Thursday, September 29, 2005

Quem humilha quem?

Prestes a ir almoçar, decido vir dar de comer ao meu blog.
Pena que a minha capacidade de análise sobre o mundo real esteja neste momento tão reduzida, que pouco fica além da raiva, de alguma ira até.

É vê-los no plenário da Assembleia da República a fazerem de tudo para nos enganar... Novamente a Interrupção Voluntária da Gravidez. Desta feita, o PS até alterou as regras de funcionamento da Assembleia da República para voltar à carga com o disparatado projecto de referendo.

1. Será que o aborto é matéria referendável? Exactamente por ser uma questão eminentemente ética, julgo que não. Claro que essencialmente é um assunto que se prende com a saúde pública e, como tal, deve ser resolvido com toda a seriedade pelos políticos que foram eleitos para dar resposta aos diversos problemas, dos políticos e económicos aos sociais.
O aborto não é um tema referendável. Imaginameos um país em que 99% da população é contra o aborto. Isso não retira ainda assim a legitimidade aos outros 1% para serem a favor. E sendo que se trata de uma questão que também se coloca no plano ético, não se aplica linearmente a vontade da maioria. Trata-se de garantir que, não importa quantas, as mulheres possam ser tratadas com dignidade na sua própria terra, sem necessitarem ser ricas, quando tomam uma das decisões mais difíceis das suas vidas. A ética não pode sobrepor-se às reais e diversas condições e necessidades da população. Além disso, ninguém tem a liberdade de impor os seus valores morais a outra pessoa.

2. A despenalização do aborto devia ter sido há muito levada a cabo na Assembleia da República. Mas desde sempre, o PS tem feito o jogo da direita. O PS é um partido extremamente comprometido, impregnado de lobbys e extremamente contaminado por ideais religiosos. O PS, no entanto, não pode escamotear um problema com a dimensão social como o aborto clandestino. Está na corda bamba. O PS não quer assumir, falta-lhe a coragem política, a responsabilidade pela despenalização da IVG. Convocando um referendo, liberta-se dessa responsabilidade.

3. O bloco de esquerda, novato partido velho, entra agora também em cena pelo referendo. Na verdade, este partido está-se borrifando para o resultado do referendo. No entanto, ninguém negará que um referendo ao aborto será terreno fértil para os protagonismos do Bloco de Esquerda. Eles que, há tão pouco tempo que entraram na Assembleia da República e são vistos como os grandes defensores das mulheres pela comunicação social dominante. Claro, o PCP, que desde sempre tem defendido a despenalização da IVG não tem páginas nos jornais.
Mas vejamos: para o bloco, pouco importando o resultado do referendo, a própria convocação de um, e particularmente o período de campanha que será dinamizado em torno do referendo são tudo quanto o bloco precisa para aparecer como o paladino da despenalização. Aliás, assim tem sido ao longo do tempo. Tempo de antena vale milhões na política. Resolver esta matéria na Assembleia da República seria alinhar pelo diapasão decrépito dos marxistas-leninistas e não traria protagonismos a ninguém... ora com isso não se compadece o grandioso e juvenil berloque.

4. Para quando resolver este problema? O partido socialista tem um discurso progressista. Afirma-se pela alteração da lei, mas diz que assumiu um compromisso com a população portuguesa no seu programa eleitoral. Temos pena que seja este o único compromisso que esteja tão empenhado em cumprir. O não-aumento de impostos, a criação de 150 000 postos de trabalho, o investimento na educação e acção social escolar, o investimento em desenvolvimento e investigação, enfim, todos esses compromissos que, juntos acabariam por definir o nível de vida da população portuguesa foram para o lixo em 6 meses. Logo este famigerado compromisso que mais é falta de coragem para assumir um compromisso é o único que este governo continua a assumir, quando poderia resolver o problema sem malabarismos.

5. Brademos aos céus! o berloque diz que se não for desta que há referendo, a Assembleia da República deve legislar!!! Então? em que ficamos? pena que tenham demorado 6 meses, dois referendos falhados, quatro intervenções de cada partido por duas vezes, centenas de mulheres humilhadas pelo aborto clandestino e 2 mulheres julgadas para perceberem isso.

