Tuesday, October 23, 2007

O papel social da comunicação social.

Todos os dias, pelo menos durante a semana, os canais portugueses, com a excepção que todos agradecemos (mas que poucos realmente vemos) do canal 2 da RTP, encetam uma autêntica disputa pelo troféu da lamechiche matinal. Sinceramente, não sei se conheço todos os programas, mas há pelo menos 3.

O que significam estes programas que ocupam as manhãs dos dias úteis na íntegra, com programas de cerca de 3 a 4 horas? Numa altura em que o segundo televisivo vale muito dinheiro, mas também muito mais que dinheiro, que significam estes programas? Qualquer programa que ocupe entre 15 a 20 horas semanais nas nossas ondas hertzianas, em sinal aberto, tem de representar uma sério ganho, tem de ter um qualquer retorno bastante significativo.

Sim, é fácil perceber que estes programas são essencialmente destinados a reformados, pensionistas, idosos e a quem possa trabalhar em casa e que, utilizam um público fragilizado para rentabilizar e explorar a dor alheia. Dirigidos a um público que vive muitas vezes na solidão, ou mesmo no sistemático vai-vem aos serviços de saúde, com dores, com problemas sociais e económicos, estes programas usam como personagens-tipo pessoas que, por não haver serviço que lhes seja prestado, acabam por se prestar a esse serviço. Cada um destes programas é um desfile de "coitadinhos", de "aleijadinhos", "sozinhos", "toxicodependentezinhos", "pobrezinhos" que mete dó ao mais empedernido dos corações.

A receita é fácil: explora-se a dor do televisionado como forma de explorar a dor do telespectador. A velhota sozinha em casa, chorando o marido defunto, os filhos trabalhando longe e que raramente vê, antes de se chegar à escada para saber as novas do prédio, toma atentamente a sua dose tristeza, conformismo e resignação, vertendo a lágrima cristã perante o cenário heróico da vida daquela senhora que, na tv, mostra como é possível superar uma séria doença degenerativa, recorrendo à caridade por e-mail, posters nos cafés e chegando mesmo à tv.

A Júlia entrega-lhe a cadeira de rodas paga pelos patrocinadores do programa e ainda recebe chamadas de casa dos telespectadores que, chorando na sua bondade, abençoam a senhora risonha na sua nova cadeira de rodas.


Qual é o papel destes programas, então? além de serem, provavelmente, uma óptima fonte de receitas para as empresas que detêm os canais que os transmitem. Um fonte de receitas tão negra e tão decadente quanto uma igreja. Tal como qualquer igreja, estes programas recolhem fé e dinheiro por entre a dor e a desesperança. Tal como qualquer igreja, estes programas fomentam a apatia e o conformismo, o raciocínio linear e a caridade na sua forma mais patética.

Mas estes programas cumprem um outro papel. Ao afirmarem-se como defensores da causa social dos pobres, dos desfavorecidos, dos coitados, dos abandonados, estes programas avançam numa linha ofensiva no campo das ideias e dos comportamentos. Há uma questão que nunca é levantada nestes programas e essa questão é deliberada e estrategicamente omitida: o papel do Estado perante as diversas situações que ali passam como inevitabilidades.

Ou seja, estes programas não estão orientados apenas para o "money-making" pela exploração da dor e da miséria do telespectador e do convidado. Estão também orientados para a manipluação ideológica da consciência individual e colectiva. Uma importante função destes programas matinais é portanto a da criação generalizada da ideia da desgraça, mostrando um país perdido nas chagas da tristeza e flagelado pelos maus costumes, onde só quem transporta a fé, invidualismo e garra suficiente no seu coração, ultrapassará o purgatório nacional.
Cumpre o papel de dinamizar a ofensiva ideológica junto de camadas desfavorecidas da população. A ideia de que o Estado não tem um papel na prevenção de casos como os que ali são mostrados, de que perante eles o Estado não tem um papel e de que o próprio sistema que os gerou se encarregará deles, assim tenham os indivíduos força para disputar o seu apoio neste mundo cruel. A comunicação social aparece como uma extensão do capital que cumpre um papel do estado. não importa que ofereça uma cadeira de rodas por semana, quando seriam necessárias milhares. não importa que mostre apenas os casos dos toxicodependentes recuperados (mas ainda assim sem dentes paa serem suficientemente merecedores de compaixão) quando milhares continuam a carecer de cuidados de saúde e de ajuda no tratamento e mais ainda quando milhões de jovens portugueses sejam expostos e convidados ao consumo sem que exista uma séria política de prevenção. Nada disso importa. Importa apenas que se crie a ideia de que não há nada a fazer, a não ser batalhar muito pela esmola, para que os canais da comunicação social dos ricos possam olhar pelos pobres quando bem-comportados.

1 comment:

Debaixo do Bulcão said...

Concordo com o essencial do que aqui foi dito. Mas atenção: o que se diz dos programas "da manhã" pode aplicar-se também, sem grandes alterações aos "da tarde". Aliás, "a Júlia" referida no texto julgo que será a Júlia Pinheiro e, nesse caso, estamos a falar, precisamente, de um programa "da tarde" da TVI.
Por outro lado (é uma opinião pessoal) o programa da manhã da RTP tem, ainda assim, entrevistas (lembro-me, por exemplo, de uma recente, com a Vanessa Fernandes e o Venceslau Fernandes) e informação interessante (sobre temas de saúde, por exemplo), pelo que (julgo eu) não é exactamente igual aos outros dois.

Cumprimentos!

António Vitorino