Friday, November 01, 2013

notas sobre o capitalismo e a democracia

Será compatível com o conceito de democracia, a contracção dos serviços públicos ao simbolismo ou a regressão do Estado a mero polícia da ordem dominante?

Para que pudéssemos responder a essa questão, teríamos antes de tudo, clarificar que conceito de democracia estamos a utilizar no debate.

Podemos pensar a democracia como prática política correspondente à participação popular na definição e concretização das orientações políticas, ou seja, como a participação concreta e directa das massas na vida colectiva. Esta democracia, que em grego corresponderá a laocratia, tem como desenvolvimento final e lógico o comunismo, ou seja, a total superação das relações sociais de exploração, por inexistência de propriedade privada, na medida em que a gestão colectiva ultrapassa a necessidade de uma hierarquização da propriedade e da sua utilização.

Por outro lado, podemos pensar a democracia como a forma de organização de uma sociedade e dos seus órgãos de soberania, ou seja a democracia como República, o correspondente ao grego Democratia. Esse conceito é infinitamente mais limitado e tem como resultado a organização social do estado sob a forma de uma "democracia parlamentar", assente nos princípios da democracia representativa. No caso da República Portuguesa, consequência das conquistas de Abril vertidas no texto constitucional, essa democracia formal é coexistente com uma democracia participativa, ou deveria ser. A República, enquanto forma de organização formal do Estado não limita por si mesma o aprofundamento e a manifestação de todas as outras formas de participação.

A questão que nos devemos colocar é: será possível manter ou aprofundar qualquer uma das formas de "democracia"? A resposta que me parece acertada é "não". Nenhuma democracia é compatível com a liquidação do papel do Estado nos serviços públicos e na economia. O mesmo é dizer que, no médio-prazo, existe uma contradição insanável entre capitalismo e democracia, seja a formal, seja a directa. Se considerarmos, como aos comunistas portugueses parece acertado, que a democracia se desenvolve em quatro vertentes interdependentes e interpenetrantes - cultural, social, económica e política - então, a liquidação da intervenção democrática em cada uma dessas esferas faz colapsar cada uma delas e, em última análise, a própria dimensão política da democracia - a formal.

O avanço do capitalismo é assim tendencialmente contraditório com as mais elementares formas de democracia. O que está em causa não é sequer o antagonismo entre o capitalismo e o socialismo, mas também a sua incompatibilidade concreta com a democracia, mesmo com a democracia burguesa. A concentração da propriedade e a gestão privada da economia retira de qualquer regime democrático a capacidade de definir seja o que for na organização da vida colectiva.

No entanto, não é menos correcto afirmar que quanto maior for o aproveitamento do potencial produtivo de um país, mesmo em contexto capitalista, mais se aproxima esse país da possibilidade de construção do socialismo. Tal afirmação parece decorrer da consideração do desenvolvimento dos meios de produção como condição para a superação do capitalismo. Aparentemente é criada uma contradição: se a concretização do potencial produtivo conduz a maiores possibilidades de superação do capitalismo, como pode o aprofundamento do capitalismo ser incompatível com a democracia. Tal aparente contradição é ultrapassada se tivermos em conta que o capitalismo não é o mesmo que o desenvolvimento da produção. Na verdade, mesmo ignorando os factores relativos à distribuição internacional do Trabalho, o capitalismo não significa produção, significa antes acumulação, pela via da apropriação dos resultados do trabalho sobre a forma de lucro, seja pela exploração directa do trabalho, seja por via da especulação que é igualmente uma apropriação de mais-valias, embora de forma indirecta.

O capitalismo não corresponde, pois, à intensificação da produção nem à generalização do Trabalho, aliás, quando a produção deixa de ser a preocupação central do capitalismo e quando o desenvolvimento dos meios de produção desacelera ou estagna, significa que o capitalismo atingiu os seus limites históricos. Ou seja, se enquanto o capitalismo implica um franco desenvolvimento da produção - porque a maximização do lucro é concordante com essa estratégia - se pode afirmar que existe uma espécie de exploração do Homem pelo Homem com resultados globalmente positivos apesar de assimétricos.

Já tal não se pode afirmar quando o objectivo do lucro passa a ser contraditório com a intensificação da produção, ou quando subordina a produção ao controlo financeiro, na medida em que, ao contrário do que se passa na fase que referimos anterior, já não há benefício global, mas apenas lucro para quem explora e empobrecimento para quem trabalha. Essa fase do capitalismo é contrária ao desenvolvimento social e económico e, como tal, frontalmente contraditória com a democracia, por mais formal que seja, e regride para o afastamento do limiar da superação do capitalismo.

Apesar de os processos históricos serem fluídos, constantes e dialécticos, não podemos entender os movimentos históricos como assimptóticos. Ou seja, está nas mãos da vanguarda, dos comunistas, dos trabalhadores e das suas organizações, partido e sindicatos, criar o sobressalto histórico necessário para que o capitalismo não se prolongue, oscilando entre as democracias formais e as ditaduras, para que o factual atingimento dos seus limites históricos corresponda a uma superação e não a uma regressão civilizacional.
Tal sobressalto é catalisado pela vanguarda, pelas organizações de classe dos explorados, mas só pode ser protagonizado com as massas.



Friday, October 11, 2013

da luta dos comunistas

De acordo com o discurso de encerramento do VII Congresso da IC, Dimitrov "A Unidade da Classe Trabalhadora contra o Fascismo", a posição dos partidos comunistas e do proletariado perante a democracia burguesa é definida em função do estado de desenvolvimento da democracia burguesa, dos riscos de fascização que ela comporta, da possibilidade real que a situação representa para a revolução socialista.

"Our attitude to bourgeois democracy is not the same under all conditions. For instance, at the lime of the October
Revolution, the Russian Bolsheviks engaged in a life-and-death struggle against all those political parties which, under the slogan of the defence of bourgeois democracy, opposed the establishment of the proletarian dictatorship. The Bolsheviks fought these parties because the banner of bourgeois democracy had at that time become the standard around which all counter-revolutionary forces mobilized to challenge the victory of the proletariat. The situation is quite different in the capitalist countries at present. Now the fascist counter-revoution is attacking bourgeois democracy in an effort to establish the most barbarous regime of exploitation and suppression of the working masses. Now the working masses in a number of capitalist countries are faced with the necessity of making a definite choice, and of making it today, not between proletarian dictatorship and bourgeois democracy , but between bourgeois democracy and fascism.
Besides, we have now a situation which differs from that which existed, for example, in the epoch of capitalist stabilization. At that time the fascist danger was not as acute as it is today. At that time it was bourgeois dictatorship in the form of bourgeois democracy that the revolutionary workers were facing in a number of countries and it was against bourgeois democracy, that they were concentrating their fire. In Germany, they fought against the Weimar Republic, not because it was a republic, but because it was a bourgeois republic that was engaged in crushing the revolutionary movement of the proletariat, especially in 1918-20 and in 1923.
But could the Communists retain the same position also when the fascist movement began to raise its head, when, for instance, in 1932 the fascists in Germany, were organizing and arming hundreds of thousands of storm troopers against the working class" Of course not. It was the mistake of the Communists in a number of countries, particularly in Germany, that they failed to take account of the changes that had taken place, but continued to repeat the slogans and maintain the tactical positions that had been correct a few years before, especially when the struggle for the proletarian dictatorship was an immediate issue, and when the entire German counter-revolution was rallying under the banner of the Weimar Republic, as it did in 1918-20."

Resumindo, com o risco assumido de introduzir simplismos numa avaliação tremendamente complexa, Dimitrov tenta sistematizar o posicionamento dos comunistas perante as democracias burguesas em duas abordagens consoante a situação concreta verificada em cada país, consoante o estado de desenvolvimento do capitalismo e consoante a correlação de forças. Assim, se num momento como o que antecede a Revolução Socialista de Outubro, a luta determinante é entre a democracia burguesa e a revolução socialista, já o mesmo não se verifica num momento como o da vigência da República de Weimar. Sobre isso ainda, Lenine, afirma:



"It would be a fundamental mistake to suppose that the struggle for democracy can divert the proletariat from the socialist revolution, or obscure or overshadow it, etc. On the contrary, just as socialism cannot be victorious unless it introduces complete democracy., so the proletariat will be unable to prepare for victory over the bourgeoisie unless it wages a many-sided, consistent and revolutionary struggle for democracy." 