Monday, September 12, 2005

Lixo, falsidade, americanização

Com um forte contributo de um partido que se diz de esquerda, e uma ajudinha de um grupelho social-democrata, a forma de fazer política vai-se degradando a ritmo acelerado nesta nossa terrinha.

Já as últimas eleições legislativas foram levadas a cabo num ambiente de total desprezo pelos eleitores. Encenações de mau gosto, debates com semáforos à boa maneira americana, cartazes de mensagens vãs e caras com sorrisos amarelos.

O semáforo, não sei o que terá trazido de novo, àparte claro uma luz vermelha para Portugal, agora parado à espera que passe o comboio do desenvolvimento, para depois seguir o seu triste caminho de degradação, rumo ao monte de esterco deixado pela política espectáculo.

Os slogans já não dizem nada, a cara mais bonita vence eleições. Já que a política é igual, distinguem-se as duas maiores forças partidárias pelas caras que melhor ficam em cartaz do tamanho do mundo. A televisão lá vai garantindo que só duas candidaturas existem para tudo. Duas para primeiro-ministro, duas para as autárquicas, duas para as Presidenciais. À partida, não existe qualquer igualdade de tratamento das candidaturas. Há os dois que podem ganhar eleições e os outros...

Realmente não sei como papamos tudo isto sem questionar. Ou talvez questionemos... Talvez seja por isso que quase metade da população se abstém. Muitos são já os que se negam a participar em tal palhaçada montada pela tv e pelos dois mais votados partidos. Depois há ainda os outros, os da política espectáculo de esquerda. Os que não tendo com quem contar, contam com a sua própria ridicularidade para irem angariando uns votos ali na linha de Sintra.

Serve o presente post, essencialmente, para alertar para o facto de que a bipolarização pártidária se acentua com particular responsabilidade da Comunicação Social. Esquecemos o que foram os tempos do Cavaco? A porrada sobre as manifestações, o défice orçamental de oito por cento, a prepotência total, a diminuição absurda do nível de vida, a destruição do aparelho produtivo, os atentados contra os direitos dos trabalhadores? Esquecemos isso?

A Comunicação Social faz por esquecer e mostra-nos agora esse esqueleto fossilizado do Aníbal como um salvador da pátria, um douto e reconhecido entendido em matéria financeira e económica. Esquecemos que o próprio povo português optou por o mandar embora, rejeitando democraticamente a sua infeliz linhagem política. Esse fóssil da política foi derrotado. Por mais que tentem branquear o passado.

Não há forma de apagar os dias difíceis dos portugueses que foram passados, mercê das políticas desse senhor enquanto foi primeiro-ministro.

Estamos perante uma magnífica operação de propaganda. A comunicação social dominante, tudo faz para engrandecer a figura do Aníbal. Recorrentemente coloca à esquerda a pergunta "quando desistirá o seu candidato para apoiar Mário Soares?". Esta pergunta contém em si uma sobrevalorização do Aníbal. Parece que existe um titã de direita que os pequenitos da esquerda têm de derrotar, desistindo das suas candidaturas.
Um titã? Um dos homens mais odiados pelo povo na área política...

Porque não perguntam a Mário Soares se está disponível para desistir da sua candidatura em favor de Jerónimo de Sousa? Tudo está decidido nas cabecinhas da Comunicação Social. Aposta: fazer vencer a direita, atentar contra o regime democrático.

Friday, September 09, 2005

Presidencial Vergonha

Eis que nós, portugueses voltamos a dar provas de que merecemos os epítetos de povo sofredor.
A nossa sina, antes que alguma manhã de nevoeiro nos traga uma surpresa esperada há muito, será fustigada por vendavais de toda a ordem.

Eis que somos novamente postos à prova pelo Concílio dos Deuses. Marte não descansa o seu insaciável ódio ao nosso mártir povo. Pena que não venham hoje sereias, nem alcancemos ilhas de amor, para mitigar tão triste fado.

Mas tal castigo persegue-nos há muito. Por Júpiter!
Que nos reservará ainda o destino? Que fadigas e tormentas teremos ainda de dobrar antes do nascimento do nosso longínquo quinto império?

Nos entretantos, muitos vão reclamando a armadura sebastiânica. São figuras que já deviam viver nos antigos livros, remetidos aos negros capítulos da História sofrida a que, na verdade, pertencem.

