Ontem fui ao teatro aqui em Setúbal, no INATEL.
Assistir a uma peça levada a cena no âmbito do Festival de Setúbal, pelo Fonte-Nova Teatro Estúdio.
Gostei da peça, gostei do texto, gostei dos dois actores que, impecavelmente, deram vida a duas personagens de loucura.
No entanto, aquela peça deixou-me a pensar. Não conheço o dramaturgo, nem tenho certeza quanto à ideia central do texto. De qualquer das formas... Um intelectual profundamente desenraizado da realidade, marcadamente idealista, teimava em comprovar a tese de que o Homem que é escravo da vida, não poderá nunca deixar de o ser. O seu companheiro de quarto, um operário da construção civil, operador de martelo pneumático há três anos consecutivos, é aquilo a que comummente chamamos um idiota.
A ideia do intelectual era provar que o operário era um escravo da sua própria vontade, da vontade de arrecadar mais dinheiro. Para o intelectual, o sistema não desempenhava um papel. O capitalismo teria escravos por vontade própria de cada um, não podendo escravizar aqueles que não se seduzem pelo incremento da sua riqueza. O operário, por seu lado, nem sequer entendia muito bem o conceito de liberdade. Não compreendia como podia ele ser escravo da sua própria vontade.
O intelectual queria escrever um livro em que publicaria a mais absurda tese do mundo: os escravos sê-lo-ão para sempre, por sua própria vontade. O operário queria ganhar mais dinheiro e por isso trabalhava 12 horas por dia agarrado a um martelo pneumático, como um animal de carga, sem pensar, sem questionar. Ambos assumiam que viviam numa democracia. O intelectual era livre porque estava acima, como que num pódio, donde podia avistar os operários escravos lá em baixo, em carreiros como formigas.
A determinada altura, o operário, numa crise de fúria, rasga todo o seu dinheiro. O intelectual despedaça a sua tese. Para ele, o operário não podia ter feito aquilo. Para ele, o operário libertou-se da escravidão naquele exacto momento. Isso destruiu-lhe todo o raciocínio que edificara ao longo daqueles tempos.
O idealismo abundava em ambas as personagens, mas a tese foi rasgada. Ambos não eram mais que um delírio, as suas próprias sombras na parede da caverna. A vida, lá fora, continuava. O operário não deixou, obviamente de o ser. O intelectual chorou noite fora.
post scriptum: operário - ser humano que intervém directamente no processo de transformação da matéria prima, é o proletário que opera maquinaria, produzindo directamente mais-valia para um patrão.
proletário: o ser humano que não detém qualquer outra fonte de rendimento para além da venda da sua força de trabalho, a troco da exploração da mais-valia que, directa ou indirectamente, produz.
escravo: ser humano que é propriedade de um senhor de terras, a sua subsistência é-lhe garantida, pois disso depende a qualidade do seu trabalho. O escravo não é livre, não recebe salário.
post post scriptum: como é fácil perceber, existe uma diferença abissal entre escravo e operário, eliminá-la é entrar na esfera da pura metafísica. O escravo tem garantida a sua existência, enquanto que o proletário e o operário têm-na dependente da oferta de trabalho. Regra geral, tanto a um quanto a outros é atribuído o mínimo necessário para a subsistência biológica, um sobre a forma de géneros, outros em salário. O escravo não é dono de si, constitui propriedade de outrém. O operário não é propriedade de ninguém. Não queremos, com isto, dizer que a vida do escravo é melhor que a de um operário. Mas, socialmente vendo, a classe dos escravos teria uma garantia de vida, enquanto o operariado não a tem. O operariado pode ser vagueante e alternante, enquanto que os escravos não. O patronato pode bem dispensar um operário, pode contratar outro imediatamente de seguida por menor salário. O senhor de terras não tinha qualquer interesse em mandar embora um escravo, seria dinheiro perdido, pois teria de comprar outro. Enquanto que os senhores de terras teriam conveniência no bem-estar dos escravos, na sua saúde e na manutenção do seu valor, o patronato actual, utiliza o operariado e o proletariado, no geral, como um "escravo" de aluguer.
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