Wednesday, July 20, 2005

Serra Mãe



Serra Mãe...

Foi como Sebastião da Gama chamou à Serra da Arrábida. A Serra da Arrábida de orogenia e morfologia únicas em Portugal, de flora e fauna únicas em praticamente todo o planeta, está hoje, mais uma vez em chamas.

Os incêndios florestais acontecem. Algumas espécies arbóreas e arbustivas, inclusivamente, só conseguem completar o seu ciclo de vida com a actuação das chamas, apresentando mecanismos próprios para provocar deflagração de incêndios.

Mesmo os incêndios acidentais têm lugar na natureza, esporadicamente e com baixa taxa de recorrência e reincidência.

Mas agora... Aaaargh! Ardem as florestas, as matas. Que agonia. O problema central é que não estamos a falar de incêndios de causa natural. Na sua maioria, estes incêndios, ainda que possam não ter origem criminosa, têm-na na negligência. Na nossa negligência enquanto seres conscientes dos cuidados necessários para conviver com as florestas. Negligência das autoridades que sempre sabem o que é necessário saber, mas nunca fazem... E onde estão agora os helicópteros? Onde estão os recursos e os meios para o combate aos incêndios?

Agora choro porque nos matam a Serra. Agora eles lamentam... Mas deviam ter percebido que a Serra precisa de ser cuidada. Não serve espetar lá com uns meninos bem pagos para dizerem que sim à Secil, que sim às construções dos endinheirados, que não aos pescadores e que não ao pessoal que quer fazer umas caminhadas a pé. Não serve dizer que existe um Parque que toma conta da nossa Serra, quando já o ano passado a direcção desse mesmo parque afirmou que era impossível ver a Serra da Arrábida a arder. Revolta-me. Arde cá dentro do meu corpo, mesmo no peito, ligeiramente à esquerda... Não arde... pesa.

Ardem os fetos, os abetos, os pinheiros e os peneireiros. Ardem os ovos da coruja, mais aquele rosmaninho lindo. Arde o medronho. Vemos arder aquilo que mais amamos... dói. A Serra nua, chora. Mais de metade dela é já um enorme afloramento litológico, sem as flores, sem o verde das folhas. Pedra, raízes mortas e árvores pretas ficam para lembrar durante muito tempo o que lhe fizeram. O que lhe fizemos. Sim, pode ter sido aquela garrafa que deixaste no outro dia em alpertuche, ou aquele entulho que que despejaste mesmo à beira da estrada, pode ter sido a beata fatal do cigarro distraído que deitaste pela janela do carro.

O ano passado o fogo iniciou-se dentro de uma das grandes propriedades que se plantam na Serra. Não sei se pediram contas ao Senhor... Duvido muito. E no entretanto, a Serra arde. A Serra Mãe...

Crepita.

As cinzas esvoaçam pela cidade de Setúbal, trazidas por uma enorme nuvem negra a cavalo da nortada que desce a encosta Sul da Arrábida. Os carros estão cobertos por pequenas partículas daquelas árvores e animais... Valham-nos agora os ciclos da Natureza. Esperar que tudo volte ao equilíbrio. O fogo em si faz parte do equilíbrio. Como a catástrofe e o lago sereno. Ambos são Natureza. Mas custa saber que, pelo meio aparecemos nós. A acção dos Homens.

Arde.

O fogo está incontrolável. Em várias frentes, os homens da paz tentam agora remediar a negligência dos nossos senhores. Quanto tempo passará até alguém vir a lucrar com a desvalorização das madeiras, com a desclassificação dos terrenos, com a especulação financeira? Quanto tempo terá de passar até alguém perceber que a Serra respira connosco? Que a Serra se entrega a nós e que o seu destino está nas nossas mãos?

Ah, Arrábida! Serra Mãe... Chorem os que te amam, enquanto ardes. Vibrem os céus e os mares que te envolvem e acolhem, solidários com as tuas chamas avassaladoras. Nadem para perto roazes, botos e toninhas, venham ver o que nós fizemos...

Espera.

É bom para ti, Serra Alpina, saber que, inciaste o teu crescimento há cerca de 145 Milhões de Anos, aqui foste ficando. É bom saber, Serra Mosteiro, que aqui ficarás muito depois de nos termos ido. Que continuarás, Senhora da natureza, tal onda que domina o seu próprio tempo, cicatrizada por feridas profundas, mas viva em todo o seu esplendor.


Serra da Arrábida: corresponde a uma cadeia montanhosa de orogenia alpina, o nome de "Arrábida" vem do árabe que significa "Mosteiro".

Sebastião da Gama escreveu:
"A serra tem o ar de uma onda que avança impetuosa e subitamente estaca e se esculpe no ar; é uma onda de pedra e mato, é o fóssil de uma onda"…

"Na orla meridional da península que tem o seu nome, a serra da Arrábida estende-se do morro de Palmela até à agulha do Cabo Espichel, num comprimento de 35 km e largura média de 6 km. A estrada sobranceira ao oceano, para descer ao Portinho embrenha-se na Mata do Solitário, trecho único em Portugal de floresta primitiva com influências mediterrâneas e atlânticas."

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