Ah... trágicas estórias as da nossa Ocidental Praia Lusitana! Valha-nos um qualquer Deus menos fatídico, nem que seja um daqueles pequenos, menos famosos... ou mesmo um semi-deus que nos acuda. Se não há Neptuno, nem Júpiter, se nem Marte nos acode e se Vénus anda ocupada a tentar lembrar o amor a quem o esqueceu, contantavamo-nos agora com a ajuda de Baco, ou mesmo Dionísio mais arcaico, caso Baco esteja ocupado. (À falta deles, enviem-nos ao menos umas bacantes que nos dilacerem a carne e o sofrimento.)

Mas porquê, esta trágica invocação do Concílio há muito extinto, como todos sabemos, para ser substituído, curiosamente, num Concílio?

É simples. Não bastava sermos o país que orgulhosamente ocupa os primeiros lugares de tudo quanto é negativo e o último de tudo quanto é positivo no seio da União Europeia? Não, não bastava... Não basta também sermos um país corroído pela corrupção em larga escala, um país de cruzamentos promíscuos de interesses, um país de muitos pobres e poucos ricos. Nada disso basta. Não basta já vivermos a empobrecer enquanto trabalhamos, não basta ainda viver à míngua para comprar o pão e pôr a comida na mesa para os miúdos. Não, nada disso é ainda suficiente para que paguemos o pecado de sermos Portugueses. Há-que fazer jus à nossa sina.

Enquanto esperamos a manhã submersa em nevoeiro, outros há que vão fazendo fumo.
Capas de revista, de jornais, doutores da sapiência divina e paladinos da razão que já mais ninguém tem. São eles quem agora, a juntar a tudo, nos vem lembrar que estamos podres por dentro. Que não há decência contemporânea e outro remédio não nos resta senão o de remexer nos baús bolorentos do sótão político empoeirado.

Venham eles, que não estão cansados de governar o nosso país. Venham eles que já ninguém lembra. Aqueles que, à espreita, nunca deixaram de querer ser a nossa consciência. E nós, perdoai-nos Júpiter, Marte, Baco, Vénus, Neptuno... Devolvei-nos a memória e o discernimento que em má-hora no-los levastes. Não digo que não os tenhamos, mas tão apagados que estão, oh Deuses!

Venham eles de novo, em armaduras plásticas brilhantes e nevoeiros fingidos. Guerreiros contra a senescência e a idade, que talvez não mereçamos mais nem melhor.

Venham que o povo saberá, a seu tempo, pedir-vos as contas que lhe devem.
As soluções estão à vista. Contrariar os Deuses e seu concílio nunca foi fácil, e certamente, pagaremos caro por o fazer novamente. Mas a História do nosso país tem ainda muito que escrever. Em boa hora saberemos virar o rumo da nossa barca, contra soares, cavacos e outros parasitas arcaico-modernos, rumo a um futuro de vitórias. Um futuro a que não tenhamos vontade de chamar império, porque nele não subjugaremos ninguém.

Razão suba ao concílio extinto do Olympo, ou aos céus do Senhor pois o destino a que nos sujeitam em breve será ruína. Sobre a ruína, edificaremos um Portugal independente de vossos estigmas e ditames. Independente de vossos famigerados querubins, musas ou semi-deuses.

Não há deus que nos amarre para sempre, há vida para além de Soares e Cavaco. Há povo para além das ilustres casas e palácios. Há economia para além das grandes corporações. Há política para além do PS e PSD. Há política nas nossas mãos. Há Partido Comunista!


Deixo o post histórico-científico para o mamutemorto para ele dar uso ao que anda a estudar.

Wednesday, September 07, 2005

Tempo mau para lirismos

Eu bem sei: só o feliz
É que agrada.
Gosta-se de ouvir
A sua voz.
A sua face é bela.
A árvore aleijada no pátio
Mostra que o terreno é mau, mas
Os que passam chamam-lhe aleijada
Com razão
Os barcos verdes e as velas alegres do Sund
Não as vejo.
De tudo
Só vejo a rede rasgada dos pescadores
Porque é que eu só falo da lavradeira
De quarenta anos que anda toda torcida?
Os peitos das moças
São quentes como dantes
Na minha mão uma rima
Parecer-me-ia insolência
Dentro de mim lutam
O entusiasmo pela macieira em flor
E o horror dos discursos do pintor de tabuletas
Mas só o segundo
Me força a sentar-me à mesa.


