Tuesday, January 09, 2007

Apocalypto

Entre mim e a habitual crítica de cinema desenha-se um fosso irrevogável. De facto, tenho apanhado as maiores desilusões quando rumo confiante a uma sala de cinema para ver um filme apadrinhado pela crítica e de lá volto incrédulo com tamanho desastre cinematográfico. Ora são argumentos intragáveis, ora são filmes recauchutados, ora são efeitos especiais que fazem suporte a elencos miseráveis e por aí fora.

O cinema de entretenimento puro e simples tem todo o sentido e agradeço o facto de existir alguém que ainda o faça. Da comédia aos thrillers ou mesmo aos filmes de acção desenfreada lá vão saindo bons momentos de descontracção. Pena que, na generalidade, não seja assim.

Chegou às nossas salas de cinema um filme que recebeu as piores considerações dos críticos de cinema da praça. Apocalypto, de Mel gibson. Um filme soberbo. Um filme desfeito pela crítica acéfala.

Aconselho vivamente o filme de Mel Gibson. Embora não conheça o senhor, reconheço-lhe uma aguçada vontade e o um olhar diferente dos dominantes. Apocalypto passa-se no período decadente do império Maya (a que se costuma chamar civilização) e tem, por entre diversas cenas de violência aparentemente gratuita, a virtude de denunciar o que são os pilares dos impérios.

Gibson transporta-nos, apoiado num elenco fenomenal e numa reconstrução histórica e ambiental notável, com excelente cenografia, guarda-roupa e maquilhagem, para um mundo perdido, onde os nossos sentimentos são recorrentemente sobressaltados. Claro está que para os devoradores-de-pipocas que povoam as salas de cinema que por aí se espalham, este filme é mais um documentário enfadonho do que propriamente um filme. De facto, como outros, não se encaixa no estereótipo de filme de entretenimento e, atrevo-me a dizer que não é esse o seu objectivo.

A violência que muitos reputam de gratuita é um dos pilares de um filme que nos quer envolver, que nos quer mexer com os instintos e com os sentimentos. O filme, com sequências geniais e com um realismo extremo, mostra-nos a hierarquização inevitável dos impérios e as relações entre os seres humanos, criadas pela organização imperial de uma sociedade.

Uma aristocracia moralmente decadente, um clero balofo de apoio ao sistema de poder, o trabalho escrevo e a superioridade racial são bem mostrados como instrumentos ao serviço de um império onde o lucro e a acumulação de riqueza já eram o objectivo. A concentração em grandes cidades a um ritmo desfasado da capacidade de dar respostas no plano do ordenamento, da higiene e da segurança, encaminha uma povoação inteira para a doença e o definhamento, sustentando apenas uma pequena classe aristocrata com a ajuda de um clero que detinha o conhecimento científico em regime de exclusividade.

É um filme perturbante. É uma experiência recomendável. Desfazermo-nos da expectativa e usufruir da imagem e do som que este filme nos traz, não tanto enquanto um conto importante, mas enquanto estória e história pode surpreender muitos. É um pouco como um quadro… ninguém pede a um quadro que tenha um bom enredo, que conte uma estória bela… este filme é um quadro de duas horas e alguns minutos que retrata bem uma paisagem social, especulativa ou não.

2 comments:

FeminineMystique said...

desculpa não ser este um comentário ao teu post. ainda não vi o filme (serve de desculpa?)...

mas não queria de deixar de publicitar aqui a Plataforma Ciências pelo Sim: http://www.cienciaspelosim.co.nr

miguel said...

e fizeste tu muito bem!