Todos podemos exprimirmo-nos de várias formas. Podemos inclusivamente optar sobre que formas o que queremos fazer. E o mais curioso é que, para além de escolhermos a nossa expressão, temos um gosto interior de procurar as expressões dos outros.
Se há um grito estridente, há sempre um ouvido sereno para o escutar.
Uma escultura, por mais enorme que seja, há-de sempre caber na imaginação de outro.
Um gesto pode ficar para sempre riscado no espaço e no tempo para muitos.
Aquela tela azul terá sempre alguém que a contemple.
Das formas como nos expressamos, será a arte a suprema. A que toca, independentemente do sexo, da cultura, é universal. Não será difícil ver um ocidental pasmado a olhar para um Monet mesmo ao lado de um Índio norte-americano igualmente maravilhado. No entanto, separa-os um mar de culturas, um oceano de milhas e milhas.
A arte, sob todas as suas formas, emociona na criação e na fruição. É um néctar que nos alimenta a alma a todos. Ainda que nem todos tenhamos os mesmos gostos, não conheço ninguém que não goste de arte, seja ela qual for.
E porque escrevo, melodramaticamente, sobre a arte? Escrevo porque a Arte, as Artes, estão sob a ameaça dum cenário negro, dum mau cenógrafo (pois, podia ser um cenário negro, mas bonito, tipo um daqueles magníficos cenários dendríticos dos filmes do tim burton).
Mas não. As artes estão agora ameaçadas pelo apetite, o monstruoso apetite do lucro.
Se virmos bem, a arte, as suas diversas e maravilhosas expressões estão a tender para uma convergência em feixe monocromático. Todas as suas cores começam a fugir para pequenos recantos, ao alcance só de alguns... Massificam-se as tendências da arte nas suas mais alienantes versões. Investem-se rios de dinheiro em publicidade exclusivamente para as grandes produções.
E porquê? Porque será cada vez mais difícil frequentar a sala de espectáculos? Aquela de cujo magnífico tecto penda aquele esplendoroso lustre! Porque será cada vez mais difícil passear junto às telas onde corre o amor do pintor, não fora o bendito café-galeria mesmo ao lado da minha casa, aquele, daquela senhora querida que acha que todos devemos poder ter, fazer e ver arte, nossa ou dos outros.
O apetite está por todo o lado. Espreita por detrás a figura sombria do lucro. O lucro. Dita tudo. Dita o que é e o que não. Dita o que chega às nossas mãos, olhos, ouvidos e dita o que não chega.
Pior: dita a quem chega o quê!
Temos a arte fechada em galerias de ouro, para quem tenha bolsos de ouro, em salas de cristal para bolsas de diamante. Temos, na outra mão, a massificação da arte tipo fast-food. As faixas gravadas por uma máquina que repete o mesmo som ad nauseum. Os filmes em que os americanos são sempre os bons. Os livros em que a maior ginástica imaginativa pedida é a capacidade de ver um puto a voar numa vassoura.
O apetite levou-nos a perder de vista muita coisa. Dá dinheiro, vês, não dá não vês. Triste. Verídico.
O pior é a forma como esse apetite consegue transformar tudo o que toca, não em ouro, como Midas, mas em pornografia. A música é uma arte magnífica, aliás, todas são. Mas ao percorrer aquele corredor do jumbo, a britney spears aparece umas dez vezes... O "I´m in love with não-sei-quem" aparece outras trinta. Na banca das revistas, a cinturão negro aparece como revista de artes marciais, as cassetes para ensinar olaria estão na secção dos vasos e podemos aprender a pintar com o planeta agostinho em menos de um mês.
Fico triste. Pois fico. A arte nasce de todos e é para todos. Está na altura de quebrar os muros que não nos deixam ver. De perceber que a fruição e criação não são compatíveis com este ávido apetite de lucro. Um dia, quando estiver só a contemplar uma árvore, por não haver mais arte, pereceberei que acabaram com ela. E os das bolsas de ouro, sozinhos na galeria deserta, vão perceber que o dinheiro não enche o peito com paz.
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1 comment:
Belíssimo post.
Concordo, o "lucro", enquanto monstro sagrado, anda a prostituir a arte, por cinco euros (metaforicamente, porque é de luxo), à beira da estrada.
Consegui ver um índio e um ocidental a contemplar Monet, com o mesmo olhar mergulhado no quadro, tal a força da imagem evocada.
Há algum tempo, discutia a questão, que não me parece ser tão marginal a isto quando possa aparentar, dos downloads ilegais, das cópias proibidas dos livros. Por uma questão de ppios não os faço. Mas revolta-me. Revolta-me o preço exorbitante dos livros. Da música. Não posso, por manifesta incapacidade financeira, consumir à velocidade do meu apetite.
Mas ainda tenho acesso a alguma coisa.
Penso, situação ainda mais limite, nas pessoas que, como eu, não cresceram em ambientes onde tivessem, ao alcance de uma mão, uma estante cheia de livros.
Na injustiça de tudo isso. Na injustiça de clamar contra a incultura, a iliteracia e chamar-lhe preguiça.
Não ver as barreiras. Os condicionalismos.
Mas não. Fica tudo para a indústria discográfica, para as editoras, para as promotoras de espectáculos,e, cada vez menos para os outros. Todos os outros.
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