Todos estamos sujeitos a um conjunto indeterminado de estímulos que recebemos, assimilamos e que moldam reacções individuais e colectivas. A dimensão humana e social desses estímulos pode ser aquilo a que chamamos "cultura" e isso significa que esses estímulos são simultaneamente por nós produzidos e por nós adquiridos.
Na sociedade, na vivência colectiva, a Cultura é o conjunto dos estímulos, artísticos ou meramente ambientais e sociais que condicionam a relação do indivíduo com o meio e com os restantes indivíduos. Logo, num contexto de permanente luta de classes, existem igualmente expressões culturais de classe. As artes em todas as suas vertentes, o pensamento e comportamento colectivo e de massas são portanto expressões de uma hegemonia cultural que não elimina, todavia, a produção e distribuição cultural alternativa, mas que a reduzem e a tornam vestigial na medida em que a correlação de forças de classe se intensifica num ou noutro sentido. As expressões burguesas tenderão a tornar-se vestigiais no quadro de uma organização social socialista e proletária, tal como se tendem a tornar vestigiais as formas de arte e criação proletárias e libertadoras num sistema fascista ou de cada vez mais denso capitalismo. A expressão social das culturas de classe é directamente proporcional ao poder político e económico da respectiva classe.
O Estado
Para os comunistas não restam ilusões sobre a eventual conciliação de classes, tal como até aqui nos venderam sucessivamente os sociais-democratas, os esquerdistas, a direita e, enfim, a burguesia como classe dominante e todos os seus partidos. Na ausência dessa ilusão, o papel do Estado - na perspectiva comunista - será sempre o de assegurar a ordem social e económica de acordo com os princípios da classe dominante (independentemente do regime eleitoral do qual surge o poder) e como tal, num processo gradual, a intervenção do Estado perante cada esfera da vida colectiva tende a revelar-se sempre classista e ditatorial. A democracia burguesa (também ela através de um processo gradual) está num percurso de fascização natural e acelerado, tornando assim cada vez mais evidente a sua natureza ditatorial, para assegurar a hegemonia económica e política dos interesses que a dominam. O que é importante compreender para decifrar a natureza dos partidos da burguesia e das suas instituições não é saber quem vota, mas nos reais interesses de quem é votado. Ou seja, a democracia burguesa será crescentemente falsa na medida em que o poder da classe dominante ganha suficiente poder para impor as condições que lhe são favoráveis às camadas exploradas, mesmo que seja legitimada pelo voto destas últimas. O carácter gradual desse processo, a forma dissimulada como são feitas as imposições e definidos os retrocessos civilizacionais são o garante do seu sucesso, na medida em que é preciso fazer acompanhar as medidas políticas e económicas da alteração da hegemonia cultural.
Todos compreendemos que seria impossível em 1975 impôr as medidas que estão agora ser decididas pela direita em Portugal. Precisamente porque a hegemonia cultural, principalmente junto das massas, não acompanharia de todo esse movimento reaccionário. Isso não significa porém que é a hegemonia cultural que determina as relações materiais e sociais, mas significa precisamente o contrário. São as relações materiais que determinam a hegemonia cultural, mas na medida do agravamento gradual de um, pode verificar-se a alteração e degradação da outra e vice-versa. Por isso mesmo, a questão central não foi resolvida em Portugal no 25 de Abril de 1974, porque não houve lugar à alteração das relações de produção e relações sociais, ou seja, apesar de dois anos de profundas alterações e transformações, no essencial foram mantidas as relações de exploração em que assenta a organização social e económica, dada a vigorosa resposta da contra-revolução e o golpe de estado de 25 de Novembro.
Nesta medida, exactamente como o fascismo impõe um controlo sobre a cultura, garantindo uma passividade das massas perante os recuos do seu próprio bem-estar, o estado burguês controla a cultura para o mesmo efeito, por meios diferentes. O objectivo central do fascismo não é a tortura, não é o encarceramento de milhares, nem mesmo a permanência de um ou outro dirigente no poder e a imposição de uma ditadura política ou partidária. Da mesma forma, o objectivo da democracia burguesa não é assegurar a liberdade de voto, nem as garantias públicas, tampouco garantir a existência de um circo parlamentar. O objectivo de ambas as formas de organização do poder é exactamente o mesmo: garantir o domínio da burguesia, independentemente das contradições e disputas intraclassistas. As formas que o poder e o estado (fascista ou liberal, ditatorial ou democrata) são apenas os instrumentos, o meio para garantir esse objectivo. Todavia, esse objectivo não é fixo na qualidade nem na quantidade. Na verdade, tal como Marx já descrevia, os objectivos da classe dominante estão constantemente em crescimento e em galope. Ou seja, a necessidade de acumulação capitalista é crescente. Como tal, também o Estado burguês adapta os meios e os instrumentos aos objectivos a que obedece. A intensidade da opressão de Estado é, portanto, directamente dependente dos objectivos da burguesia e do grau de liberdade de que a burguesia pode usufruir em cada momento histórico, em relação dialética com o estádio evolutivo da cultura dominante. A passividade ou mesmo a pro-actividade das massas perante as medidas e decisões da classe dominante são determinantes para o sucesso da ofensiva.
