No volume I desta pequena tese sobre o papel actual do parlamentarismo tentou, de alguma forma, recolocar na mesa e no meu raciocínio uma questão que não é suficientemente abordada, talvez desde o abrandamento da produção teórica do movimento operário e do movimento comunista internacional. Os grandes debates em torno desta matéria tomaram lugar nas Assembleias da Internacional Comunista, promovendo uma fértil troca de ideias entre os diversos representantes dos Partidos que a compunham.
A participação de comunistas no parlamentarismo encerra demasiados riscos e, portanto, a sua ponderação nunca será demasiada. O papel do parlamentarismo sustentado na chamada democracia representativa não é senão o de conciliação entre os interesses das classes. Claro que, do ponto de vista do keynesianismo, isso é o garante da sustentabilidade humanista do sistema capitalista. Não podemos, porém, esquecer que a representatividade partidária, logo de cada classe, pode não reflectir a verdadeira proporção social, económica e demográfica da dimensão de cada classe. O que, aliás, acontece na esmagadora maioria da vezes, já que este sistema é baseado na apresentação de candidaturas partidárias, cada uma movida pela força económica de que dispõe. Claro que essa força pode não ser exclusivamente sua. Por exemplo, um partido operário dispõe exclusivamente do trabalho militante e do contributo financeiro dos seus membros, enquanto que um partido burguês conta com o apoio dos grandes grupos económicos, com as pressões ideológicas do patronato e com o apoio da comunicação social dominante.
A negação do carácter de classe dos partidos burgueses foi apenas mais um ardil do capitalismo, inserido na campanha de camuflagem ideológica que tem sustentado o próprio sistema. A adaptação constante do capitalismo às condições de uma sociedade em evolução acelerada é admirável e o parlamentarismo, bem como as suas ramificações são uma expressão importante dessa adaptação. Facilmente constatamos que o capital apoia diferentes regimes em diferentes partes do globo. Essa é uma questão central.
Porque será o parlamentarismo burguês a vanguarda legislativa do patronato, se em muitos outros países não se verifica esse tipo de organização, não deixando, no entanto, de serem capitalistas ou base de apoio do capitalismo?
O capitalismo caracteriza-se, desde o cálculo do valor salarial até à forma de organização da sociedade, por uma economia de direitos populares notável, por uma absurda mas genial capacidade e vontade de obter lucro a partir do lucro, minimizando o custo do trabalho.
O nível de capacidade organizativa de um povo, principalmente das classes trabalhadoras está ligado às possibilidades de liberdade política desse povo. A tomada de consciência social e política estará ligada ao nível cultural e científico que esse povo adquiriu. O nível de reivindicação e de luta está ligado a ambas as premissas anteriores.
Em países capitalistas ou dominados por esse sistema económico que não se verifica a existência de um regime parlamentar, podem encontrar-se ditaduras militares, ditaduras religiosas, sultanatos, monarquias, oligarquias, regimes presidenciais e outras formas de exercício do poder político que não consistem na suposta conciliação de interesses. Claro que esse tipo de organização se observa essencialmente em países depauperados, com reduzida história revolucionária, com fracos movimentos comunistas ou sindicais de classe, com baixos níveis de escolaridade, cultura e ciência. Existem ainda os países em guerra, motivada essencialmente pela disputa do poder, muitas vezes entre diferentes facções do capitalismo.
Nesses países, o capitalismo com a sua testa de ferro imperial pode efectivamente ir quase tão longe quanto gostaria.
No entanto, o capital necessita também de diferenciar positivamente porções da população, para que exista escoamento do produto que produz a baixo-custo nos países chamados “em vias de desenvolvimento” ou “terceiro mundo”. Esses países, ainda que mantendo uma economia baseada na obtenção do lucro, podem garantir a parte da sua população, um nível de vida bastante superior e satisfatório. Aí entra o papel do parlamentarismo. Um povo mais consciente, mais capaz de se organizar, mais culto, com mais história revolucionária não pode viver muito tempo sob uma ditadura. Cabe então ao capitalismo fazer face a essa exigência popular, quase sempre motivada pela evolução dos movimentos populares e operários progressistas. A resposta é simples: ditadura política e corporativismo disfarçados – parlamentarismo.
Importa aqui clarificar o conceito de ditadura política. Quando ouvimos ou lemos esta palavra somos recorrentemente assaltados pelo conceito de violência humana, física até, repressão e ausência de liberdade de expressão. No entanto, o conceito de ditadura política é mais lato. Claro que um regime em que se verifiquem tais características pode ser apelidado de ditadura, mas o conceito é mais simples: a ditadura política é o exercício de poder de uma porção da humanidade sobre outra. A ditadura pode ser imposta por uma minoria ou por uma maioria. O parlamentarismo disfarça uma ditadura minoritária sobre a maioria. O poder é exercido em função dos interesses de uma minoria que detém o poder económico sobre aqueles que não o detêm. Portanto, exercido pelo capital sobre o trabalho. A pirâmide está invertida. O capital deve servir o desenvolvimento do trabalho, das condições de vida dos trabalhadores e não a concentração e acumulação de riqueza num punhado de entidades invisíveis.
O parlamentarismo garante esta ilusão. A representatividade aparenta ser escolhida livremente. A discussão parlamentar tem lugar e o resultado é democrático. Tudo isto é aceite como verdade indesmentível. A comunicação social não questiona nunca a legitimidade destes sistemas porque serve exactamente os mesmo interesses que eles.
O parlamentarismo é, portanto, uma vitória burguesa. Ainda que constitua um avanço popular face a outras formas de organização que sustentam o capitalismo. É um passo que tem de ser dado, como aliás o prova a própria história. É uma fase da emancipação dos povos e do Homem. É uma cedência do capitalismo. No entanto, o capitalismo aprendeu rapidamente a gerir muito bem essa sua cedência. Aprendeu a adaptá-la aos seus interesses e a servir-se dos satélites oportunistas que orbitam em torno do parlamentarismo. O capital não o combate salvo se os resultados eleitorais construírem, em determinado momento, uma maioria inesperada.
O papel dos comunistas, em cada etapa da História da Humanidade, é o da organização e criação de condições para a luta, promovendo a capacidade de obter vitórias em todas as frentes para o proletariado e derrotas para o capital e a burguesia. É por isso que se coloca, não indiferentemente, a questão da participação no regime parlamentar.
Se, por um lado, o parlamentarismo é um dos pilares de sustento do capitalismo, acabando por decidir sempre em consonância com as orientações do imperialismo; por outro, o parlamentarismo é mais um campo de batalha para alcançar vitórias para o proletariado e seus aliados. Virar as costas a essa batalha seria virá-las, em muitos casos, aos próprios trabalhadores. Assumir esta batalha acarreta o risco de aumentar a confiança popular no falso equilíbrio parlamentar.
Levanta-se ainda um conjunto muito vasto de outros problemas e riscos em torno da participação dos comunistas nos parlamentos.
Para o próximo volume: risco de contribuição para a correcção do capitalismo, risco de desagregação da unidade na acção dos comunistas, risco de promoção do oportunismo, risco de diminuição do alcance revolucionário das propostas comunistas – reformismo.
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