capaz de resolver e, consequentemente, mais rápido e amplo será o seu desenvolvimento comum.

Ora, no entanto, para o capitalismo e para a classe que sob esse sistema domina as restantes, o desenvolvimento colectivo deve ser orientado em cada instante, não de acordo com o seu potencial absoluto, mas de acordo com o seu potencial relativo, sendo esse potencial relativo determinado pela possibilidade de gerar lucro e reforçar a hegemonia capitalista.

Ou seja, o potencial absoluto da Humanidade é, não só muito mais vasto e profundo que o seu potencial sob o capitalismo, como é, em essência, diferente. O sistema capitalista limita, portanto, o desenvolvimento dos meios de produção, tal como o associado desenvolvimento social e cultural, à capacidade de deles extrair mais lucro e mais poder económico e político. A disseminação científica, a democratização da tecnologia e a elevação do grau cultural dos colectivos é, portanto, controlada muito próxima e cuidadamente pela classe dominante, permitindo o seu alastramento e concretização apenas no quadro das necessidades da maximização do lucro.

O impacto da resistência popular organizada, ou os impactos da luta revolucionária são representados pontualmente por pequenos avanços da classe dominada no acesso ao conhecimento e à educação, rapidamente esmagados pela reacção burguesa assim que tem essa oportunidade (a massificação e democratização do ensino em Portugal através da construção de uma Escola Pública, Democrática, Gratuita e de Qualidade, após o 25 de Abril, foram passos importantíssimos para o progresso social e económico que não tardaram a ser atacados pelos governos de direita, por exemplo).

A actual fase em que se encontram os mercados capitalistas é caracterizada no plano internacional também por uma forte concorrência e competitividade, que sacrifica todos os direitos e impõe como regras sociais as regras do mercado. O desenvolvimento rápido e acelerado dos meios de produção exige adaptações nos métodos de epxloração da mão-de-obra, independentemente do aumento ou da regressão da taxa de exploração, e essas adaptações têm fortes implicações no grau de conhecimentos e competências dos trabalhadores. A “estratégia de lisboa” e o próprio “processo de bolonha” assumem como pilares fundamentais do desenvolvimento económico e da competitividade do espaço europeu a qualificação das massas. Em que medida o fazem?


Com o mercado a necessitar cada vez de uma mão-de-obra mais preparada, com os grandes grupos económicos a necessitarem de se libertar dos gastos associados à formação profissional dos seus trabalhadores e com o desejo de acolherem entre as suas fileiras de trabalho, os trabalhadores em idade cada vez mais jovem (por motivos de produtividade, de flexibilidade, de instabilidade e de maior facilidade de exploração), exige-se aos Estados que substituam o capital nesse esforço de formação profissional.

A educação de massas ganha assim uma componente cada vez mais volumosa e mais abrangente de formação profissional, baseada não na transmissão e captação de conhecimento, mas essencialmente na aquisição de competências. O que importa, claro está, é que o jovem esteja capaz de integrar as fileiras da exploração ou o exército industrial de reserva com o máximo de competências adquiridas e o mínimo de cultura científica e de saber. A formação da cultura integral do indivíduo é uma vez mais a pedra de toque da educação para a emancipação ou da formação para a exploração.

Em Portugal vamos assistindo a uma conversão à escala nacional do sistema educativo num sistema de acreditação e atribuição de competências profissionais, de banda estreita e assente numa alfabetização elementar das massas. A Escola de Abril, democrática e orientada para a diluição e eliminação das assimetrias de classe, é transformada numa escola de massas que visa apenas reproduzir ou agravar as injustiças e assimetrias geradas na origem do sistema de exploração capitalista.

Os filhos das camadas trabalhadoras da população ingressam no sistema escolar, tendo um acesso directo a uma educação elementar baseada na tabuada e capacidade formal de juntar letras, indo depois para a linha de formação profissional onde aprendem, não um ofício criativo, mas um conjunto de comportamentos seriados e padronizados à medida das empresas que financiam e patrocinam as escolas e os próprios currículos e cursos (com gastos incomapravelmente inferiores aos que despendem na sua formação própria).