"Seria um erro fundamental supor que a luta pela democracia pode resultar em diversão do proletariado perante a revolução socialista, obscurecê-la ou ensombrá-la, etc.. Pelo contrário, tal como o socialismo não pode ser vitorioso sem que introduza democracia total, também o proletariado será incapaz de preparar a vitória sobre a burguesia a não ser que trave uma multifacetada, consistente e revolucionária, luta pela democracia."

(V. I. Lenin Obras Escolhidas) Tradução minha do inglês.


Mas Lenine, como vemos, alarga o espectro da luta pelos direitos além da questão táctica e da dicotomia "fascismo vs democracia burguesa", ou seja, se do ponto de vista táctico, os partidos comunistas devem estabelecer os seus objectivos imediatos em função das condições concretas e avançar para a revolução socialista em situação de "estabilização capitalista", ao mesmo tempo que devem organizar a frente popular e a unidade do proletariado contra o fascismo em defesa dos direitos democráticos e da própria democracia burguesa em caso de real risco e de ascensão potencial da ditadura violenta dos monopólios.

De acordo com a perspectiva de Lénine, a luta pelas conquistas democráticas e pelo aprofundamento da democracia (mesmo no contexto de domínio da burguesia) perpassa os enquadramentos e os diferentes cenários da correlação de forças de classe. É pois, assumida como uma questão de princípio.

Wednesday, October 09, 2013

notas sobre a relação do artista com o estado

Não é questão totalmente resolvida a do papel e posição dos criadores artísticos, indiviuais e colectivos, perante a sociedade. Essa questão está em constante evolução e coloca-se quer para o actual estadio de desenvolvimento, quer para os que se lhe sucedam, socialismo e comunismo. Se por um lado, o sistema capitalista encontra na cultura e na arte, instrumentos de difusão da doutrina dominante e dos comportamentos que lhe estão associados, não deixa de existir uma intenção material, além da ideológica.

Na verdade, uma é outra: a intenção ideológica de afirmação e consolidação da hegemonia cultural serve o aumento da capacidade de exploração dos grandes grupos económicos e dos monopólios. Mas no que à Cultura diz respeito, tal como em algumas outras áras, nem tudo se resume ao lucro directo, já que os grupos económicos compreendem o valor ideológico, filosófico e imaterial do domínio cultural, apesar de esse poder não gerar, por si só, mais-valia passível de apropriação. No entanto, em última análise, no curso do desenvolvimento das relações capitalistas, a cultura e a arte preencherão simultaneamente ambos desígnios: lucro e hegemonia. Facilmente tal se antevê pelo simples facto de estar já em curso uma política que subsome a oferta cultural à oferta de mercado.

Tal opção, de classe, satisfaz amplamente os anseios dos grupos económicos:
por um lado assegura uma cultura dominante que reproduz as lições filosóficas e ideológicas da classe dominante destinadas às classes exploradas, por outro assegura o domínio da difusão cultural por monopólios, com a consequente proletarização do artista e dos profissionais das artes e a apropriação das correspondentes mais-valias. A evolução desse processo criará dois mercados distintos qualitativa e quantitativamente, ambos lucrativos: o mercado cultural das elites e o mercado cultural de massas; o primeiro - adorno, o segundo - agente entorpecedor.

Estamos, pois, nesta circunstância nos dias que correm, presenciamos um processo que se desenvolve no sentido da supressão da criação artística livre e da concretização de uma monocultural global para as massas. Qual a resposta? Qual o papel da Cultura ante a Constituição da República Portuguesa? Quais as soluções no contexto da construção do socialismo?

A intervenção do Estado na política cultural é decisiva. Para os comunistas, e em Portugal para o PCP, especificamente, essa intervenção não pode ser concreta, nem directa. Ou seja, o Estado não é produtor de conteúdos culturais, nem de obras, nem actua especialmente como agente programador. Para os liberais, o Estado, enquanto instrumento da classe dominante, deve usar todos os seus meios para sufocar a produção independente, deve retirar-se dos apoios à produção e distribuição e deixar única e exclusivamente esse papel para os privados que escolherão em função dos seus objectivos e dos seus potenciais lucros. 

Ora, como garantir a intervenção do Estado na medida certa, sem intromissão de gosto e de classe, permitindo que sejam as massas a criar e a moldar a própria arte e cultura? A CRP responde com uma tremenda criatividade e acertada justeza: delega no movimento associativo o papel de criar, distribuir e exibir, de produzir e promover, a elevação cultural da comunidade e a própria diversidade. Ou seja, a Constituição consagra o papel das massas na política cultural, tal como em outras áreas da vivência comum e responsabiliza o Estado enquanto organização pelas condições necessárias para a concretização desse papel do movimento associativo.

É um documento audaz, fruto de uma construção audaz do povo português - a revolução de 1974 e suas conquistas - e é de uma beleza política extraordinária: é uma constituição da república que preconiza o estado como organização e as massas, o povo, como o verdadeiro objecto do Estado. Na política cultural, essa concepção está bem clara.

A prática política tem vindo, no entanto, a distanciar-se cada vez mais das formulações constitucionais, força das políticas de direita que vêm reconstituindo o poder dos monopólios e destruindo paulatinamente as conquistas da revolução e as várias dimensões da democracia portuguesa.

A posição do artista, do trabalhador das artes e da cultura, à luz da constituição da república é claramente próxima da solução que se adoptaria num sistema socialista. O artista, colectivo ou individual, é política e estéticamente autónomo mas conta com o apoio do Estado para concretizar o seu trabalho, na medida em que, assegurando um direito fundamental dos seres humanos (criar e fruir) não pode estar sujeito ao acolhimento dos mercados geridos pelos grandes interesses económicos. A concretização da liberdade de criação - valor humano - é pois dependente da verificação das condições próprias para a realização da criação artística como trabalho - valor social.

A resposta do capital é a da proletarização, da sujeição do trabalhador das artes ao gosto e ao desígnio ideológico do proprietário dos meios de produção, assim comprometendo da sobrevivência do criador, que passa a depender estritamente de uma relação precária e sem espaço de autonomia criativa. Essa resposta tem um obstáculo claro na Constituição Portuguesa, mas um aliado firme nos partidos da burguesia.

Thursday, October 03, 2013

neste momento

a dúvida que se me coloca é se Abril pode ser cumprido com o que de Novembro resultou.

Wednesday, October 02, 2013

ainda a escola dual

Não poucas vezes, principalmente entre aqueles profissionais que dedicam a sua vida e trabalho às escolas e à Educação, surgem inúmeras dúvidas, e legítimas, sobre as posições críticas em torno da chamada Escola Dual e sobre as “vias vocacionais”. Falta de compreensão justificada quer pela forma como se entregam ao combate pelo sucesso escolar dos estudantes que acompanham, quer pela situação social com que se defrontam e que significaria, muito provavelmente, na ausência de respostas próprias, o abandono escolar de milhares de jovens.

Hábeis são as armadilhas ideológicas com que a classe dominante mina o argumentário pseudo-social com que justifica a profunda desfiguração que vai impondo aos sistemas educativos, em vários locais do mundo, sendo um deles Portugal.

A tese mais difundida e que, aparentemente, mais colhe é a de que as vias profissionalizantes, vocacionais e profissionais são a forma de “diversificar a oferta educativa” para dar resposta à desmotivação de muitos jovens que abandonariam a escola na ausência dessas vias. Outros tantos afirmam ainda que estas vias devem ser encaradas como a única forma de manter nas escolas os jovens que não têm vocação para o prosseguimento de estudos. Estas duas teses, por si sós, suscitam logo um vasto conjunto de considerações, dúvidas e respostas.

