Wednesday, June 02, 2010

o capitalismo cai de podre?

Um economista, disse-me o Jorge Machado, profetizava o fim da globalização por força da escalada dos custos dos transportes, relacionada com o aumento do preço dos combustíveis. Ele estava a ler um jornal de negócios ou um suplemento de economia e contou-me isso. Confesso que nao fui ler o referido artigo. No entanto, há duas ou três questões que julgo úteis para analisar ou tentar profetizar o que quer que seja e, principalmente, quando se trata de decretar o fim de alguma coisa. As análises lineares e simplistas já decretaram o fim do meu Partido milhares de vezes, incontáveis vezes, e até hoje nunca vingaram. Tal como decretaram o sucesso capitalista desmedido e o progresso imparável e inesgotável do neo-liberalismo. E até hoje a história nos vem provando o contrário.


Então o aumento dos preços dos combustíveis determinará directamente o fim da globalização? Qual globalização? O que é aliás, a globalização nos termos hoje praticada?

1. Há hoje mais reservas petrolíferas do que nunca e a tendência é para que continuem a aumentar.
2. O preço de exploração e os custos de produção energética descem a pique desde a revolução industrial.
3. A globalização hoje é essencialmente baseada na globalização de capitais.
4. O futuro não está escrito e muito menos aprisionado a tecnologias baseadas na queima de hidrocarbonetos, como tal, pode não ser estritamente relacionável a dinâmica do mercado mundial (financeiro ou material) com os custos finais do petróleo e derivados.

Partindo dessas questões há que fazer também uma abordagem política sobre o que representa a globalização actualmente e quais as suas implicações nas relações de classe e na acumulação de capitais. A globalização implica aumento da exploração da mão-de-obra, numa perspectiva capitalista. A globalização não assenta na livre circulação de bens e pessoas, antes na livre circulação de capitais e de exploração. Ou seja, na prática, a globalização capitalista é a materialização das leis mais elementares do capitalismo. No entanto, ligar tão intimamente os custos económicos do petróleo ao fim do transporte de mercadorias assenta num erro de análise da cena política actual e parece ignorar os confrontos de classe que actualmente definem o curso da história. Ora, dizia-se que o capitalismo chegará à conclusão de que o fim do transporte de mercadorias é economicamente mais viável e lucrativo do que continuar a assumir os custos do petróleo e o seu encarecimento.


Não me parece ajustado o raciocínio por alguns motivos correlacionados.

i. o capitalismo não se sacrifica a si próprio, ou melhor, a classe dominante, sendo competitiva, é no essencial, solidária.

ii. a grande divisão política que determina o sucesso de um empreendimento capitalista não está de igual forma colocada sobre todos os factores de produção. A força do capital e dirigida especificamente para a desvalorização do factor trabalho e não para a desvalorização dos restantes custos dos factores de produção, sendo que, no essencial, eles são propriedade da classe dominante. Ou seja, é o factor trabalho que tende a ser desvalorizado na medida directa da valorização e encarecimento dos restantes custos de produção.

iii. para o capitalismo, o encarecimento dos custos de transporte serão, não uma limitação á globalização capitalista mas um estímulo à sua intensificação para aumentar as taxas de exploração.

iv. o sistema capitalista é um sistema racional do ponto de vista dos seus objectivos. Esses objectivos, porém, não são racionais do ponto de vista da sustentabilidade das actividades humanas e da subsistência da espécie. Por isso mesmo, a delapidação dos recursos e a intensificação da exploração da mão-de-obra poderão ser resultados de uma estratégia insustentável, mas não será por isso que o sistema capitalista abdicará dela.

v. é óbvio que o capitalismo poderá proceder a alterações na configuração da sua arquitectura global e que poderá arriscar a globalização a bem da sua própria sustentação. Isso não ocorrerá, no entanto, por força de factores que ele próprio controle. Porque a globalização da produção e a distribuição das mercadorias são o garante da capacidade de exploração por parte dos grandes grupos e corporações.