O papel do Estado, por isso mesmo, nunca é neutro. Mas não é neutro também o Estado socialista e proletário. A natureza do Estado enquanto instrumento de poder é um dado adquirido e verificado ao longo da história e do globo. Todo e qualquer Estado, até à total eliminação da divisão da Humanidade em classes sociais, será instrumento de opressão de uma classe sobre a outra. O que muda, de Estado para Estado - e em função das correlações de forças de classe ao longo da variabilidade geográfica e histórica - é apenas a classe que serve e os meios que usa para a servir, sendo certo que a matriz dos estados capitalistas é tendencialmente regressiva do ponto de vista da qualidade de vida da generalidade da população, salvo nos momentos de refluxo capitalista em que a própria burguesia, por factores internos ou externos - se vê obrigada a retrair a sua agressividade. Tal como o processo revolucionário, o processo contra-revolucionário também é feito de fluxos e refluxos e não é linear.
O entendimento pobre do Estado tal como hoje a burguesia o concebe é precisamente o da inutilidade superviniente na medida em que a burguseia, num conjunto de esferas da vida social e colectiva, não precisa mais do estado e pode exercer o poder político directamente assim o ligando sem qualquer tampão infectado por processos democráticos (ainda que débeis) ao poder económico e a este o subordinando. A retirada do Estado de praticamente todos os processos sociais e serviços e principalmente da qualquer intervenção nas relações sociais e no processo produtivo é portanto um movimento natural e inerente aos próprios estados capitalistas. Isto não significa menos estado, significa mais capitalismo e, contraditoriamente, mais estado capitalista, mais poder à burguesia. A concentração de meios de produção, de serviços e de controlo de processos nas mãos de grupos económicos sem qualquer intervenção do Estado significa precisamente que o Estado burguês se aprofunda, se consolida e que nesse processo de consolidação, se fasciza e diminui a democracia. É mais Estado dedicado a garantir que os lucros se continuam a acumular, mais estado repressivo, mais polícias para espancar grevistas, mais juízes e tribunais para decidir a favor dos patrões, enquanto que se traduz em menos polícia para garantir a segurança das populações, menos tribunais para garantir o acesso à justiça, menos rendimentos do trabalho. E tudo isto, feito à custa dos impostos dos que, a cada dia, menos recebem do Estado. De modo algum se poderá dizer que isto é menos Estado. É, isso sim, mais Estado para a burguesia, menos Estado para os trabalhadores. Mais custos para os trabalhadores, menos custos para a burguesia.
O papel do Estado é portanto determinado em função da sua natureza de classe. A ditadura fascista intervinha directamente na produção cultural através da censura, declarada. A democracia burguesa intervém utilizando uma censura dissimulada, a coberto inclusivamente de uma doutrina neo-liberal que fez vingar entre as massas que, através do estímulo à mediocridade, nos faz crer que a produção cultural é um luxo de parasitas e que o Estado não deve financiá-la. Ora, com isto não se produz um efeito meramente regressivo na produção cultural independente e livre, mas também se verifica um efeito amplificador da cultura dominante que, gozando do apoio da classe dominante, não carece do financiamento público, ainda que por vezes o obtenha, de forma mais ou menos explícita. No que toca à Cultura, o papel do Estado capitalista é precisamente o de assegurar a difusão da cultura dominante. Dentro da cultura dominante há todo um mercado, que talvez constitua, porventura, o seu motor mais evidente. Mas há muito para além de um mercado nos meios de difusão e na "matéria" cultural que serve e sustenta o sistema no plano subjectivo. Por isso mesmo, ao Estado submetido a uma burguesia dominante cabe, no que à política cultural diz respeito, assegurar duas práticas essenciais: retirar a capacidade criativa das massas, principalmente a não enformada no mainstream da sarjeta intelectual em que o capitalismo se fertiliza; concentrar os gastos privados e públicos com bens culturais em bens culturais que cumpram o desígnio de aprofundar a hegemonia cultural conveniente e, se possível, assegurar a apropriação por privados de um lucro resultante dessa difusão.