Por um lado, se aceitamos que existem vias de escolarização especialmente dedicadas a jovens de grupos susceptíveis de abandonarem em massa a escolaridade, isso significa que aceitamos que a escola deve tratar de forma diferenciada as diversas camadas e classes sociais. Essa consideração pode não ser errada, na medida em que a Escola Pública, para assegurar sucessos escolares equiparáveis entre as classes sociais, deve mobilizar para as camadas mais pobres mais meios do que para as camadas mais ricas. Todavia, a desqualificação das vias profissionalizantes, vocacionais, tem significado oposto. Há um facto que não pode ser, de forma alguma, ignorado ao percorrer o caminho de raciocínio que este artigo traduz: o insucesso e o abandono escolar não são fenómenos imunes ao efeito de classe, antes pelo contrário, são resultado das assimetrias socias entre classes e da degradação das condições de vida das camadas exploradas ou marginalizadas da sociedade capitalista. Assim, a criação de respostas para as camadas juvenis expostas aos fenómenos do abandono e do insucesso é, na prática, o mesmo que a criação de respostas para as camadas mais empobrecidas da população, as camadas trabalhadoras. Posto isso, pergunta-se se enquanto comunista posso ser contra a existência de respostas educativas próprias para combater as dificuldades com que defrontam esses jovens. Claro que não. A Escola Pública e o Estado têm a obrigação de mobilizar todos os meios para garantir que a condição social do jovem não age como determinante no seu percurso escolar, académico e formativo. Essa obrigação passa, pela eliminação de mecanismos de triagem social que reproduzam as assimetrias de origem e isso significa que a Escola deve estar munida dos meios, recursos, e instrumentos administrativos que lhe permitam colocar o estudante filho de trabalhadores em pé de igualdade perante o conhecimento e a técnica, quando comparado com o filho das camadas mais ricas da população.
A cristalização em torno dos “conceitos modernos” de “formação em contexto laboral”, de “ensino dual”, de “ensino vocacional”, que conquista os mais incautos e dedicados profissionais da educação, contribui para uma regressão social e civilizacional que transporta Portugal para o passado e aprofunda o papel do Estado como instrumento da classe dominante. O facto de existirem pesados indicadores de abandono e insucesso escolares, fruto da necessidade de muitos jovens ingressarem precocemente no mercado de trabalho ou na obtenção de meios de forma marginal, deve pois ser combatido pela capacitação da Escola Pública no âmbito do número de profissionais, professores, pedagogos, psicólogos, auxiliares de acção educativa, mas também pela qualificação do processo educativo, pela sua modernização e permanente melhoria. A acção social escolar, verdadeiramente digna, tem igualmente o dever de criar as condições para a frequência escolar e acesso ao conhecimento por parte de todos os estudantes.

Estas duas considerações podem ser simplificadas da seguinte forma:

1.       A Escola não deve desqualificar a resposta de classe, como forma de reproduzir a assimetria pré-existente, mas antes qualificar a resposta de classe como forma de gradualmente eliminar essa assimetria. Não é aceitável que os filhos das camadas mais empobrecidas e exploradas sejam considerados à partida como intelectualmente desfavorecidos ou desprovidos de vocações adequadas à aquisição de conhecimentos, enquanto que os filhos das camadas mais ricas são, só por deterem a origem de classe que detêm, vocacionados para o desempenho das mais qualificadas profissões e para o acesso ao conhecimento e à cultura aos mais elevados níveis. A mais suave aceitação desses pressupostos levar-nos-ia para uma sobrenatural distribuição da inteligência de acordo com os meios económicos entre os seres humanos.


2.       A acção social escolar não pode representar um apoio na miséria, nem um mero fingimento. A acção social escolar só pode ser entendida como o conjunto de mecanismos que possibilitam ao filho do trabalhador estar em exacto pé de igualdade com o filho do patrão perante o acesso e a frequência escolares. Ou seja, a gratuitidade do ensino é uma questão fundamental para ultrapassar as barreiras sociais e económicas que estão na origem do problema que o ensino vocacional diz querer resolver. A acção social escolar só é efectiva se o estudante carenciado estiver perante a Escola com o mesmo grau de exigência social e económica que o Estudante não carenciado. Se todo o Ensino for absolutamente gratuito, então à acção social escolar basta assegurar que a família carenciada não tem de fazer um esforço superior às restantes para ter os filhos a estudar.

Se já partirmos com essas considerações assumidas, ou pelo menos debatidas, o debate sobre o ensino dual torna-se mais fácil e a posição que se lhe opõe torna-se mais compreensível. Não se trata, pois, de estigmatizar um tipo de “ensino”, nem tampouco aqueles que o frequentam ou os que nele trabalham, mas sim de não aceitar que pode o Estado criar uma via de ensino desqualificado e orientado para a formação profissional  exclusivamente para os filhos das classes exploradas. A propaganda do “ensino ou formação em contexto laboral” que surge apregoado como a solução para os problemas de falta de trabalho para os jovens assenta no dogma da reprodução da assimetria, caso contrário, porque não são os filhos dos ricos também formados nessas circunstância? Se a formação em contexto de trabalho é tão espectacular, por que acaba sendo apenas dirigida para os filhos dos trabalhadores?

A defesa de um sistema dual, ou ainda mais ramificado, assenta num preconceito classista que determina que apenas os jovens mais ricos podem aceder aos mais elevados níveis de conhecimento e que para os restantes se considera já um sucesso o facto de aprenderem a fazer uma ou duas coisas de jardinagem. No essencial, com isto a classe dominante deixa de dispender de meios para proceder à formação profissional dos trabalhadores e passa essa responsabilidade para o Estado que depois vende essa formação profissional como uma medida social e económica. 

A escolaridade obrigatória deixa de ser um direito para ser convertida numa espécie de formação profissional compulsiva.


A defesa de um sistema dual comporta ainda uma postura política mais grave: a da aceitação da assimetria de origem como insanável e a da abdicação do direito a uma Escola Pública de Qualidade para todos. Ou seja, perante a realidade social, abdicamos de lutar pelo direito de todos a aceder aos mais elevados graus do conhecimento, da cultura, da arte. Aceitamos que para uns, deus ou a classe dominante, reservaram o acesso a saber desempenhar tarefas, a manifestar competências e a outros foi dado o supremo direito a serem formados como indivíduos conscientes, críticos e criativos. O sistema capitalista, a classe dominante, assegura assim que a crítica e a criatividade fiquem reservadas precisamente àqueles que as utilizarão para aprofundar a exploração e jamais para a eliminar. 

Friday, May 31, 2013

processo revolucionário

"Lenine elaborou a teoria do desenvolvimento contínuo do processo revolucionário, da transformação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista, sob condição de que a classe operária tivesse um papel hegemónico na própria revolução democrática-burguesa."

in Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, Álvaro Cunhal, 1971
relembrado via leitura capital

Wednesday, May 22, 2013

a luta pela natureza é a luta pelo socialismo (ii) - 2013

A intensificação da exploração capitalista e da correspondente ofensiva ideológica veio remeter para segundo plano as fingidas preocupações ambientais do sistema. Dada a degradação das condições materiais da generalidade da população dos países capitalistas, a sensibilidade ambiental tão apregoada sofreu forte abalo. Esse quase ocaso da propaganda ambiental pode reflectir a real intenção com que era utilizada: criar focos de contenção e diversão, em torno de justas preocupações populares e criar um invólucro "ambientalista" a um conjunto de países ditos "desenvolvidos", enquanto na verdade os monopólios continuavam - como hoje continuam - a delapidar intensivamente os recursos naturais sem quaisquer preocupações com a sustentabilidade e equilíbrio dos ecossistemas.

Tendo em conta a ligação efectiva entre economia e ecologia, a sua interpenetração e interdependência, não podemos abdicar de, mesmo em contexto de crise financeira e económica do sistema capitalista, colocar como central a luta pela natureza e pela gestão popular e democrática dos recursos naturais, partindo desde já para a defesa da sua posse comum.

O desenvolvimento das relações sociais no quadro capitalista conduzem a uma socialização da produção com apropriação privada do produto, e essa socialização da produção é, em grande medida, consequência do desenvolvimento dos meios de produção. Também na luta pelo equilíbrio ambiental e pela preservação da natureza devemos ter em conta a constante evolução dos meios de produção e da tecnologia. 

Assim, acrescento apenas ao artigo de 2007, o seguinte:

Ao contrário do que possa parecer para muitos defensores da natureza, a relação da humanidade com a natureza é tanto mais estável quanto mais desenvolvidos se encontrarem os meios de produção e quanto mais socializado for o processo produtivo, associado a uma distribuição social da riqueza. O primitivismo, a defesa da estagnação do desenvolvimento, não corresponde nem à satisfação das necessidades materiais do ser humano, nem às necessidades que o equilíbrio ecológico impõe. A regressão tecnológica ou a estagnação do desenvolvimento técnico, científico e mesmo industrial, constituiriam factores de regressão social e ambiental catastróficos. 

