Em a "Dialética da Natureza", notável e histórica obra de Engels, há directa alusão a uma importante correlação entre qualidade e quantidade que se verifica na Natureza e que é, porventura, uma curiosa fonte de analogias para a aplicação do materialismo histórico, particularmente nos dias que correm.
Talvez aqui sobrevalorize a minha formação em Geologia, pelo que peço compreensão. Engels fala-nos das leis da dialéctica ao longo dessa obra e da sua veracidade e verificação no mundo natural, condição fundamental para quem considera a natureza a base primordial da filosofia, como os materialistas.
A primeira lei da dialética estabelece que existe uma relação bívoca entre a "qualidade" e a "quantidade", ou seja, uma relação interdependente entre os aspectos quantitativos e os aspectos qualitativos. De forma até bastante avançada para a altura e para o grau de desenvolvimento científico de então (1883), Engels faz um conjunto de avaliações e análises sobre a Natureza e suas leis, à luz de uma perspectiva dialética que está actual, na generalidade, até aos dias de hoje; e nessa incursão pelo mundo das ciências naturais ilustra com grande acuidade a relação entre a quantidade e a qualidade na natureza.
Há todavia, segundo me recordo, uma esfera da ciência que passa à margem do conteúdo da brilhante obra de Engels, mas que estou certo de que, houvesse então o conhecimento que se tem hoje da mecânica geotectónica, não teria passado sem referência. Essa esfera é a Geologia e particularmente a Geofísica.
Sobre a relação entre "qualidade" e "quantidade" e primeira lei da dialética é, na minha opinião, importante que nos debrucemos com empenho igual ao que dedicamos às restantes leis da dialética e do materialismo histórico. Não para que possamos fazer uma abordagem meramente teórica das relações sociais e da História, mas para que possamos buscar na base científica e na filosofia as pistas para a intervenção concreta do dia-a-dia, enquanto revolucionários e comunistas. A interpretação do contexto natural, social e histórico em que nos encontramos é hoje, como foi sempre para os comunistas e para o proletariado, uma condição para a boa determinação do rumo e orientação a dar à acção. Compreender a fase de desenvolvimento histórico, as transformações qualitativas e quantitativas no processo produtivo e nas relações sociais é, como sempre terá sido, um requisito para a avaliação colectiva certeira e para a definição das linhas de intervenção que posicionem os comunistas na luta pelo futuro, pela revolução e não, erradamente, no lado da conservação das relações actuais que entendemos passíveis de superar.
A geofísica e a geologia no geral vieram a demonstrar-nos que também no que toca à movimentação tectónica, existe uma íntima relação entre quantidade e qualidade. Uma quantidade de força (tensão) aplicada a uma determinada porção de substrato rochoso provoca alterações na configuração geométrica do substrato e das camadas que o compõem. Simplificando, existe uma diferença qualitativa entre o comportamento dúctil e o comportamento frágil, sendo que quando se aplica o primeiro, os materiais se adaptam gradualmente às condições e que, em manifestações de comportamento frágil, os materiais se adaptam bruscamente. Não é uma mera diferença quantitativa, é uma diferença qualitativa. Ou seja, não há mais nem menos movimento, há é um comportamento diferente dos materiais submetidos a forças diferentes, porventura em períodos de tempo diferentes. Igualmente, e mais profundamente, se as forças (pressões) forem em quantidade suficiente, podem dar-se alterações qualitativas ainda mais evidentes, alterando inclusivamente a composição química do substrato, destruíndo minerais e gerando novos minerais, química e estruturalmente distintos.
A movimentação de porções da crusta terrestre à superfície está, como sabemos, relacionada com a libertação de tensões que se acumulam no substrato, em camadas mais ou menos profundas. A movimentação ao longo de falhas, ou a geração de falhas, os terramotos, estão por isso mesmo relacionados com as tensões que se acumulam e libertam na crusta. A libertação lenta dessas tensões dará muito provavelmente origem a movimentações pouco perceptíveis à superfície, como por exemplo, os movimentos identificados na tectónica de placas ou a adaptação da superfície às tensões de forma gradual, como se identifica em pequenos movimentos tectónicos não catastróficos, ou seja, não episódicos, antes contínuos.