O jovem adquire as competências de que o mercado necessita, ainda que por pouco tempo, e não as competências e conhecimentos de que ele próprio e o colectivo necessitariam. Tendo em conta que as necessidades do chamado “mercado de trabalho” são fortemente oscilantes e efémeras, as características formativas do operariado ideal são também variáveis. Além disso, o mercado quer absorver essencialmente os trabalhadores jovens, com recurso a contratação precária, facilmente descartada e substituída. Isso significa que a concepção de que a formação profissional é, em si mesma, a chave para o sucesso e para a “empregabilidade” no mercado de trabalho capitalista é uma ilusão e um logro.

As escolas portuguesas estão a ser convertidas em ante-câmaras do Trabalho assalariado, com a agravante que disponibilizam jovens estudantes para o mundo do trabalho sem qualquer remuneração. Ou seja, as empresas, as grandes empresas, usufruem de dupla vantagem parasitando o sistema público de ensino. Por um lado, poupam significativas somas ao não investir isoladamente na formação profissional; por outro, utilizam sem pagamento e qualquer responsabilidade social, os estudantes como trabalhadores em formação. E os estudantes são forçados a agradecer e levados a crer que este é o melhor dos mundos, porque ingressaram no mundo do trabalho.

O estágio profissional de âmbito curricular no ensino secundário (ensino profissional) é assim, não só uma forma de formação profissional, como uma forma de exploração total do trabalho alheio. Depois deste percurso básico, o estudante converte-se directamente em assalariado ou desempregado, sendo que, com esforço pode ingressar no ensino superior para cumprir o primeiro ciclo de bolonha e assim subir um degrau na escala salarial, permanecendo no entanto, à mercê dos desígnios e caprichos do “mercado de trabalho”.

Os filhos das camadas mais ricas da população, particularmente dos yuppies e da burguesia, têm, esses sim, acesso a uma Escola cada vez mais insular. Uma Escola que, sendo pública ou privada, é reservada para as elites nacionais, escolhendo os seus alunos com base numa triagem social e académica, encaminhando-os para o prosseguimento de estudos no sentido do ensino universitário.

A educação não é só formação. É urgente desmascarar a propaganda política do Governo quando afirma que está a abrir as portas da educação a todos, que está a trazer os jovens para as escolas, que está a combater o abandono e o insucesso escolares. É preciso denunciar que as estatísticas de escolaridade, de abandono e de insucesso, não terão o mesmo significado agora que tinham antes.

Uma forte percentagem da população acreditada para o trabalho, detentora das mais variadas habilitações (jogador de futebol, ajudante de pedreiro, ajudante de cozinheiro, técnico especializado em linhas de montagem, técnico de informática, cabeleireiro, e por aí fora) não quererá dizer mais do que isto: negámos a esses o direito a aprender, mas demos-lhes a obrigação de permanecer explorados.

Friday, January 23, 2009

milhões de ilusões

"por dois euros pode realizar todos os seus sonhos"; "seja um excêntrico" e coisas que tais são os slogans que uma modelo anuncia na televisão, apelando aos portugueses, não só para que joguem nos concursos de azar da santa casa da misericórdia, como assistam ao programa de televisão que, infalivelmente, transmite os sorteios com honras de emissão em directo.

Ele é o Euromilhões, o totoloto, o totobola, o joker, o loto2 e ainda há as lotarias. Mas o Euromilhões é o que mais febre provoca, o que mais gente ilude. Vejo nas pessoas próximas de mim. Uma esperança absolutamente irracional invade o coração das pessoas que jogam no euromilhões, e uma falsa sensação de descanso atinge-lhes o coração como uma injecção de letargia.

Depois de entregar uns poucos de euros (acho que é de 2 a 10) à concessionária do Jogo em Portugal - a Santa Casa da Misericórdia - o jogador entra num estado de transe esperançosa, uma ilusão que lhe preenche os dias com pensamentos para concretizar quando for rico. "quando me sair o euromilhões"; "se me sair o euromilhões", etc.. O jogador ocupa boa parte do seu processo criativo com a fabricação de desejos absurdos e absolutamente inconcretizáveis. Isto gera a ilusão de que é possível sair o prémio, de que o tal de jackpot está à distância de uns poucos de euros. Ilusão esmagadora, que gera, por si só, um quasi-contentamento, pelo simples factos de colocar o jogador numa posição de rico sonhador. Mas muito mais grave do que essa ilusão, os anúncios estimulam a "vontade de ser rico", espalham a doutrina do individualismo e colocam como objectivo de muitos - ainda que temporário - ser rico, aliás, ser estupidamente rico. É, portanto, uma fábrica de fazer dinheiro com um forte papel ideológico, de diversão de massas.