A ilusão de um retorno a uma vida despojada de tecnologia é apenas sustentável em pequenas comunidades, pois mesmo as opções de vida ambientalmente menos prejudiciais que são tomadas por alguns só podem coexistir com a abundância material num contexto de utilização de tecnologia avançada. Ou seja, a auto-produção alimentar, a horta urbana, a reciclagem caseira, a eventual produção caseira de energia, por exemplo, são procedimentos que não negam o desenvolvimento tecnológico, antes que dele dependem e cuja eficiência com esse desenvolvimento cresce.

Confluem para a salvaguarda do substrato ambiental então, precisamente os mesmos dois factores que concorrem para a superação do Capitalismo: o desenvolvimento dos meios de produção e a luta de classes. 

a luta pela natureza é a luta pelo socialismo (2007)

Não passa um dia que não vejamos umas poucas centenas de jovens ecologistas preocupados. Ultimamente até mesmo as empresas, as grandes companhias, corporações e grupos económicos dinamizam campanhas supostamente ecologistas.

De facto, regista-se uma destruição da Natureza a um ritmo alucinante, provavelmente com impactos diferentes dos que nos querem fazer crer, mas bastante mais visível do que outrora. Mais visível, porque o capital descobriu na publicidade da devastação ambiental um novo filão comercial e porque hoje a informação circula a uma velocidade e permeabilidade significativamente superiores quando comparadas com outras alturas da história do capitalismo.

Já não pode passar despercebido o esforço que o capital faz para controlar os rios de descontentamento que correm por esse mundo fora. Hoje em dia é ver os grandes grupos económicos a carimbar a sua imagem de marca sobre acções supostamente humanitárias ou ecologistas. Na verdade, o capital tem perfeita consciência de que os problemas da humanidade e da sua relação com a Natureza se agravam e de que as populações manifestam uma preocupação crescente para com os desequilíbrios que se agigantam. No entanto, nunca poderia o capital permitir que a humanidade procurasse as respostas para o problema. Não. Em vez disso, o capital apressa-se a criar as suas próprias respostas. Nunca procurando uma solução efectiva, porque essa seria a sua própria destruição, o capital move as suas influências promovendo colossais campanhas publicitárias em torno de questões que hoje preocupam genericamente as populações, nomeadamente as populações dos países desenvolvidos, tendo em conta também a sua maior acessibilidade à informação.

Assim, como forma de desfocar o descontentamento popular e de promover a ideia de que o capitalismo pode tratar as suas próprias feridas, desenvolvem-se campanhas astronómicas de publicidade / propaganda em torno das questões ambientais. Muitas vezes, talvez na quase totalidade, as campanhas promovidas pelas diversas marcas ultrapassam o simples pendor publicitário e enquadram-se perfeita e conscientemente numa campanha de propaganda ideológica sub-reptícia. 

Se, por um lado, o simples aparecimento de uma etiqueta que ostenta “ecológico”, “combate as alterações climáticas” ou “amigo do ambiente” na nossa embalagem de leite ou de arroz, ou mesmo no bilhete da carreira urbana, gera uma nova forma de incremento dos preços ao consumidor, aumentando portanto os lucros das empresas que optam por usar estas terminologias mesmo que não mudem nada no seu funcionamento interno; por outro lado, este conjunto de sinais que o capitalismo nos vai dando gera a ideia de que existe uma supra-consciência que tomará as necessárias medidas para que a Terra e a Natureza não colapsem sobre nós. Algo ao género da mão invisível a que o Capital nos habituou.


As contradições, porém, não cessam por aqui.

Ao mesmo tempo que o Capital nos faz crer de que está consciente dos seus excessos, e que deles trata, coloca sobre as populações o ónus do pagamento e a responsabilidade sobre os crimes que o próprio sistema capitalista tem vindo a cometer perante a Natureza.

Assim, a classe que domina os recursos naturais do planeta e que exerce o poder determinante perante as relações laborais é exactamente a mesma que tem acumulado crescente e aceleradamente os lucros da exploração intensiva da Natureza. A burguesia.

A burguesia tem, portanto, acumulado e arrecadado os lucros provenientes da exploração da Natureza, concentrando num punhado cada vez mais reduzido de grupos económicos destacados para o efeito o produto da exploração do trabalho e do trabalho sobre a Natureza. Subjacente a estas manobras de propaganda e ofensiva ideológica está claro o objectivo de maior geração de mais-valias pela exigência que se traduz em aumento de preços sob a capa de “custos ambientais”; mas mais grave, está também o objectivo de desresponsabilizar a corja que beneficiou ao longo destes anos de desenvolvimento capitalista.

Colocando a responsabilidade pela degradação ambiental no povo que usufrui dos produtos gerados no sistema capitalista de produção, a própria burguesia ganha em duas frentes, a frente material pela criação de um novo mercado de oportunidade capitalista e a frente subjectiva pelo branqueamento do seu papel histórico de extinção dos recursos naturais ao seu serviço e para seu uso praticamente exclusivo.

Os meios de produção – o seu desenvolvimento e a relação com a Natureza

A história mostra-nos bem, particularmente desde o despontar da revolução industrial, que o desenvolvimento dos meios de produção nos modelos em que a Humanidade o levou e leva a cabo, implica uma relação com a Natureza de grandes proporções. O desenvolvimento dos meios de produção, ao longo da história das sociedades humanas tem dois vectores de interacção com a Natureza, geralmente acarretando custos junto da sua capacidade e ritmo de regeneração. O primeiro vector é o da exploração de recursos para promover o desenvolvimento dos meios de produção - a ferramenta, a máquina, o combustível, ou outros meios de produção são desenvolvidos à custa de matérias-primas naturais, extraídas da Natureza. O segundo vector é o da influência do meio de produção junto da Natureza propriamente dita – a poluição, o desperdício ou o incremento do ritmo de extracção.

Assim, quando observamos o fenómeno de desenvolvimento dos meios de produção, estamos perante um ciclo de influências recíprocas que advém da capacidade criadora do Homem, pela via do Trabalho. Desde os primórdios da sociedade humana, o homem interage com a Natureza na perspectiva do Trabalho, o que provocou desde cedo uma iniciativa extractiva e transformadora dos recursos naturais. Primeiro a pequena escala, hoje numa escala vastíssima e praticamente global. A utilização das primeiras ferramentas pelo Homo habilis era feita recorrendo a produtos da Natureza submetidos a processos de transformação mínimos e essencialmente mecânicos. Hoje o Homem utiliza ferramentas bastante mais desenvolvidas, produzidas por via da transformação dos recursos naturais, muitas vezes recorrendo a processos mecânicos mas generalizando também os processos químicos.

O domínio cada vez mais forte das leis da Natureza tem permitido às sociedades um desenvolvimento brutal dos meios de produção. Ainda assim, podemos verificar que, no geral, esse desenvolvimento tem sido orientado pelas necessidades do capitalismo e da burguesia dominante ao invés de ser dirigido pelas verdadeiras necessidades das populações, independentemente do seu local de origem ou da sua relação com o capital e com o sistema produtivo. É um facto incontornável que os meios de produção e os mecanismos especulativos gerados em seu torno têm sido concebidos e desenvolvidos exclusivamente ao serviço da classe dominante. Potenciando e maximizando a capacidade produtiva do sistema, não para beneficiar o Trabalho, mas para garantir os privilégios crescentes do Capital.

A teoria da distribuição dos “custos ambientais” pelo consumidor – ou seja, pelos trabalhadores – parte do pressuposto que todos gozaram igualmente dos frutos imateriais e materiais do processo produtivo ao longo da história, o que não é de todo verdade. Desde sempre, o capitalismo tem garantido a concentração do capital, a acumulação de mais-valias do Trabalho tal como sempre tem garantido a acumulação dos lucros gerados pela exploração dos recursos naturais no mesmo punhado de ciclos restritos – obtidos também eles pela exploração do Trabalho.