vi. os custos do petróleo atingem hoje o preço que atingem precisamente pelo valor objectivo que tem essa matéria-prima na economia global, mas esse preço é essencialmente proporcional, não ao aumento dos custos de mão-de-obra, nem dos custos de exploração geológica, mas essencialmente ao crescimento dos lucros. É hoje mais barata a produção de um kW do que sempre, no entanto, ela é paga pelo consumidor a preços nunca antes vistos. Da mesma forma, é hoje mais barata a extracção de petróleo e gás natural do que em qualquer outro ponto da história. Em termos relativos, os custos de produção baixam genericamente junto dos grandes grupos económicos, enquanto aumentam junto de sectores médios e pequenos da economia, particularmente os produtivos porque também implicam mais consumos. No entanto é um facto que o petróleo é negociado cada vez mais acima.

vii. seria, no entanto, demasiado ingénuo pensar que o sistema capitalista não buscará e encontrará as próprias soluções técnicas e alternativas ao esgotamento dos combustíveis. Basta que para tal, se torne mais lucrativo buscar essa tecnologia do que continuar a utilizar os hidrocarbonetos e o oxigénio atmosférico.

Só mesmo a luta dos povos, dos trabalhadores organizados para a disputa e conquista do poder político, só mesmo o posicionamento do proletariado como classe dominante, poderá representar objectivamente a valorização do factor Trabalho, em detrimento dos restantes factores de produção. Fora dessa nova organização social e política, o trabalho será sempre o factor sacrificado para a manutenção dos circuitos capitalistas de acumulação. Só com a luta dos trabalhadores e a sua organização em Estado e em direcção política da sociedade será possível pôr fim à globalização capitalista para a substituir por uma globalização do bem-estar e dos direitos, assegurando a distribuição justa e solidária da riqueza produzida e o fim da acumulação capitalista.

3 comments:

jal said...

Também me parece que a globalização não acabará por decreto, por profecia ou pelo aumento dos custos dos transportes.

Sobre o teu post, com o qual estou plenamente de acordo, dois comentários:

Como dizes, no quadro do capitalismo, sendo este um sistema que acumula ou morre, «o trabalho será sempre o factor sacrificado para a manutenção dos circuitos capitalistas de acumulação».

Compreendo a tua afirmação de que «o capitalismo não se sacrifica a si próprio, ou melhor, a classe dominante, sendo competitiva, é no essencial, solidária».
No contexto em que a expões ela é verdadeira, pois é no plano dos interesses de classe que se cimentam as "amizades" e o grande capital há muito que descobriu que são muitos os interesses comuns que unem os seus elementos.
Mas, não deixa de ser verdade que o capitalismo se sacrifica a si próprio no sentido de que o sistema tem contradições internas profundas que conduzem à sua superação e que se revelam, como tu bem referes, na existência de classes antagónicas.


Abraço

filipe said...

Boa, útil e oportuna reflexão.
Um apontamento, passível de discussão, claro: a globalização - capitalista, do capital, do sistema, não há outra - constitui uma etapa "natural" no "desenvolvimento" do capitalismo em contexto mundial, tornando ilusórias essas teses do seu retorno a uma etapa anterior, dos nacionalismos económicos, dos desenvolvimentismos keynesianos, etc.
O capital, na sua marcha predadora, manobra, adapta-se, reconfigura-se, mas não anda para trás. Tal como a História...
Abraço.

Sérgio Ribeiro said...

Acho muito interessante a tua reflexão. É a de um homem a querer interpretar o fluir da história com base no que a histíria foi e é. Trats-se de uma "aula prática" de materialismo histórico. Há, no entanto, que estabelecer sempre a ligação entre as "aulas práticas" e as "aulas teóricas", não deixar que uma avance sem a outra ou que outra avance sem a uma. O teu exercício é excelente, apesar me parece que exige um mergulhar nos/em conceitos como exploração, imperialismo que a dita globalização, mesmo com o acrescento de capitalista esconde ou, de certo modo, distorce.

Olha... um abraço