Com este mecanismo se concentram milhões de euros numa instituição do Estado, com fortes ligações com a Igreja, que explora milhares de portugueses, que extorque idosos e pensionistas e que encaminha para uns poucos todas as mordomias que os euros podem proporcionar. A mesma instituição que é gerida em regime de alta promiscuidade com a igreja, a mesma instituição que recebe rendas dos velhotes portugueses para habitarem casa em avançado estado de degradação, a mesma instituição que detém grande parte do parque habitacional do país e que permite o seu abandono e a sua degradação.

Adiante, antes que fiquemos mal dispostos.
Matematicamente falando, a hipótese de sair o primeiro prémio do euromilhões é 1 em 76 275 360, ou seja, a probabilidade de eu jogar no euromilhões e de ser o vencedor do primeiro prémio é igual a 1,3 x 10^8, o que significa 0,000000013. Claro que a probabilidade está lá, existe. Ínfima, mas existente, e é essa probabilidade que serve de engodo semanal aos milhões de pessoas que apostam no jogo. Tão bem calculada que assegura sem risco o carácter lucrativo do jogo, tal como nos casinos.

Na verdade, se um jogador quisesse ter a certeza de que o prémio lhe seria atribuído teria de gastar 152 550 720 euros. Ou seja, ainda assim, a organização do concurso lucraria 137 550 720 euros. Um negócio lucrativo e sem risco, como se vê. Noutras palavras, uma vergonhosa forma de enganar as pessoas e de as ter mergulhadas na ilusão da riqueza.

O mais grave é que, quase aposto, se os governos proibissem este jogo, seriam os próprios jogadores os primeiros a queixar-se e a revoltar-se. Porém, estatisticamente falando, os governos estariam impedindo que os cidadãos deitassem ao lixo dois a dez euros por semana. Pior, a dar para os bolsos de desconhecidos cerca de 152 milhões de euros por semana. Estatisticamente falando, a probabilidade de o euromilhões te sair a ti (leitor, se jogador) é ZERO.

Wednesday, January 21, 2009

25 anos depois de Ary

A Bandeira Comunista
(algumas notas sobre o carácter e o génio)

Um dos mais conhecidos poemas de Ary e seguramente dos mais queridos dos militantes do PCP, A Bandeira foi escrito em condições que merecem ser recordadas.
Na segunda-feira, 11 de Agosto de 1975 o Centro de Trabalho do PCP em Braga foi destruído e incendiado após um ataque comandado por um grupo operacional do ELP, como mais tarde veio a ser revelado por numerosas investigações e directamente reconhecido por alguns dos membros do comando directamente envolvidos.
O «Avante!» enviara no fim de semana anterior para Braga um seu colaborador fotógrafo, uma vez que corriam insistentes boatos de incidentes em Braga na segunda-feira por (como sucedeu em diversos outros actos terroristas) ser dia de feira. Tendo resolvido pernoitar no Porto, o repórter chegou a Braga a meio da manhã verificando então que os provocadores haviam já desencadeado as agressões e que o Centro de Trabalho (onde se encontravam numerosos militantes) estava já cercado.
Apedrejamentos e tentativas de fogo posto sucederam-se ao longo do dia, tendo – de forma equívoca nunca inteiramente esclarecida – os defensores do Centro acabado por ser retirados por uma força militar que deixou o edifício entregue aos fascistas que completamente o destruíram e incendiaram.
Tomado pelos provocadores como um repórter que lhes era favorável, o fotógrafo do «Avante!» pôde assim obter ao longo do dia as mais extraordinárias imagens da violência fascista à solta, muitas das quais foram publicadas na edição seguinte do «Avante!», a 14 de Agosto.
Para essa mesma quinta-feira, a Direcção da Organização Regional de Lisboa convocara para o hoje Pavilhão Carlos Lopes um comício de solidariedade com os camaradas das organizações atingidas pelo terrorismo e de exigência de medidas de salvaguarda da ordem democrática.
Na redacção do «Avante!» decidimos montar num dos átrios do Pavilhão uma exposição com ampliações das fotos de Braga, de que só uma pequena parte havia sido publicada no jornal. Feitas as ampliações, colocou-se o problema das legendas – que acabou a ser um duplo problema...
A questão era que as imagens tinham uma força tal que qualquer palavra, qualquer frase parecia estar ali a mais. Contudo...
Lembrámo-nos então, telefonou-se ao Zé Carlos para a Espiral, agência de publicidade onde trabalhava, e dissemos-lhe do problema: «Não serias capaz de fazer aí qualquer coisa, uns versos com força, isto não há legendas que resolvam isto...». «Esperem lá um bocado que eu já ligo.»
Meia hora depois o telefone tocava e ouvia-se o vozeirão do outro lado: «Então vejam lá se esta coisa serve.»
Era A Bandeira Comunista. Copiada ao telefone, dactilografada e ampliada, iniciou nessa noite de luta um caminho que não findou jamais.