Todavia, a libertação de energias de forma rápida (por conversão da tensão em movimento), origina geralmente fenómenos catastróficos, evidenciando o comportamento frágil das estruturas geológicas e até mesmo das estruturas construídas. Isto significa que um material sujeito a uma determinada força num determinado período de tempo reage de forma diversa em função da intensidade da força e do intervalo de tempo em que essa força se manifesta. Uma camada geológica pode dobrar-se se sobre ela for libertada energia de forma gradual. A mesma camada pode falhar (quebrar-se) se sobre ela for libertada energia de forma brusca ou uma quantidade de energia muito maior, ainda que num intervalo prolongado de tempo. A quantidade de tempo e de energia alteram radicalmente a qualidade da reacção do material sujeito ao tempo e à energia.
Ora, posto isto ainda que de forma simples, podemos questionar um conjunto de teses sobre a acção do proletariado e da sua vanguarda de classe. Questionar para negar ou questionar para reforçar.
Serve toda a introdução do presente texto apenas para dar enquadramento a uma abordagem dialética da acção dos comunistas e da sua interpretação sobre o actual momento, particularmente numa altura em que o capitalismo labora por si mesmo um conjunto de movimentações para garantir a sua subsistência e a sua continuidade e que essas movimentações afectam hoje, como afectaram no passado, as camadas populares e os trabalhadores, iludindo, contendo ou até fascizando.
Num contexto em que estão amplamente consolidadas inúmeras democracias burguesas e que, na sua esmagadora maioria, elas representaram à data da sua fundação um avanço histórico sem precedentes e uma evolução nas relações sociais à escala global, podemos aspirar à sua superação, atingidos os seus limites materiais, sociais, históricos e humanos. Como dizia Lénine, desengane-se quem pensa que a História é feita apenas de progresso, sem fluxos ou refluxos. Podemos igualmente dizer que se deve desenganar que a História atingiu um limite de desenvolvimento e que o actual estado de coisas, o capitalismo, representa o mais evoluído grau de organização humana. Tão enganado estará esse quanto o que julga que a derrota e a traição que levaram ao retrocesso civilizacional do fim da União Soviética, do Estado Proletário, são uma manifestação de progresso incontornável e impossível de ultrapassar.
Da mesma forma que a escravatura representa uma evolução associada à evolução civilizacional quando comparada com a sociedade primitiva e o feudalismo um avanço quando comparado com a escravatura e a democracia burguesa um avanço perante o feudalismo, a democracia popular será um avanço em relação ao estado burguês. O que não significa, de modo algum, que as transformações e processos revolucionários entre cada fase do desenvolvimento histórico sejam momentos ou episódios pontuais. Pelo contrário, a escravatura durou milénios em diversas regiões do globo, tal como estados e nações que experimentaram formas incipientes de democracia e república nem sempre cristalizaram nessa fase e muitas vezes regrediram.
A evolução histórica não é um processo linear, mas é um processo.
Prossigamos: a própria revolução (as revoluções) são fruto de um processo e não manifestações desligadas ou isoladas da realidade material e social. As condições para o triunfo de uma revolução proletária, socialista, não deixaram de se verificar e, pelo contrário, do ponto de vista objectivo, acumulam-se. Sendo a primeira dessas condições o carácter ascendente do proletariado enquanto classe.
Nunca como hoje, o proletariado foi tão numeroso. É verdade que o advento da classe se realiza principalmente com a revolução industrial, mas não é menos verdade que esse advento originou um movimento de ampliação do proletariado que hoje perdura. O futuro, tal como nos é possível avaliar neste momento, é caracterizado pelo aumento quantitativo do proletariado, na medida em que a população humana cresce, que a burguesia se contrai e o capital se acumula. Nesse sentido, perante o crescimento em número do proletariado e a intensificação das condições de exploração a que está sujeito, continua a afirmar-se essa classe como a única capaz de protagonizar os processos revolucionários capazes de superar o actual estado de organização social e económica.
Mas por que motivo referir a primeira lei da dialética num texto sobre a acumulação de forças revolucionárias? A forma como intervimos, comunistas, no contexto político a cada momento, não pode desligar-se desta concepção histórica e materialista das relações humanas e como tal, deve estar subjacente à direcção política do proletariado e às decisões e comportamentos que colectivamente assumimos. A revolução, a superação do capitalismo pelo socialismo, não é um episódio, é uma soma de episódios que pode ou não culminar num episódio momentâneo. Todavia, qualquer que seja a forma que essa alteração qualitativa vier a assumir, ela terá necessariamente de ser assente numa ruptura revolucionária, numa subversão total dos princípios basilares do sistema capitalista e das democracias burguesas, na medida em que, mais ou menos gradual, só a revolução assegura a superação das condições actuais de exploração, por oposição ao reformismo.