Olhando aos últimos 200 anos da História do sistema capitalista que a dominou, facilmente verificamos que os frutos e lucros da exploração de recursos naturais não tiveram uma justa distribuição pela população mundial. Mesmo não contabilizando o período propriamente colonial dos impérios europeus, verificamos facilmente que a exploração dos recursos do globo não gerou lucros para as populações, mas sim sempre para a classe dominante. As classes trabalhadoras de África nunca viram distribuídos por si os lucros da exploração intensiva e irracional dos seus recursos naturais, mesmo aquelas que habitam os Estados que dispõem de colossal riqueza natural. O mesmo se passa por todo o Globo. Com efeito, os lucros obtidos através da transformação ou venda directa dessas mercadorias, sempre foram concentrados na classe dominante.

Mesmo nos países onde se verificam estados mais avançados de produção e onde os trabalhadores atingem níveis de vida significativamente melhores que alguns países africanos, o lucro é acumulado nas classes dominantes. A luta dos povos da Europa, indissociável das conquistas da Revolução de Outubro e da proximidade da União Soviética, garantiu-lhes até hoje, uma qualidade de vida bastante melhor que aos seus camaradas trabalhadores de outros países, mas isso não impede de forma alguma que se verifique uma forte concentração do lucro na classe dominante, ainda que com menor alarvidade que nas regiões em que o capital não foi confrontado com as lutas do povo de forma tão sistemática como na Europa.
O que se pode concluir pela simples observação deste período histórico é que a riqueza adveniente da produção com base nos recursos naturais tem sido sempre concentrada cumulativamente na posse das franjas capitalistas da classe dominante. Isso significa que os “custos ambientais” não podem ser hoje lançados sobre as classes trabalhadoras, já que não foram estas quem usufruiu em maior escala dos benefícios da utilização da Natureza.

Nós sabemos que a evolução do Homem é, desde o desenvolvimento da Ferramenta para o Trabalho, feita numa estrita relação com o desenvolvimento dos meios de produção – ou seja, a nossa evolução social, económica e mesmo biológica está intimamente relacionada com o Trabalho e a forma como o diversificámos e hoje o executamos com recurso à Ferramenta. O Homem transforma a Ferramenta em vez de transformar a sua fisionomia significativamente. Isto significa que a interacção entre o Homem e a Natureza, a sua forma e o seu grau, também são determinados pelo grau de desenvolvimento da sociedade do Homem, que está, por sua vez, relacionado com o estado de desenvolvimento dos meios de produção.

Embora o Homem seja a parte da Natureza que tem consciência sobre si própria e sobre a restante que a rodeia, isso não significa que essa consciência seja imutável. Pelo contrário, o desenvolvimento do Homem ao longo da História, a evolução, mostram-nos bem a capacidade de transformação e aprofundamento da consciência do ser humano. A consciência do Ser Humano sobre si e sobre a Natureza que o inclui e rodeia está em constante modificação, fruto da relação entre a sociedade do Homem e a Natureza e, claro, fruto das diversas correlações de forças entre classes sociais do Homem que, conforme a dominante, orientam a criação e formação das consciências individuais e colectiva segundo os seus interesses.

O desenvolvimento económico e social da sociedade humana seguiu um modelo que parece incontornável: o da evolução tecnológica como forma da melhoria da qualidade de vida e da obtenção de mais-valias materiais através da Natureza. A tecnologia foi, no entanto, campo vasto de experiências e de investigação e desenvolvimento, sendo que passa por diversas fases.

Independentemente de outras possibilidades que pudessem existir, a história mostra que o desenvolvimento do Homem foi levado a cabo com base nesse desenvolvimento tecnológico em relação com a exploração da Natureza. Esse foi o natural desenrolar da história enquanto processo. A consciência do Homem sobre os impactos dessa acção teve fluxos e refluxos, e só o avançar da ciência permitiram o aprofundamento dessa consciência, motivando assim, em alguns casos a procura de novas soluções tecnológicas com menores impactos sobre o meio.

Ora, independentemente de quem usufrui dos benefícios da exploração dos recursos naturais, nada indica que o processo de desenvolvimento dos meios de produção pudesse ter sido feito de outra forma. Ou seja, a evolução da sociedade e da sua capacidade produtiva é feita com base na exploração da Natureza.

Se hoje podemos claramente constatar o sistema capitalista como uma incontornável fase da História da Humanidade, também podemos estabelecer como dado objectivo que o desenvolvimento dos meios de produção é feito à custa do meio e dos recursos naturais de que dispomos. Resta analisar agora que diferenças se podem verificar de ora em diante, sendo que a consciência humana pode progredir no sentido de uma gestão racional e equilibrada dos recursos à sua disposição, na razão directa da força das classes oprimidas e da sua capacidade de se tornarem dominantes.

O desenvolvimento tecnológico e o seu impacto na capacidade produtiva vai gerando modificações no Trabalho e nas sociedades sem que, no entanto, tenha até hoje provocado uma alteração nas relações de classe. Isto significa que o aperfeiçoamento dos mecanismos de produção e o aumento dessa produção têm beneficiado ao longo da História, a classe dominante. Excluindo o conjunto de países socialistas, cujas economias e sua gestão democrática possibilitou uma mais justa distribuição dos frutos do Trabalho pelos povos, a generalidade dos estados tem visto as suas riquezas naturais transformadas em riqueza imaterial que se concentra sempre no grande capital transnacional. Mesmo os ex-países socialistas de Leste viram as suas riquezas serem entregues ao desbarato aos senhores do capital, assim que a democracia ruiu e o sistema político cedeu à força brutal do Ocidente e da corrupção instigada. Isto significa que, do processo produtivo ao longo de praticamente todo o planeta e de toda a História dos dois últimos séculos, todos os frutos têm sido concentrados sob a forma de mais-valias de que o patronato se foi apropriando.

A concentração do capital atinge níveis nunca conhecidos, com o crescente processo de globalização capitalista, e os processos produtivos, pela força do desenvolvimento dos meios de produção e dos mecanismos de exploração, são hoje efectuados com uma eficiência que nunca se vira na História. Isto também implica que a acumulação de lucros provenientes do actual modelo económico é crescente.

Assim, o aparente paradoxo que gira em torno do conceito da distribuição do “custo ambiental” começa a ruir para dar lugar a um mecanismo de ampliação do lucro e do poder da classe dominante.

Se os frutos do processo produtivo foram sistematicamente arrecadados pela burguesia e pelo grande capital e se a delapidação dos recursos naturais gerou lucro, significa que a mais-valia dessa exploração foi apropriada. Logo, os “custos ambientais” mais não representam do que exactamente essa componente de lucro que sempre foi acumulada e que continua a gerar desigualdades e a agravá-las. A burguesia não está disponível para assumir que foi ela quem arrecadou esses lucros, materiais e imateriais.

As populações, os trabalhadores sempre ficaram apenas com o indispensável à continuidade da sua capacidade produtiva, sem nenhuma margem de lucro proveniente da exploração das riquezas naturais.

O facto de o funcionamento do método de produção capitalista ter sido erguido sobre a exploração desenfreada dos recursos não significa que os novos patamares tecnológicos que a Humanidade pode atingir não tragam possibilidades de gestão de recursos de forma verdadeiramente integrada, atentando às capacidades regenerativas da Natureza, como forma de garantir a subsistência do Homem enquanto espécie e a sua sobrevivência digna para todos os povos da sociedade humana.

A gestão capitalista dos recursos naturais e o stress e esgotamento da Natureza

A natureza do sistema capitalista, tal como Marx já a descreve, consiste na permanente acumulação e crescimento. Segundo Marx, o Capital ou se reproduz e cresce, ou definha e morre. Esta tese marxista, mais provas necessitasse, está totalmente comprovada pela própria história e pelo comportamento do capital ao longo do tempo.

É essa natureza do capital que faz com que o capitalismo seja incompatível com a gestão dos recursos naturais ao serviço das necessidades do Homem, sendo que a economia, a ciência e a produção é colocada exclusivamente ao serviço da geração imediata de lucro. A mecânica do capitalismo é tão distante da gestão racional que chega a dar origem a paradoxos tão complexos como a cessação de produção de um bem necessário, pelo simples facto de não ser lucrativo em termos imateriais para os detentores de capital. Se uma determinada população, por exemplo, carecer de uma vacina em massa, a produção pode não satisfazer as necessidades só porque não é uma produção rentável. O método de produção do capitalismo não é orientado para responder às necessidades das populações, como está bem visto e verificado, mas sim para a transformação da matéria em lucro que se acumula. Ao mesmo tempo, o capitalismo desenvolve gigantescas produções que, apesar de não satisfazerem quaisquer necessidades, se mostram particularmente lucrativas, como é o caso das drogas e estupefacientes sem fins medicinais ou mesmo, bem mais próxima de todos, a miríade de superfluidades e extravagâncias de luxo, por exemplo.