A bandeira comunista

Foi como se não bastasse
tudo quanto nos fizeram
como se não lhes chegasse
todo o sangue que beberam
como se o ódio fartasse
apenas os que sofreram
como se a luta de classe
não fosse dos que a moveram.

Foi como se as mãos partidas
ou as unhas arrancadas
fossem outras tantas vidas
outra vez incendiadas.

À voz de anticomunista
o patrão surgiu de novo
e com a miséria à vista
tentou dividir o povo.

E falou à multidão
tal como estava previsto
usando sem ter razão
a falsa ideia de Cristo.

Pois quando o povo é cristão
também luta a nosso lado
nós repartimos o pão
não temos o pão guardado.

Por isso quando os burgueses
nos quiserem destruir
encontram os portugueses
que souberam resistir.

E a cada novo assalto
cada escalada fascista
subirá sempre mais alto
a bandeira comunista.

Monday, January 05, 2009

intifada

Falo-te de um mundo onde as mais incríveis atrocidades se cometem na impunidade. Falo-te de um paraíso há muito caído, onde homens receberem outros em sua própria terra. Terra sagrada, de tanto sangue por lá derramado, para a que deus virou as costas há muito.

Pensa num bom punhado de gente, que vê parte do seu país cedido, do seu chão entregue, da sua terra dada a outro punhado de gente, vítimas ambos das dificuldades mais áridas que possamos, eu e tu, imaginar. Uns sacrificados à loucura e à ganância, bodes expiatórios do capitalismo, chacinados, queimados, gaseados; outros vivendo sufocados pelas guerras mais antigas da história, no deserto das emoções dos países ricos, vezes sem conta reconstruíndo o seu próprio país.

Imagina um povo que aceita um Estado plantado no seu solo, que decide partilhar a terra com quem dela precisa e sempre a procurou. Um povo que recebe dentro do seu país, a pátria ensanguentada de um povo desterrado.

Imagina que a paz foi sacrificada em todas as cidades, em todos os altares, porque quem chegou de novo quis mais, quis em nome da sua bíblia de sangue e violência, ter a terra dos outros, não em harmonia, mas em absoluta hegemonia. Imagina que o teu convidado, te fica com a casa. Parece um mundo absurdo, um mundo diferente. Mas é este.

Imagina que além de te empurrar para fora da tua terra, sobre ela avança o seu domínio e que onde chega leva uma mão de aço, de tanques, de canhões, de desespero e agonia que mata, esmaga, viola, condena. Imagina que além de te tirarem a terra, te matam a família, desfazem a cara do teu pai com uma coronha, violam a tua mãe. Imagina que depois voltam e humilham-te à porta da tua própria casa, que te espancam, cospem e roubam. Imagina que quando encontras a tua mulher, ela está em sangue numa esquina esperando a morte porque um morteiro desfez a escola onde ela trabalhava. Imagina que os teus filhos devem ajoelhar-se diariamente ao invasor da tua terra para poderem deslocar-se entre casa e escola. Imagina que a tua lei, a lei do teu país, que construíste a passo e passo, foi esventrada pelas balas dos impérios poderosos que te olham como um animal, um animal pronto a sacrificar, a entrar nos rituais dos novos holocaustos purificadores, que uma qualquer bíblia escrita em nome de um deus desaparecido, assim ordenou. Bíblia da miséria, do desgosto, bíblia da ganância, da usurpação, bíblia do imperialismo.

Imagina que tudo isso se passa na tua terra. Não hoje. Mas todos os dias desde que acordaste. Não olharias de forma diferente para cada pedra que esvoaça furiosa contra os canhões?