A instrumentalização total da criação, distribuição e fruição cultural e artística é uma aposta em dois cavalos, no do lucro e no da manipulação de massas. E a burguesia está a ganhar de forma avassaladora em ambos. Por um lado, apropria-se do financiamento público para ampliar as taxas de lucro na produção cultural de elite e de massas, secando a capacidade de investimento em produções independentes (no teatro, na pintura, na dança, no cinema, na escultura, na literatura, etc..) e por outro lado, difunde cada vez mais longe e de forma mais ampla a doutrina ideológica do Capital, consolidando a hegemonia cultural e ideológica.
A Democracia
A concepção actualmente utilizada para o termo “democracia” é radicalmente distinta daquela que cultivamos entre comunistas. A democracia, tal como a entendemos, não é a estrita liberdade de “cada um poder dizer o que pensa”, aliás, essa liberdade sendo um pilar fundamental da democracia não é, por si só um garante da existência de democracia. Todavia, tem sido esse o entendimento que a comunicação social, a escola de massas, a própria mensagem dos partidos políticos burgueses, transmite a cidadãos de todo o mundo. Ou seja, de certa forma, para a classe dominante, basta que cada um possa dizer o que pensa e entenda para que exista uma democracia.
Importa aqui desmontar por duas vias essa mistificação do conceito de democracia:
i.não é necessariamente uma democracia um regime em que cada um diz o que quer, já que anunciar uma posição política, contestar ou protestar, sendo direitos democráticos fundamentais, não são exercícios de poder executivo. Ou seja, a liberdade de protestar, sugerir, elogiar ou anunciar uma posição, minoritária ou maioritária, não assegura por si só a concretização de um qualquer programa político. A democracia atinge a sua dimensão plena, não quando é expressa livremente uma opinião, mas quando o conjunto das opiniões livremente expressas surte um efeito prático. Mesmo a livre escolha do dirigente político, sendo um elemento fundamental para a concretização da democracia, é por si só insuficiente para concretizar a democracia na medida em que a democracia burguesa assenta em obtenção de votos através da dissimulação e não da concretização. Isso possibilita e favorece o engano, a corrupção, a retórica e a utilização do poder confiado para fins diversos dos prometidos.
ii.É falso que em democracia burguesa exista a verdadeira liberdade de “cada um dizer o que pensa”, já que é o próprio sistema de difusão de informação e mensagens que define quais as mensagens que merecem eco e dimensão e quais as que não. É falso que cada um possa dizer o que entende na democracia burguesa, sem represálias e sem consequências. Isso podia ser apurado pelas dezenas de sindicalistas assassinados e raptados anualmente na Colômbia, pela proibição da Juventude Comunista da República Checa e tentativa de proibição do Partido Comunista da Boémia e Morávia, ou pelas centenas de presos políticos nas prisões estadunidenses, ou pela listagem de entidades e organizações terroristas e potencialmente terroristas que os estados burgueses vão sucessivamente decretando, mas também podemos fazê-lo através dos sindicalistas perseguidos e despedidos do local de trabalho em Portugal, das cargas policiais sobre manifestantes vários, das invasões de sedes de sindicatos por agentes da polícia, entre outros exemplos que por aí se nos mostram cada vez com maior relevo e gravidade. Além desses casos de impedimento objectivo dessa “liberdade” de se dizer o que se queira, há muitas outras formas de silenciamento e essas são, porventura, igualmente eficazes para atingir o efeito desejado. O estrangulamento financeiro da criação artística e cultural, o isolamento mediático das expressões políticas alternativas e revolucionárias, a diluição da informação alternativa e a concentração dos meios de propaganda e de comunicação social nas mãos dos grupos que determinam o rumo político e económico dos países são outros meios da “ditadura democrática da burguesia”.
Ou seja, não é verdade que a liberdade de expressão seja sinónimo de democracia e, mais grave, não é verdade que nas “democracias ocidentais” - como insistem em chamar-lhes os doutos comentadores e outros vomitadores de opinião mastigada – exista liberdade de expressão.
Tudo isto para nos centrar num outro conceito de “democracia”, mais profundo e mais humano, mais progressista. E em que medida se relaciona “democracia” com financiamento do Estado às artes e à cultura?
A democracia, para ser plena, além de implicar resultados práticos – não da liberdade de expressão, mas das vontades maioritárias – implica um grau de acesso à informação, ao conhecimento e à cultura total para todos os que desejem usufruir desses bens. Para que exista um grau de acesso à cultura igual para todos, é antes de mais necessário que exista produção cultural livre dos interesses económicos. Caso contrário, observamos à galopante massificação de uma mono-cultura dominante que traduz as mensagens conservadoras e anti-progressistas de quem beneficia com a manutenção das relações de produção e das relações sociais actuais. O domínio económico e de classe sobre toda a cultura disponível é o núcleo da constituição da hegemonia ideológica e cultural.
