“Estou condenado a ser livre” escrevia Sartre como a síntese de um paradigma existencialista transversal. Esta concentração da racionalidade sobre o homem, vem recentrar o debate filosófico sobre a Humanidade. Aliás, Jean-Paul Sartre afirmou mesmo que “o humanismo é o existencialismo”.
Independentemente do impacto inegável que o contributo desse pensador nos trouxe, particularmente tendo em conta o momento histórico em que o fez, é importante relativizar a absolutização da liberdade que acaba por, de alguma forma, estar latente no pensamento sartriano.
Se o pensamento lógico, o raciocínio do ser humano, é baseado em premissas que partem de conceitos e, de acordo com o existencialismo ateu de Sartre, é essa propriedade humana que lhe confere a liberdade, então não poderemos absolutizar os graus de liberdade a que Sartre alude na sua obra e legado filosófico. Também é certo que Sartre bem distingue entre o acto e o não-acto, assim eliminando confusão entre a liberdade e a não-liberdade, relacionando essa distinção com a presença ou ausência de consciência da acção, ou com a presença ou ausência de vontade da acção.
E também não existe na obra de Sartre uma eliminação das assimetrias de classe e sua repercussão nas estruturas racionais do Ser Humano. Porém, também não lhe é dada a dimensão que julgo ser justo atribuir a essas anisotropias sociais. Pois que o conceito de liberdade, se absolutizado, esbarra na evidência de uma realidade que diariamente o nega.
Pois que se a liberdade é o resultado da soma das operações racionais e se traduz na possibilidade inalienável de escolha do Ser Humano, então a quantidade de variáveis disponíveis condiciona o grau de liberdade. Essa análise não é hoje suficientemente consolidada pelos acólitos burgueses do existencialismo pós-Sartre. A absolutização do conceito de liberdade, a sua dramatização como forma de constatação de eloquência intelectual, reflecte-se afinal na supressão das diferenças inerentes ao facto de existirem diferentes graus de cultura, de consciência e de acesso à informação. Em sentido figurado, se o raciocínio humano fosse um puzzle, ele só pode ser construído se o sujeito tiver à sua disposição todas as peças. Nessa analogia, as peças serão precisamente a informação, a cultura, o conhecimento, a experiência. A partir do momento em que existe uma condicionante à disponibilidade de cada uma das peças, então também o resultado final do puzzle está condicionado.
Obviamente que o pensamento humano não pode ser simplificado ao ponto de uma equação ou de um algoritmo simples. No entanto, com a necessária consideração das óbvias diferenças no grau de complexidade, podemos comparar o condicionamento do pensamento humano como a condição dos resultado s de uma equação. Claro que a caracterização de uma função matemática está condicionada pelo universo a que pertencem as variáveis. Da mesma forma, o resultado de um equação pode ser determinado em função do universo de trabalho. Por exemplo, se x^2=2, x E R é uma equação de resultado simples, com x=(raíz de 2) ou (simétrico da raíz de 2), já a mesma equação mas com x E N não tem solução possível.
Ora, sem querer obviamente comparar a estrutura racional humana a uma mera equação linear, certo é que mesmo a criatividade e inteligência (capacidades que determinam soluções onde aparentemente são impossíveis) estão condicionadas ao estímulo ou ausência dele. Caso contrário, a evolução tecnológica, artística, científica e cultural da Humanidade não seria um processo gradual, mas sim absoluto e momentâneo.
Ou seja, o conjunto das peças, dos elementos, das variáveis culturais, sociais e económicas, à disposição da capacidade intelectual de cada Ser Humano determina em grande parte a amplitude da sua liberdade. Independentemente da sua inteligência, das suas capacidades intelectuais, o grau de acesso à informação e ao conhecimento, condiciona o grau de liberdade para a acção e para a escolha.