Estas incongruências do actual sistema de produção demonstram bem que as classes dominantes exercem sobre a Natureza uma pressão e uma exploração que visa a obtenção de lucros imediatos, mesmo que isso signifique o stress bio e geológico acentuado ou a destruição dos recursos.

Mais do que as necessidades da população mundial, o que neste momento orienta a relação do Homem com a Natureza, são as necessidades de crescimento e acumulação capitalista.
A sustentabilidade do Homem depende da integração com a Natureza, sendo que a sua sobrevivência depende irrevogavelmente da abundância de recursos.

O actual modelo produtivo tem provocado uma degradação rápida e acentuada dos valores naturais, quer no plano da sua exploração, quer no plano da sua inutilização por contaminação poluente. Na verdade, não são as necessidades de consumo e produção das populações que têm gerado a aproximação ao esgotamento dos recursos naturais, mas sim a ânsia desmedida de lucro e o parasitismo das classes dominantes. No entanto, é bem patente, no âmbito da actual e gigantesca ofensiva ideológica que é promovida pelo capital, a tentativa de responsabilização do conjunto das populações pela delapidação criminosa levada a cabo até hoje.

Mesmo no plano material, os benefícios da exploração da Natureza, têm sido concentrados nas classes dominantes, sendo que são estas quem utiliza irresponsavelmente e indiscriminadamente os recursos para a satisfação de luxos profundamente irracionais. No plano dos combustíveis fósseis e dos hidrocarbonetos, por exemplo – questão que hoje supostamente tanto preocupa as sociedades capitalistas – a campanha de desresponsabilização capitalista vai ao ponto de colocar a responsabilidade nas opções dos últimos anos das populações ocidentais, ou seja, dos trabalhadores dos países europeus e americanos, principalmente.

Mas vejamos: as deslocações de milhões de trabalhadores entre casa e trabalho são feitas em transporte individual por sua opção própria? Serão os próprios trabalhadores os autores dessa opção? E seria alguma vez, essa opção, consciente?

Se olharmos à forma como o poder dos Estados, submisso que sempre está aos interesses do capital, gere o território e planifica a utilização dos seus recursos, rapidamente verificamos que as verdadeiras opções residiram, não nas populações, mas sim no capital e nos Estados que controla. É a vontade do lucro que dinamiza avassaladoramente um mercado automóvel claramente acima das necessidades, e mesmo possibilidades, fomentando a utilização do transporte individual acompanhada de uma destruição de redes integradas de transportes públicos e de uma política de especulação imobiliária que desertifica os corações geográficos e económicos dos centros urbanos. Olhando assim, torna-se claro que afinal a opção não é senão uma imposição colocada aos trabalhadores pelas condicionantes de um sistema político e económico vassalo do capital e da burguesia.


É, portanto, óbvia a responsabilidade do capital na delapidação dos recursos naturais e na concentração no usufruto dos seus benefícios. E é curioso verificar que, ao mesmo tempo que vai destruindo a Natureza, o capital vai reservando os nichos naturais de qualidade para si próprio e para as classes que orbitam em seu torno, arredando da Natureza intacta as populações e reservando para si próprio o acesso e a utilização dessas porções intactas ou semi-intactas do meio natural.

É assente, além de lógico, que a sustentabilidade das sociedades humanas está condicionada pela disponibilidade de recursos. Mais, a gradual ascensão da qualidade de vida, está condicionada pela gestão racional dos recursos, permitindo a sua regeneração. O que se verifica hoje é um esgotamento dos recursos a um nível que coloca em risco a existência da espécie humana. Mas porquê? porque as necessidades da Humanidade assim exigem? Não. Apenas a acumulação de lucros o exige. A gestão dos recursos, fosse levada a cabo no sentido de criar resposta às necessidades das populações, não exigiria de forma alguma a destruição galopante da Natureza e das suas riquezas. Prova disso é que actualmente se produz cerca do dobro do que seria necessário para alimentar toda a população do planeta e ainda assim, a produção não chega a metade da população, o que significa que 50% da Humanidade arrecada praticamente 100% da produção e/ou que 50% da produção é supérflua.

É importante, nesta fase, reforçar a diferença que existe entre “sustentabilidade do Homem e das suas necessidades” e “sustentabilidade do Sistema capitalista”. Este último conceito é o que verdadeiramente é representado com a actual utilização dos termos “desenvolvimento sustentável”. Na verdade, o capital promove uma abordagem igual à que sempre tem promovido e praticado, dando-lhe, no entanto novas formas que lhe permitam obter lucro também desta preocupação ambiental que se vai gerando. O termo “desenvolvimento sustentável” no âmbito da utilização que lhe é dada actualmente não representa desenvolvimento, nem é sustentável. Na verdade o que a burguesia pretende é não opor “capitalismo” e “Natureza”, o que é em si mesmo, uma impossibilidade prática e abstracta.
Podemos então representar esta prática, que resulta desta observação da realidade, no plano abstracto:

I.Se a matriz e natureza do capitalismo assentam na procura do lucro e na sua maximização;

II.Se a procura do lucro nunca obedeceu nem se coibiu, ao longo da história, às e perante as necessidades da população mundial;

III.Se a sobrevivência das espécies, nomeadamente do Ser Humano, não são condicionantes à acção do Capital;

IV.Se o Capital tem a necessidade de constante crescimento, sob pena de definhamento; 

V.Se os recursos naturais são, na generalidade finitos e a sua exploração pode ser rentável do ponto de vista da criação de riqueza material e imaterial;

VI.Então, o capital acumulado e gerado cresce na proporção da destruição dos recursos naturais;

VII.Logo, existe uma contradição insanável entre Capitalismo e preservação da Natureza.


Mas novas realidades entretanto surgem. A reutilização e reciclagem dos produtos e dos recursos, originando matérias-primas de segunda geração que podem contribuir para o desacelerar do consumo dos recursos naturais. Podemos considerar sem hesitações que as tecnologias que permitem a reutilização são uma mais-valia para a Humanidade e para a Natureza no seu conjunto. No entanto, no quadro do sistema capitalista, nenhum dos pressupostos deixa de se aplicar, apenas se verifica o prolongamento no tempo dos seus efeitos. Ou seja, estas novas indústrias e a utilização das novas matérias-primas acabam por funcionar como um balão de oxigénio para o sistema, mas não garantem de forma alguma a inversão do curso de destruição que o capitalismo imprime ao Homem.

É notável como os grupos económicos e os grandes interesses capitalistas em torno do “ambiente” conseguem criar uma nova forma de obter lucro através da preocupação ambiental das populações, sem que, na verdade lhes dêem qualquer resposta. A fileira da reciclagem e da revalorização, por exemplo, representa hoje a origem de um mercado de dimensões significativas. 

A preocupação ambiental acaba por sustentar não a Natureza, mas uma nova produção que se desenvolve com tanta preocupação ambiental como as produções de primeira geração. Ou seja, o Capital, dominando a produção e os seus meios, delapida e destrói a Natureza visando o lucro, tanto na extracção como nas actividades de reciclagem que desenvolve. Façamos um pequeno raciocínio para entender a duplicação de lucros por via desta preocupação ambiental: “eu compro a embalagem supérflua que envolve as minhas 4 garrafas de água (em si também inúteis, quando poderia comprar apenas uma garrafa de 4 litros). - Partimos do princípio que o custo da embalagem está incluído no preço das 4 garrafas de água – de seguida, a embalagem plástica que as envolvia vai directamente para o lixo, seguindo posteriormente para reciclagem, caso eu a encaminhe. Finalmente é-me cobrada uma taxa em função da embalagem que comprei involuntariamente. O produto de segunda geração – as fibras de PET recicladas por exemplo – estarão ao meu alcance sob novo pagamento de um preço inflacionado, ou seja, ao qual acresceram novas componentes de preço e de mais-valias.

A posse dos recursos

O capitalismo não convive com a democracia. A democracia formal que dá forma a alguns estados capitalistas não ultrapassa as limitações que o capitalismo lhe impõe. E na utilização dos recursos naturais, esta é uma questão primária. A democracia na posse, gestão e utilização dos recursos naturais, é inconciliável com a acumulação de lucros a partir destes. Daí o carácter determinante que se coloca na questão da posse e direito de gestão.