Bertolt Brecht

Thursday, September 01, 2005

A caverna invertida do idealismo

Ontem fui ao teatro aqui em Setúbal, no INATEL.
Assistir a uma peça levada a cena no âmbito do Festival de Setúbal, pelo Fonte-Nova Teatro Estúdio.

Gostei da peça, gostei do texto, gostei dos dois actores que, impecavelmente, deram vida a duas personagens de loucura.

No entanto, aquela peça deixou-me a pensar. Não conheço o dramaturgo, nem tenho certeza quanto à ideia central do texto. De qualquer das formas... Um intelectual profundamente desenraizado da realidade, marcadamente idealista, teimava em comprovar a tese de que o Homem que é escravo da vida, não poderá nunca deixar de o ser. O seu companheiro de quarto, um operário da construção civil, operador de martelo pneumático há três anos consecutivos, é aquilo a que comummente chamamos um idiota.

A ideia do intelectual era provar que o operário era um escravo da sua própria vontade, da vontade de arrecadar mais dinheiro. Para o intelectual, o sistema não desempenhava um papel. O capitalismo teria escravos por vontade própria de cada um, não podendo escravizar aqueles que não se seduzem pelo incremento da sua riqueza. O operário, por seu lado, nem sequer entendia muito bem o conceito de liberdade. Não compreendia como podia ele ser escravo da sua própria vontade.

O intelectual queria escrever um livro em que publicaria a mais absurda tese do mundo: os escravos sê-lo-ão para sempre, por sua própria vontade. O operário queria ganhar mais dinheiro e por isso trabalhava 12 horas por dia agarrado a um martelo pneumático, como um animal de carga, sem pensar, sem questionar. Ambos assumiam que viviam numa democracia. O intelectual era livre porque estava acima, como que num pódio, donde podia avistar os operários escravos lá em baixo, em carreiros como formigas.

A determinada altura, o operário, numa crise de fúria, rasga todo o seu dinheiro. O intelectual despedaça a sua tese. Para ele, o operário não podia ter feito aquilo. Para ele, o operário libertou-se da escravidão naquele exacto momento. Isso destruiu-lhe todo o raciocínio que edificara ao longo daqueles tempos.

O idealismo abundava em ambas as personagens, mas a tese foi rasgada. Ambos não eram mais que um delírio, as suas próprias sombras na parede da caverna. A vida, lá fora, continuava. O operário não deixou, obviamente de o ser. O intelectual chorou noite fora.

post scriptum: operário - ser humano que intervém directamente no processo de transformação da matéria prima, é o proletário que opera maquinaria, produzindo directamente mais-valia para um patrão.
proletário: o ser humano que não detém qualquer outra fonte de rendimento para além da venda da sua força de trabalho, a troco da exploração da mais-valia que, directa ou indirectamente, produz.
escravo: ser humano que é propriedade de um senhor de terras, a sua subsistência é-lhe garantida, pois disso depende a qualidade do seu trabalho. O escravo não é livre, não recebe salário.

post post scriptum: como é fácil perceber, existe uma diferença abissal entre escravo e operário, eliminá-la é entrar na esfera da pura metafísica. O escravo tem garantida a sua existência, enquanto que o proletário e o operário têm-na dependente da oferta de trabalho. Regra geral, tanto a um quanto a outros é atribuído o mínimo necessário para a subsistência biológica, um sobre a forma de géneros, outros em salário. O escravo não é dono de si, constitui propriedade de outrém. O operário não é propriedade de ninguém. Não queremos, com isto, dizer que a vida do escravo é melhor que a de um operário. Mas, socialmente vendo, a classe dos escravos teria uma garantia de vida, enquanto o operariado não a tem. O operariado pode ser vagueante e alternante, enquanto que os escravos não. O patronato pode bem dispensar um operário, pode contratar outro imediatamente de seguida por menor salário. O senhor de terras não tinha qualquer interesse em mandar embora um escravo, seria dinheiro perdido, pois teria de comprar outro. Enquanto que os senhores de terras teriam conveniência no bem-estar dos escravos, na sua saúde e na manutenção do seu valor, o patronato actual, utiliza o operariado e o proletariado, no geral, como um "escravo" de aluguer.