Daí a forma tentacular e fortemente controladora como o sistema capitalista, as corporações e os estados subservientes, condicionam a disponibilidade de informação e impedem a difusão da consciência dialéctica e bloqueiam o raciocínio materialista através dos meios de comunicação e educação de massas. A limitação do conjunto de variáveis disponíveis para o pensamento, determina assim uma gradação de liberdades em função do posicionamento de cada indivíduo no tabuleiro da luta de classes. Não nos referimos aqui à liberdade legalmente considerada, nem tampouco à liberdade económica que está manifestamente afectada de brutais constrangimentos e garrotes em função da posição económica de cada um. Não é necessário grande estudo para rapidamente verificar que essa liberdade material está inteiramente dependente do papel de cada um na sociedade capitalista.
O Explorador detém um grau de liberdade material infinitamente superior à do Explorado. O patrão detém um conjunto de liberdades materiais que o seu empregado não detém, nem poderá alguma vez deter enquanto for trabalhador e não se tornar ele próprio em patrão. Mas no que à liberdade intelectual diz respeito, o processo não é tão diferente quanto isso.
É certo que Sartre tem razão quando afirma que o Ser Humano não pode escolher não escolher, pois essa a única liberdade que não lhe assiste. Está, pois, condenado a ser livre. Mas há toda uma hierarquização dos graus de liberdade que, incontornavelmente, se verifica entre os homens e impede a absolutização do conceito. Por exemplo, um trabalhador ofendido nos seus direitos laborais pode optar, no plano intelectual e racional, pela luta ou pela capitulação. É um facto, ele pode. Não podemos é, no entanto, negar que existem diversas formas de limitar essa capacidade de escolha. Se o trabalhador em causa não tiver acesso a dados sobre lutas de trabalhadores noutros casos, se o trabalhador não tiver acesso a informação sobre organização sindical dos trabalhadores, sobre os mecanismos de exploração capitalista, sobre os resultados de outras situações semelhantes, e se o mesmo trabalhador apenas dispuser de informação sobre trabalhadores que capitularam e que não se organizaram, negociando posições menos favoráveis mas mais favoráveis que o desemprego, então esse trabalhador terá certamente uma tendência para optar pela capitulação. Isso significa objectivamente que o grau de liberdade desse trabalhador está limitado.
Como tal, existindo limitação, e sendo essa limitação diferente de indivíduo para indivíduo, e em função da hegemonia cultural de classe em vigor em cada momento histórico, então a liberdade de escolha, sendo real, não é absoluta.
9 comments:
Se o limite da realidade concreta de cada indivíduo, com base na sua escolha, pretere o conflicto em prol da sua liberdade, mesmo consciente de outra dimensão será sempre livre.
Por outra parte, também Sartre afirmava que, "O homem tem medo de assumir o resultado das suas decisões", constituindo o medo; a manipulação, um inibidor da vontade de cada um, que não precisamente um factor de decisão, sendo que não há lugar à escolha consciente.
Noutro paradigma, noutro momento, ainda que no mesmo espaço, veremos um homem desperto em lugar de um minotauro aletargado.
Excelente texto. Aponto apenas a referência ao "sistema capitalista" que, embora correcta, é omissa ao não referi que o mesmo somos nós, o homem. Tal como foi dito no comentário anterior, também Satre disse que o homem tem medo de assumir o resultado das suas decisões e chama-lhes "sistema", quando no fundo o mesmo não passa da falta de vontade da minoria que "escalou" na hierarquia.
Na minha opinião, é essa a fraqueza as ideologias sociais ou à esquerda. Todas elas dependem da justiça social do individuo. Precisam que este contribua e este, sempre que pode, amealha, "imperializa" e nunca distribui.
Abraço Miguel! A Rute falou-me que tinhas o blogue e vim cá espreitar. Grande texto, muito bom.
Tó
Caro António Aleixo, quando li o nome, ainda fiquei na dúvida. Depois no final do comentário percebi que eras mesmo tu! Sê bem-vindo ao Império bárbaro!