A posse dos recursos naturais só pode ser comum. Por um lado, porque a Natureza é essencial à produção e é em si mesma, produtiva segundo a rentabilização que o Homem pode fazer dela. Por outro lado, porque existem recursos naturais – como o ar e a água, por exemplo – que são estrita e absolutamente necessários para a vida do Ser Humano, tanto quanto para a totalidade dos Seres vivos que conhecemos.

O que o capitalismo empreende actualmente é a apropriação de todos os recursos naturais, desde a água aos recursos geológicos, ganhando uma nova dimensão de controlo sobre os destinos da sociedade, além de uma incrível nova fonte de receita.

Se a burguesia detém a posse dos recursos, isso significa que os utilizará defendendo essa posse e domínio, colocando-os fora do alcance das populações se necessário através da força. A tecnologia é colocada ao serviço da protecção dessa posse ao invés de ser utilizada para criar as condições de acesso de todos a esses recursos. Portanto, a posse dos recursos e o uso que deles se faz, determina em grande medida o curso da evolução tecnológica e da utilização que se lhe atribui (à tecnologia).

A única forma de garantir a justa e racional gestão dos recursos, satisfazendo reciprocamente as necessidades da humanidade e da capacidade de regeneração da Natureza, é a democratização do uso da Natureza, democratizando a própria gestão, sem concessões aos interesses do lucro que vêem nos recursos apenas uma fonte de lucro, uma mercadoria.

A posse do capital sobre os recursos naturais, em parte ou na totalidade, representa directamente a submissão da sua gestão às regras do mercado capitalista, onde a especulação conta tanto quanto a produção, por vezes mesmo mais. É bem conhecida a técnica desenvolvida pelo capital de fazer retenção de produto para incrementar e inflacionar preços de mercado. Ou seja, determinada porção do capital exerce posse sobre um produto na quantidade x, mas retém indisponível uma quantidade y, o que significa que apenas liberta no mercado x-y, que é uma quantidade necessariamente inferior a x, enquanto que y≤x. A dimensão da parte retida é determinada exclusivamente por quem detém a posse do produto em função do mercado e da possibilidade de lucro. A retenção de produto produz um efeito de inflação brutal no preço do produto que circula no mercado, sendo que reduz a oferta aparente, incrementando a proporção procura/oferta que, por sua vez, determina o preço de venda. Esta técnica do capital para maximização do lucro, funcionando a oferta como um conta-gotas, acaba por produzir a elitização acentuada do acesso ao produto, por via do aumento do preço.

Ora esta é apenas uma das regras do mercado capitalista que se mostra radicalmente incompatível com a gestão de recursos essenciais à vida. Mas claro que não é a única. Na verdade, a aplicação da lógica de mercado capitalista a qualquer produto redunda na sua elitização e na destruição objectiva da democracia ou no afastamento da sua concretização.

Só a posse comum dos recursos naturais, com a democratização da sua gestão, à luz das respostas que os próprios povos encontrarem e melhor ajustarem às suas condições, pode garantir um uso sustentável do meio e uma integração verdadeira do Homem e da Natureza.

Claro que o Capitalismo opõe na prática, o desenvolvimento da sua sociedade à Natureza, isolando o Homem enquanto elemento distinto naquilo a que gosta de chamar “ambiente”. A resposta necessária é a integração – que só pode ser obtida pela via do comunismo material e político, material na posse dos recursos; político na gestão da posse comum. Porque o Homem não é Ambiente, mas o Homem é Natureza.

A Luta pela Natureza

"Socialismo ou barbárie": A preservação da Natureza é portanto a preservação do Homem. A utilização da Natureza como fonte de mercadorias leva ao seu esgotamento e, com ela, o do Homem. Isto coloca-nos perante uma situação que se adivinha desde cedo que é a da opção entre “sistema e modelo de produção actual” ou “sobrevivência saudável da espécie”. 

A luta pela Natureza é a disputa que os trabalhadores e os povos devem encetar num quadro muito mais vasto. Importa clarificar junto de todos que não é possível preservar a Natureza sem construir um novo modelo de sociedade. É intrinsecamente contraditória a manutenção do modelo de produção actual e a preservação e democratização dos recursos. Porque a concentração da posse dos recursos conduzirá inevitavelmente à sua elitização no consumo e, paulatinamente, à sua destruição ou inutilização.

É urgente convocar os povos para a defesa da Natureza, dos recursos de que dispomos.
Da mesma forma que o desenvolvimento dos meios de produção influi sobre a Natureza, a utilização da Natureza influi sobre o curso do desenvolvimento das tecnologias de produção. 

Assim, o desenvolvimento científico em que residem muitas das respostas para o bom e racional uso dos recursos naturais depende em grande medida da posse dos recursos.

O desenvolvimento da ciência dará sempre resposta às necessidades e anseios da classe dominante ou, no mínimo, responderá à correlação de forças que se verifica a cada momento. 

O domínio capitalista do mercado não é condição suficiente para garantir o controlo sobre tudo aquilo que não é mercadoria. Ou seja, a posse dos meios de produção pela burguesia num determinado momento da história não significa o total controlo dessa classe sobre áreas em que não exerce posse. Claro que terá o caminho facilitado para o exercício desse domínio, mas a luta dos povos e a manutenção ou conquista da posse comum dos recursos naturais é determinante no rumo que se imprime à gestão desses recursos e, como consequência, à forma como a ciência vai buscando e apresentando soluções para os problemas da sua racional utilização e consumo.

A batalha pela preservação da Natureza trava-se diariamente, garantindo não apenas a denúncia deste ou daquele incumprimento ou desta ou daquela prática formalmente lesiva do “ambiente”, como fazem actualmente muitas associações e organizações ditas de defesa do ambiente. Mas faz-se essencialmente pela luta constante pelos direitos dos povos, nomeadamente no que toca à posse e direito à gestão da Natureza e das suas riquezas.

A posse comum, o carácter público dos recursos naturais, dá-lhes uma dimensão democrática que condiciona todo o desenvolvimento científico que se gera em torno da sua gestão. Perder ou não conquistar essa posse é permitir que o Capital determine como gere o recurso em si e, simultaneamente, como serão desenvolvidas as tecnologias de utilização do recurso.

É esta relação entre luta de classes e desenvolvimento científico com base na Natureza que não permite que ignoremos a realidade a cada instante, na esfera da táctica e na esfera da estratégia, mas também na da satisfação das necessidades do Homem hoje e não só amanhã. Os comunistas só podem ser programáticos se também forem pragmáticos e actuantes sobre a realidade. Tal como nas outras esferas da nossa intervenção, não podemos aguardar uma disputa episódica pela posse e gestão dos recursos. É no dia-a-dia que se trava uma batalha incansável que determina a cada momento o posicionamento das classes no tabuleiro da luta. Só acrescentando peso ao nosso lado da balança, somando forças atrás de forças e juntando as peças da história que é um contínuo, poderemos vencer na batalha pela construção de uma sociedade que entenda o Homem como parte da Natureza e não coloque todos os recursos naturais no plano da mercadoria.

Tuesday, May 21, 2013

Algumas notas sobre o papel hegemónico da classe operária nas transformações sociais

A conservação das relações sociais capitalistas exige criatividade, adaptatividade, hegemonia, força. Em todas as combinações e com as proporções necessárias. A classe dominante, as suas elites, está em constante busca do aperfeiçoamento dos mecanismos de exploração, sem abandonar em momento algum o principal objectivo que é o de aumentar os lucros, suprimindo os custos de produção, entre os quais o dos recursos naturais, energia e trabalho. A aceleração da acumulação capitalista, a sua natureza crescente, a apropriação de cada vez mais riqueza por cada vez menos capitalistas, têm porém um inevitável impacto nas condições de vida dos que são espoliados e explorados para que tamanha riqueza seja produzida.