Ora, é neste quadro, consideradas estas concepções distintas das que habitualmente são tidas como dogmas, que julgo que se começa a tornar evidente a importância do financiamento do Estado às artes e à cultura. Tendo em conta o caso específico português, a própria Constituição da República Portuguesa estabelece o apoio do Estado como uma obrigação, mas não explica porquê. Podemos então debruçarmo-nos sobre os motivos desse comando constitucional em Portugal – que não é casualmente resultado de um processo revolucionário – e simultaneamente sobre o motivo genérico que é o verdadeiro motor desta escrita que já vai longa em demasia.
Tendo em conta que o financiamento público, ou melhor, o financiamento por parte do Estado, é a soma de uma parte dos rendimentos de todos os cidadãos – ou deveria ser – então o encaminhamento de parte desse capital para uma actividade, seja ela qual for, deve estar subordinado ao interesse colectivo que dessa actividade poderá advir, ou subordinado à importância da mera existência dessa actividade para a subsistência do Estado, da Democracia, que é mais ou menos o mesmo, mas não exactamente. Entender a criação cultural como uma das actividades que justificam o encaminhamento de parte desse contributo colectivo dos cidadãos deve então ser feito à luz dessas considerações, com abrangente visão. Caso contrário, facilmente se entenderiam as tentativas de fazer condicionar o apoio público em função da bilheteira ou da capacidade de atracção de “clientes” de cada produção cultural, já que o Estado apenas estaria obrigado a apoiar e estimular as expressões artísticas que manifestam capacidade de gerar receita/lucro ou angariar vastos públicos, deixando secundarizar as expressões incapazes de se massificar ou de motivar afluências massivas. Esse raciocínio, todavia, demonstra a sua invalidade se for desenvolvido até ás últimas consequências, já que, como vimos, num Estado (de qualquer natureza de classe) degladiam-se manifestações culturais e ideológicas de classe e uma sai sempre vencedora ao ponto de constituir a hegemonia, e essa batalha é eterna e constante enquanto durarem classes sociais com interesses antagónicos entre si. Nesse sentido, os bens culturais passíveis de angariar vastos públicos e de obter reais lucros num funcionamento de mercado são os ideologicamente inócuos ou os ideologicamente favoráveis à classe dominante, ou seja, os que compõem e aprofundam a hegemonia à data. Como tal, a limitação à livre criação artística e cultural não é, como nos querem fazer crer, uma forma de poupança e de melhor aplicação de recursos públicos. É isso sim, a limitação à livre fruição de bens culturais. O Estado não apoia ou financia apenas a criação, o criador ou produtor do bem cultural (que é em si mesmo uma necessidade e uma liberdade humana) mas financia fundamentalmente a produção de um bem essencial à comunidade, independentemente da dimensão que venha a adquirir.
Os processos criativos são também processos cumulativos. Ou seja, a criatividade artística e a cultura evoluem em contextos específicos, em sequência histórica específica, reflectindo condições materiais e culturais de cada momento. Tal como na Ciência, uma descoberta absolutamente fundamental pode depender integralmente de uma descoberta ou invenção aparentemente inútil. Também nas artes e na Cultura, não poderão nascer obras-primas sem um sem fim de produções com menos sucesso. Não podemos esperar que toda a produção artística seja da mais elevada qualidade, sob pena de não existir infra-estrutura artística, uma base, uma raiz, assente na formação de técnicos, atores, encenadores, realizadores, pintores, bailarinos, coreógrafos, escritores, argumentistas, poetas, etc.. Essa base, essa estrutura radical depende precisamente do financiamento público. A questão sobre a massificação e democratização das manifestações artísticas sem público ou com reduzido público deve ser pois encarada pelo poder – numa perspectiva comunista – não como uma limitação ao apoio, mas como um elemento que justifica, isso sim, a mobilização de mais meios para a promover.
É o nosso direito a usufruir de algo que não seja determinado por quem nos explora que estamos a financiar. Não é um subsídio ao emprego de um número de artistas, é um serviço que pagamos para que possamos ter a nossa cultura, a nossa arte, a nossa identidade, a nossa liberdade e, acima de tudo, a nossa Humanidade. É o Serviço Público de Artes e Cultura. E isso só faz sentido num Estado com uma determinada natureza de classe, democrático na plenitude, um Estado ao serviço da maioria da população, o proletariado.
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