Tens muita razão nas questões que levantas, pois em última instância o sistema não é mais do que a soma das pessoas. No entanto, o sistema é também a soma das relações que se estabelecem entre pessoas. E a partir do momento em que esse relação pressupõe uma assimetria na distribuição do poder, da riqueza, da cultura, da informação, isso significa que há uns que estão em melhores condições de influenciar o "sistema", o curso da história, do que outros.
Essa distinção faz toda a diferença. O medo de assumir o "acto" implica conhecimento das consequências, ou pelo menos do acto. A ignorância do "acto" e das suas consequências, porém, é um problema bem mais fundo.
Miguel,
Manipulação, manipulação.
Aproveitando a tua resposta ao comentário do António Aleixo, gostaria de remarcar algumas diferenças entre conhecimento, desconhecimento, e aspectos em comum com a opressão.
O homem pode ser obrigado a aceitar a decisão de outros mesmo mantendo a sua vontade numa clandestinidade, também ela, repressora.
Assim, conhecendo o resultado do acto, e o acto em si, não o evita, por ser impedido de o practicar. Desconhecendo o acto não decide nada, nem furtar-se à suas consequências, só decidiria se aprendesse a actuar.
Em ambos casos, a opressão, inibe o homem de decidir. No primeiro caso não lhe permite romper o hermetismo do sistema; no segundo, o sistema, com base nessa tal assimetria que comentas, manipula a informação através de canais aos quais não se acede ou proporciona veiculos condicionadores na definição de qualquer procedimento e as sua consequências.
bolas, só agora reparei que o windows equation não é compatível com o blogger. lá arranjei uma forma. espero que compreensível.
Nessa matéria sou analfabeto e, por aqui, nem escolas, nem ninguém que me esclareça, só posso mesmo continuar a cavar, o que não será de muita ajuda.
Mas o que define as relações assimétricas que (também) caracterizam o sistema? Que são elas senão lobbies ou círculos de influências? E sendo o homem um animal social que necessita de ser aceite num determinado grupo de acção, não se tornam estas (relações) condição sine qua non da existência do próprio homem?
Eu compreendo a luta por um mundo melhor sempre que a luta compreender os limites da perfeição humana.
Repara que até os grupos de acção que lutam por uma absolvição do sistema têm a sua hierarquia de poder, riqueza, cultura e informação.
Quanto à questão do conhecimento do próprio acto tens toda a razão. O desconhecimento do próprio é por vezes catastrófico.
Por outro lado todos sabemos que a maioria das revoluções sociais foram movidas por uma força popular muito mais próxima da "clubite" do que da própria razão.
Sendo o homem um animal assustado, teria ele arriscado tanto se conhecesse o acto? Penso que não... E ainda assim, em tantos casos, ainda bem que o fez.
Mais uma boa reflexão.
A estimular outras, sobre este conceito "liberdade".Por exemplo, liberdade ou liberdades? Individual(ais) ou colectiva(s)? Garantida(s) a(s) liberdade(s) colectiva(s), a(s) individual(ais) não estaria(m) incomparavelmente mais próxima(s) da concretização plena? Com liberdade para trabalhar, para ter saúde, ensino, educação, formação profissional e cultural, habitação, sustentação material, social, fruição cultural, desportiva, liberdade de criação, inventiva; liberdade de circulação, de transportes, organizacional dos espaços habitacionais, urbanos, ambientais, patrimoniais, paisagísticos, das estruturas sociais, associativas; liberdade de acesso à justiça, à segurança, ao bem-estar das crianças; liberdade de escolhas amorosas, sexuais, religiosas/ateias, estéticas; e etc, etc, etc.
Conquistadas estas, as colectivas, tudo ficará simplificado na obtenção das individuais, não será assim? Talvez, melhor ainda, não se fundem as individuais com as colectivas?
Retornando aos filósofos, apetece parafrasear um, decerto muito popular; "Com a barriga vazia, não há filosofia"...
Com toda a atenção estima por tantos de nós que, mesmo com ela (a barriga) mal aconchegada, teimam em filosofar. E ainda bem!
Um abraço.
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