A grande burguesia, classe dominante, com apoio social numa aliança altamente instável com as camadas médias do proletariado e com a pequena burguesia, tem conseguido desenvolver o sistema capitalista e gerir os seus desequilíbrios e contradições de formas que se pensariam impossíveis há três décadas atrás. A capacidade de evolução e a criatividade da classe dominante mostrou-se superior, não apenas às forças conjunturais das classes exploradas, como à própria expectativa que os pensadores marxistas e partidos comunistas por todo o mundo tinham da resistência de um sistema que em momento algum resolveu os problemas da Humanidade. A Divisão Internacional do Trabalho, as implicações que têm na fixação das necessidades sociais, económicas e culturais de cada povo, as assimetrias que introduz no desenvolvimento económico e social de cada região do globo, veio mostrar-se um poderoso meio para assegurar durante mais tempo do que o esperado uma hegemonia capitalista nas relações de produção por todo o mundo. A Divisão Internacional do Trabalho e as suas regras impostas pela classe dominante introduziram complexidade em todo o sistema e isso também tem implicações na "hegemonia", na correlação de forças nos planos nacionais e internacionais. No entanto, apesar das inconstâncias, das flutuações, dos factores de contrariedade, as leis gerais do capitalismo permanecem válidas, tal como permanecem válidas - com cada vez maior evidência - as teses sobre a luta de classes como motor do desenvolvimento histórico da Humanidade. As contradições entre os interesses do proletariado e da burguesia não se expressam com a mesma dimensão em todos os países do mundo, mas tendem a expressar-se cada vez com mais intensidade em todos esses países. 

Essa tendência, ao longo da História, já se materializou de formas diversas. Em momentos de agudização dessas contradições, agudiza-se igualmente a luta de classes. Em Portugal, 39 anos depois de Abril, as classes prejudicadas pela concentração monopolista são novamente chamadas a protagonizar a ruptura necessária, pela forma necessária. Ora, servem os dois primeiros parágrafos apenas para recolocar presente a importância do contexto nacional e internacional, bem como do momento histórico e da correlação de forças na caracterização política e na definição da táctica de classe. Tais questões não são estáticas e estão em constante desenvolvimento e mutação. 

A intervenção dos comunistas na sociedade, em todos os planos, estabelece como primeira condição para a construção dos seus objectivos imediatos, o reforço da luta de massas, a ampliação da frente social de luta aos jovens, trabalhadores, pensionistas, micro, pequenos e médios empresários e pequenos agricultores. Essa condição está no entanto aliada à necessidade de assegurar em todos os momentos, "o papel hegemónico" da classe operária, mesmo em contexto de revoluções democrático-burguesas. Só a classe em ascensão, a classe mais próxima dos meios de produção, mas simultaneamente, a mais explorada e mais prejudicada pelo funcionamento do capitalismo, tem condições e razões suficientes para superar o actual estádio de desenvolvimento político. Tal não sucede porém num ambiente em que a luta de classes esteja neutralizada. 

A burguesia, a grande e a pequena, com objectivos por vezes bastante divergentes, não deixam de intervir na luta de classes de todas as formas. Em momentos de intensificação da exploração, de instabilidade política e de potenciais alterações revolucionárias, as intrusões da burguesia, principalmente através da pequena-burguesia e das camadas médias - que não sendo propriamente burguesia, agem em conformidade com a matriz ideológica da burguesia - tendem a alastrar e a crescer num conjunto de movimentos. O movimento sindical de classe, o movimento associativo popular, os movimentos políticos e sociais, os partidos comunistas e operários, são "organizações" através das quais a classe operária realiza a sua luta, mas são simultaneamente palcos de disputas de classe. Claro que, de todos os movimentos, o partido comunista é, por força da sua organização e funcionamento, o que mais resistência tem e o que mais preparado está para assegurar a liderança proletária das duas acções, estratégias e programas.

Sem pretender caracterizar nenhum movimento, mas apenas contribuir para a compreensão das potencialidades do momento político actual, em Portugal, e partindo dos pressupostos colocados nos parágrafos acima, parece-me correcto afirmar:

1. A luta tende a intensificar-se perante a intensificação da ofensiva capitalista. É uma reacção natural das camadas exploradas, ainda que fortemente condicionada pelo contexto nacional e internacional, pelo desenvolvimento económico, social e cultural de cada estado. Nessa intensificação, camadas da classe operária podem acrescentar-se à luta, tal como podem as camadas médias e parte significativa da pequena-burguesia. 

2. No reconhecimento da impossibilidade de contenção do descontentamento, a classe dominante contém os seus impactos. A disputa pela direcção da luta de massas faz-se em todos os movimentos, no seu interior, a partir do seu interior e do seu exterior. A pequena-burguesia tem um papel vacilante, entre a ilusão de ascensão à elite e a crescente proletarização dos seus pares. O seu papel é, não poucas vezes, instável e os seus interesses são aparentemente contraditórios com os da classe operária, enquanto que a realidade demonstra que são objectivamente contrários aos da grande burguesia.

3. A disputa pela direcção da luta de massas e pela fixação dos seus objectivos imediatos e programáticos é uma luta determinante para a superação das relações de exploração, mas também para a criação de uma política diferente já, no presente ou no futuro próximo. Ou seja, aos comunistas não importa que seja a classe operária a dirigir a luta por uma questão de amor de classe, de subjectividade, de sectarismo, de facciosismo ou qualquer espécie de luta por protagonismo inconsequente. Aos comunistas importa assegurar que seja a classe operária a deter o papel hegemónico na luta de massas enquanto expressão da luta de classes, na medida em que sem tal papel, não existirão quaisquer transformações sociais e económicas. Ou seja, não sendo a classe operária a desempenhar esse papel, mesmo num contexto de alianças sociais e objectivos comuns, não se realizarão quaisquer alterações de regime, mas apenas de gestão do mesmo que hoje vigora.

4. Tal não poderá significar que a classe operária ou a sua vanguarda pretendem isoladas ou sozinhas estabelecer os fins e os meios, os objectivos tácticos e estratégicos da luta em cada momento. Tal não poderá igualmente significar que existe uma relação de superioridade entre os que lutaram toda a vida e os que só agora lutam, por influências e condições várias. Mas essa consideração realiza-se necessariamente nos dois sentidos. As camadas que entram na luta política, na luta de massas, que são chamadas por força da degradação das suas condições materiais ou por mera consciência política e social, não podem assumir uma posição de superioridade ante os movimentos que em nenhum momento abdicaram da luta porque sempre foram confrontados com a espoliação de que só agora as camadas médias e a pequena-burguesia são alvos. Sem relação hierárquica, por motivo numérico e político, só a classe operária é reservatório de forças revolucionárias suficientes e necessárias para assegurar as transformações sociais que urgem.

5. A pequena-burguesia, através de agentes conscientes e da utilização de outros tantos que o fazem involuntariamente - mesmo de parte do proletariado - , disputa objectivamente o papel hegemónico na luta. Para tal, conta e contará com o apoio da grande burguesia, na manipulação, na exaltação da espontaneidade, na demonização das organizações de classe, na anatemização dos partidos comunistas e, quando necessário, na promoção de movimentos que, não sendo o pretendido silêncio, podem ser o que mais próximo disso está a classe dominante em condições de impor. Essa disputa é constante ao longo da história do capitalismo e assume apenas formas diferentes consoante o período histórico e a correlação de forças em causa. Momentos há em que essa disputa assume a forma de social-democratização das camadas intermédias, outros em que as radicaliza inconsequentemente. Ambas as formas concorrem para o objectivo da neutralização. 

6. O alargamento da luta que se verifica em Portugal traduz-se na participação de mais camadas na população nas iniciativas do movimento sindical de classe, mais membros da classe operária e mais trabalhadores a tomar partido, mas também mais pequena-burguesia e camadas intermédias da população a abater na hierarquia social até à proletarização, mesmo que inconsciente. Em reacção, verifica-se um agravamento da ofensiva ideológica, uma maior ousadia na manipulação de massas, da educação à comunicação social e uma crescente deriva autoritária do estado ao serviço dos monopólios. Tal contexto obriga a um reforço do trabalho, a uma mais constante intervenção dos comunistas nos locais de trabalho, nas empresas, nas escolas, nas ruas, obriga especialmente a uma cada vez maior preponderância do seu papel nas frentes de luta, através da sua afirmação, não pela proclamação, mas pelo trabalho e pela real influência social e política. Esses objectivos, cumpridos que sejam, trazem à luta consequente, as camadas da população que até hoje não reconheciam na classe operária a verdadeira força motriz da História, sem que em momento algum, porém, o tenha deixado de ser.