The constant gardener… título ainda assim melhor que o português. Não é costume tecer aqui no império, críticas quanto aos filmes que vejo ou não vejo. No entanto, tendo em conta que este levanta aspectos vastos da política e que são dezenas as pessoas que conheço e que falam do filme quase com uma lágrima no olho, decidi deixar aqui o que acho deste filme e deste tipo de filmes.
Do ponto de vista da execução, quer da fotografia, realização ou interpretação, o filme é praticamente imaculado. As cenas tétricas estão conseguidas ao ponto de nos arrancar a lágrima piedosa. A banda sonora é, pura e simplesmente, soberba. Respira-se um mundo diferente a cada plano, cada cena. O argumento, por seu lado, não sendo medíocre, é comum.
Feitas as considerações tecnicistas, para as quais, importará dizer, não sou qualificado, importa ir ao motivo de fundo do filme, o mesmo que me faz escrever. O filme é uma história de amor, ponto. Ainda assim, vários são os jovens adultos que saem do cinema com uma cara de admiração que só lhes fica bem, mas cuja carga de snobismo é indisfarçável. Ao fim daquele filme, fica-nos bem a todos dizer que o filme é excelente, que aquela farmacêutica é muito má e tal.
O filme caracteriza, embrenhado numa história de amor, as operações desumanas de uma farmacêutica no Quénia, dando a entender que estas operações afectam mais países africanos. O filme trata a vida de um conjunto de ditos activistas que tentam desmascarar a dita empresa e o estado britânico que encobre a realização de testes em seres humanos no continente africano.
O que está mal no filme, então? O filme transporta a visão imposta exactamente pelos mesmos que tenta acusar. O filme engrandece o papel de organizações como a Amnistia Internacional e outras ONG´s semelhantes e o dos activistas burgueses da caridade, reduzindo os povos africanos a insignificantes peões no tabuleiro. Insinua-se recorrentemente, através desta visão burguesa, que a emancipação do continente africano é dependente da boa-vontade dos meninos ricos que vestem uma bata e vão 10 anos para África ajudar os coitadinhos. Ninguém, nestes filmes, fala das verdadeiras causas que conduziram África ao estado em que está. Da mesma forma que encobrem o papel ancião dos europeus e o mais recente papel dos Estados Unidos da América no que toca à destruição de África, ensinam-nos agora a magistral tese de que só o homem branco pode salvar o continente negro.
Além disso, de fazer depender a emancipação popular de toda a África da boa-vontade activista, dita humanitária, este filme personifica, numa visão particularmente maniqueísta, a estratégia empresarial das farmacêuticas. Ou seja, a farmacêutica em causa no filme faz o que faz (testes em seres humanos das populações miseráveis do Quénia à revelia do seu conhecimento), porque é dirigida por pessoas sem escrúpulos e de mau carácter. O próprio estado britânico é, de alguma forma, ilibado, porque também aqui, a cobertura que dá às operações da farmacêutica está exclusivamente relacionada com o facto de um senhor sem carácter da diplomacia britânica favorecer a dita empresa em troca de empregos criados em solo britânico.
Ou seja, a engrenagem do sistema capitalista, verdadeiro gerador desta e outras atrocidades diariamente cometidas há mais de uma centena de anos, não é, em momento algum, posta em causa pelo filme. A burguesia abandona a sala de cinema, com a sua lágrima pendendo do olho, com a mesma sensação de quem observa as fotos de meninos negros que morrem de fome como contemplando arte, com a mesma sensação que tem a beata quando deixa duas moedas ao senhor sem pernas à porta da igreja.
Podem esperar os quenianos, os sudaneses, os somalis, os etíopes, os eritreus, os djibutianos e os outros coitadinhos que a boa-vontade dos brancos lhes dê para sarar as feridas de outros países que não os seus. O colonialismo britânico, italiano, francês, as incursões militares dos Estados Unidos durante os anos 80 e 90 na maioria destes países, a destruição da revolução socialista da Etiópia, as guerras civis a mando das potências colonialistas e alimentadas pela indústria do armamento, o saque dos poucos recursos naturais do corno de África e a implantação geoestratégica e militar da grande potência imperialista são tudo factores desprezados por estes filmes e por esta visão do mundo. A distribuição da riqueza desequilibrada, o desmantelamento do sistema social dos povos, a exploração desenfreada destas populações como seres humanos descartáveis por parte das multinacionais, o abandono do investimento após a destruição dos países e o usufruto dos benefícios geoestratégicos, a imposição de modelos políticos desadequados, a divisão artificial dos povos, tudo isto, imposições estrangeiras, nunca são referidas nem acusadas.
O episódio retratado pelo filme “the constant gardener” não é um episódio… é uma característica natural do sistema capitalista. Não encontra a sua solução no activismo voluntarista da burguesia. Não a encontrará no preenchimento de cargos de direcção das multinacionais por pessoas de bom coração, escrupulosas ou bondosas. Não a encontrará na evangelização dos povos muçulmanos do Corno de África, nem na intervenção dos senhores doutores dos médicos sem fronteiras, nem aterragem de farinhas recolhidas nos supermercados dos brancos.
É tudo isto que faltava mostrar, para que esta história de amor passasse disso mesmo. Para que o filme deixasse de ser uma mera estetização da miséria com o aproveitamento comercial do sofrimento da criança africana, faltava-lhe dizer a verdade.
O filme é, um thriller com uma história de amor, ao estilo de um Alfaiate do Panamá, nem mais, nem menos.
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