A posição dos comunistas, a sua intervenção institucional e de massas, na luta pela conquista e defesa de direitos para as massas trabalhadoras não podem ser, sob pena de se tornar num contraponto para o equilíbrio do próprio capitalismo, uma posição e uma intervenção reformista e de negociação. Pelo contrário, sem negar avanços e até protagonizando as suas conquistas, as posições e acções dos comunistas devem ter como preocupação de primeira linha e como objectivo primordial a exposição e denúncia das limitações do sistema capitalista, afirmando o socialismo e o comunismo como únicas formas de ultrapassar essas limitações.
A intervenção da vanguarda organizada do proletariado age no sentio de proporcionar as condições necessárias para a libertação de energia, tal como o terramoto que não sucede sem acumulação e libertação de energia. Nesse sentido, a libertação das tensões pontuais do capitalismo, pela via da negociação ou do trade-unionismo ou reformismo, resultam antes no alívio gradual das tensões, atrasando - mas não impedindo certamente - a concretização da revolução.
Significa isto que os comunistas devem contribuir para agudizar as condições de exploração do proletariado, que devem colocar-se do lado do "quanto pior, melhor"?
Não. Significa que na evolução das organizações sociais se aplicam as leis da dialética marxista e que a acumulação de forças se faz pela denúncia e exposição das contradições internas do capitalismo e pela organização e elevação da consciência política das massas. Como resultado da elevação da consciência política das massas é plausível que se criem melhores condições de imposição das condições de trabalho pelo proletariado, mas só através da materialização da consciência política em acção revolucionária é possível quebrar a mariz fundamental do capitalismo: a exploração em si mesma.
Isto significa que a luta revolucionária é influenciada pelas características próprias do proletariado, pela sua relação qualitativa e quantitativa com as outras classes, e que essa luta, por isso mesmo, sofre fluxos e refluxos. Porém, olhar para o desenvolvimento histórico como um fatalismo ou um fluxo recto, é igualmente prejudicial para a evolução social e para a concretização revolucionária. Estar, nas instituições e no trabalho de massas, presente sempre, organizado sempre, combativo sempre e sem claudicar é condição fundamental para que entre as massas se criem as condições subjectivas necessárias para a libertação da "energia" revolucionária capaz de vencer a "energia" conservadora do sistema capitalista. Portanto, deixar acumular o descontentamento e a deterioração da condição económica e social do proletariado é permitirmo-nos o atraso do processo revolucionário, tal como o é, deixar que as reformas se substituam à perspectiva revolucionária, claudicando perante a burguesia e o capital.
Resta-nos a opção (obrigação política e ética?) de empenhar todas as forças individuais e colectivas na exposição das incapacidades e contradições do capitalismo, temperando e elevando simultaneamente a consciência política das massas trabalhadoras através da intervenção persistente da vanguarda, na luta concreta pela alteração da correlação de forças em cada disputa (através do confronto de classe e não da negociação reformista), vergando o capitalismo até ao seu colapso pela ascensão do proletariado a classe dominante. A revolução, essa ascenção do proletariado ao poder, é assim resultado de um processo dialético que é base natural da evolução, assim saibamos interpretar em cada momento o contexto e determinar o paso que nos coloca mais próximo da revolução e rejeitar o que nos posiciona mais longe, se não for seguido de dois que nos coloquem novamente mais perto.
Em que é que a quantidade influencia aqui a qualidade das transformações e porque é que ilustro a acção revolucionária com a primeira lei da dialética? A quantidade do proletariado organizado e a quantidade das acções de acumulação de forças ("energias") é determinante para a realização de um momento histórico de "qualidade" revolucionária, por oposição a um momento reformista ou de retrocesso. A quantidade das acções, a sua frequência influenciam a sua própria qualidade e natureza, mas influenciam igualmente a natureza e qualidade do rumo histórico que lhes segue e que dessa acção venha a resultar. Não isolando esta abordagem da integração das restantes duas leis da dialética (negação da negação e interpenetração dos opostos), a acção comunista pela superação do capitalismo e da exploração ganha todo um significado teórico que, não valendo por si só, não deixará de ser em momento algum a base da nossa acção colectiva.
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